7. O Teorema Egregium de Gauss

Documentos relacionados
6. A aplicação de Gauss e a segunda forma fundamental

Justifique convenientemente as suas respostas e indique os principais cálculos. t (e t cos t, e t sin t).

Justifique convenientemente as suas respostas e indique os principais cálculos

LISTA 6 DE GEOMETRIA DIFERENCIAL 2008

3. Algumas classes especiais de superfícies

2. O que é uma superfície?

Justifique convenientemente as suas respostas e indique os principais cálculos

3 Superfícies Spacelike em IR 2,1

MAT Geometria Diferencial 1 - Lista 2

LISTA 6 DE GEOMETRIA DIFERENCIAL 2007

MAT0326 Geometria Diferencial I

SUBVARIEDADES RIEMANNIANAS DO ESPAÇO EUCLIDEANO

LISTA 5 DE GEOMETRIA RIEMANNIANA 2007

LISTA 7 DE GEOMETRIA DIFERENCIAL Vamos continuar o nosso estudo sobre superfícies de R 3. Vamos explorar

0.1 Superfícies Regradas

Análise Matemática II - 1 o Semestre 2001/ o Exame - 25 de Janeiro de h

CDI-II. Resumo das Aulas Teóricas (Semana 1) 2 Norma. Distância. Bola. R n = R R R

Derivadas Parciais Capítulo 14

= f(0) D2 f 0 (x, x) + o( x 2 )

Aula 15. Derivadas Direcionais e Vetor Gradiente. Quando u = (1, 0) ou u = (0, 1), obtemos as derivadas parciais em relação a x ou y, respectivamente.

1 Diferenciabilidade e derivadas direcionais

Geometria Intrínseca das Superfícies

Sumário e Objectivos. Mecânica dos Sólidos não Linear Capítulo 2. Lúcia Dinis 2005/2006

Geometria Analítica II - Aula 7 178

MAT 3210 Cálculo Diferencial e Integral II. Prova SUB D

MAT 3210 Cálculo Diferencial e Integral II. Prova SUB B

MAT 3210 Cálculo Diferencial e Integral II. Prova SUB C

MAT 133 Cálculo II. Prova SUB A

Nome:... Q N Assinatura:... 1 RG:... 2 N o USP:... 3 Turma: Teórica... 4 Professor: Edson Vargas... Total

CAPíTULO 5. Superfícies em 3

J. Delgado - K. Frensel - L. Crissaff Geometria Analítica e Cálculo Vetorial

Apostila Minicurso SEMAT XXVII

Variedades Riemannianas Bidimensionais Carlos Eduardo Rosado de Barros, Romildo da Silva Pina Instituto de Matemática e Estatística, Universidade

Geometria Analítica II - Aula 4 82

5. Teorema fundamental das curvas

Nesta seção as referências utilizadas são [11], [16] e as notas de aulas do Professor Ricardo Sá Earp.

MAT CÁLCULO 2 PARA ECONOMIA. Geometria Analítica

Aplicação Normal de Gauss em Superfícies Regulares: parabolóides osculadores

GEOMETRIA II EXERCÍCIOS RESOLVIDOS - ABRIL, 2018

Funções suaves e Variedades

Geometria Analítica e Vetorial - Daniel Miranda, Rafael Grisi, Sinuê Lodovici

y (n) (x) = dn y dx n(x) y (0) (x) = y(x).

Geometria Diferencial II 2 0 Lista de Exerccios (2 0 semestre 2017)

3.6 O Teorema de Stokes

Aula de Problemas 1. Problema 1. Demonstre o teorema de Pitágoras (geometria euclidiana):

VARIEDADES COMPACTAS COM CURVATURA POSITIVA

Cálculo Diferencial e Integral II Resolução do Exame/Teste de Recuperação 02 de Julho de 2018, 15:00h - versão 2 Duração: Exame (3h), Teste (1h30)

Cálculo II - Superfícies no Espaço

Material Teórico - Módulo de Função Exponencial. Primeiro Ano - Médio. Autor: Prof. Angelo Papa Neto Revisor: Prof. Antonio Caminha M.

EXERCICIOS RESOLVIDOS - INT-POLIN - MMQ - INT-NUMERICA - EDO

Funções de duas (ou mais)

MAT 133 Cálculo II. Prova SUB C

Processamento de Malhas Poligonais

Derivadas Parciais. Sumário. 1 Funções de Várias Variáveis. Raimundo A. R. Rodrigues Jr. 1 de agosto de Funções de Duas Variáveis.

2 Propriedades geométricas de curvas parametrizadas no R 4

A Derivada. Derivadas Aula 16. Alexandre Nolasco de Carvalho Universidade de São Paulo São Carlos SP, Brazil

Universidade Estadual de Montes Claros Departamento de Ciências Exatas Curso de Licenciatura em Matemática. Notas de Aulas de

Diagonalização unitária e diagonalização ortogonal. (Positividade do produto interno) Raíz quadrada. Formas quadráticas.

Notas de Aula. Geometria Diferencial

5. Funções lineares em R n. ALGA (M1002) Ano letivo 2016/17 1 / 39

Aula Orientação do espaço. Observação 1

Sabendo que f(x) é um polinômio de grau 2, utilize a formula do trapézio e calcule exatamente

Gabarito da Primeira Prova MAT Tipo A

Volume de sólidos de revolução com eixo de rotação inclinado

Lista de Exercícios de Cálculo Infinitesimal II

Cálculo Diferencial em R n

Pequena Introdução à Trigonometria Hiperbólica

CURVAS REGULARES NO PLANO

Cálculo Diferencial e Integral 2 Formas Quadráticas

Produto interno e produto vetorial no espaço

Aula 7: Geometria das superfícies bidimensionais II; gravitação e geometria

PARES DE SUBESPAÇOS EM R n. Luciana Cadar Chamone

12 AULA. ciáveis LIVRO. META Estudar derivadas de funções de duas variáveis a valores reais.

Imersões e Mergulhos. 4 a aula,

Justifique todas as passagens. f v (0,0) = f(0,0) v.

ANÁLISE COMPLEXA E EQUAÇÕES DIFERENCIAIS. Apresente e justifique todos os cálculos

DERIVADAS PARCIAIS. y = lim

MAT0326 Geometria Diferencial I

Cálculo II Lista 5. com respostas

Cálculo Diferencial e Integral II

15 AULA. Máximos e Mínimos LIVRO. META Encontrar os pontos de máximo e mínimo de uma função de duas variáveis a valores reais.

ANÁLISE MATEMÁTICA IV FICHA SUPLEMENTAR 1. (1) Descreva as regiões do plano complexo definidas por z i c z, onde c é um número real não negativo.

(3) Fazer os seguintes exercícios do livro texto. Exercs da seção : 1(d), 1(f), 1(h), 1(i), 1(j). 2(b), 2(d)

SUPERFÍCIES MÍNIMAS E A REPRESENTAÇÃO DE WEIERSTRASS

Respostas sem justificativas não serão aceitas Não é permitido o uso de aparelhos eletrônicos

Matemática I. 1 Propriedades dos números reais

Capítulo 12. Ângulo entre duas retas no espaço. Definição 1. O ângulo (r1, r2 ) entre duas retas r1 e r2 é assim definido:

Marcelo M. Santos DM-IMECC-UNICAMP msantos/

2 Conceitos Básicos da Geometria Diferencial Afim

14 AULA. Vetor Gradiente e as Derivadas Direcionais LIVRO

CDI-II. Resumo das Aulas Teóricas (Semana 4) ; k = 1, 2,..., n.

Equação Geral do Segundo Grau em R 2

O Triedro de Frenet. MAT Cálculo Diferencial e Integral II Daniel Victor Tausk

Transformações geométricas planas

TEOREMA FUNDAMENTAL DO CÁLCULO PARA INTEGRAIS MÚLTIPLOS, O TEOREMA DE GAUSS, O TEOREMA DE GREEN E O TEOREMA DE STOKES. d f (x) dx = f (b) f (a).

GEOMETRIA EXTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES DE R 3

CÁLCULO DAS VARIAÇÕES E SUPERFÍCIES DE CURVATURA MÉDIA CONSTANTE ALEXANDRE LYMBEROPOULOS

Análise Matemática III. Textos de Apoio. Cristina Caldeira

1 Derivadas Parciais de Ordem Superior Em duas variáveis Em três variáveis. 1.3 Derivadas de Ordem

Transcrição:

138 SUPERFÍCIES EM R3 7. O Teorema Egregium de Gauss Estamos agora em condições de provar um dos teoremas mais importantes do século XIX. Os matemáticos no final do século XVIII, como Euler e Monge, já usavam a curvatura Gaussiana, mas somente como produto das curvaturas principais da superfície. Como cada uma delas depende da segunda forma fundamental, ou seja, do modo particular como a superfície S está mergulhada em R 3, não existe nenhuma razão aparente para supor que o produto das curvaturas principais é intrínseco a S. A descoberta de Gauss, publicada em 1827, de que o produto das curvaturas principais só depende da geometria intrínseca da superfície revolucionou a geometria diferencial. Ao longo desta secção, para tornar menos pesada a escrita das fórmulas, dada uma aplicação σ : U R 3 suave, usaremos as notações σ x = σ x, σ y = σ y, σ xx = 2 σ x 2, σ xy = 2 σ x y, etc. Exemplo 7.1. Sejam S 1 = {(x, y, z) R 3 x 2 + y 2 < 1, z = 0}, S 2 = {(x, y, z) R 3 x 2 + y 2 < 1, z = x 2 + y 2 } e f : S 1 S 2 definida por f(x, y, 0) = (x, y, x 2 + y 2 ). f Denotando o aberto {(x, y) R 2 x 2 + y 2 < 1} de R 2 por U, σ 1 : U S 1, definida por σ 1 (x, y) = (x, y, 0), é uma parametrização global de S 1, enquanto σ 2 = f σ 1 é uma parametrização global de S 2. Como σ 1 x (x, y) = (1, 0, 0), σ 1 (x, y) = (0, 1, 0), y σ 2 x (x, y) = (1, 0, 2x), σ 2 (x, y) = (0, 1, 2y), y

7. O TEOREMA EGREGIUM DE GAUSS 139 então E 1 (x, y) = 1, F 1 (x, y) = 0, G 1 (x, y) = 1, pelo que f não é uma isometria. E 2 (x, y) = 1 + 4x 2, F 2 (x, y) = 4xy, G 2 (x, y) = 1 + 4y 2, Exemplo 7.2. Sejam agora T 1 = {(x, y, z) R 3 y = 0, x < π/2}, T 2 = {(x, y, z) R 3 x 2 + y 2 = 1, y > 0} e g : T 1 T 2 definida por g(x, 0, z) = (sin x, cos x, z). g Tomando o aberto U = {(x, z) R 2 x < π/2}, a parametrização global de T 1, σ 1 : U R 3, dada por σ 1 (x, z) = (x, 0, z), e a correspondente parametrização global σ 2 = g σ 1 de T 2, temos σ 1 x (x, z) = (0, 1, 0), σ 1 (x, z) = (0, 0, 1), z σ 2 x (x, z) = (cos x, sin x, 0), σ 2 (x, z) = (0, 0, 1), z E 1 (x, z) = 1, F 1 (x, z) = 0, G 1 (x, z) = 1, Assim, neste caso, g é uma isometria. Por outro lado, E 2 (x, z) = 1, F 2 (x, z) = 0, G 2 (x, z) = 1. 2 σ 1 x 2 (x, z) = 2 σ 1 x z (x, z) = 2 σ 1 (x, z) = 0, z2 2 σ 2 x 2 (x, z) = ( sin x, cos x, 0), 2 σ 2 x z (x, z) = 2 σ 2 (x, z) = 0, z2

140 SUPERFÍCIES EM R3 N σ2 (x, y, z) = ( sin x, cos x, 0), donde e 1 (x, z) = f 1 (x, z) = g 1 (x, z) = 0 e e 2 (x, z) = (N σ2 (x, y, z) 2 σ 2 (x, z)) = 1 0. x2 Portanto, g não preserva a segunda forma fundamental apesar de ser uma isometria. No Exemplo 7.2, temos uma folha de papel plana T 1 que é transformada em metade de um cilindro T 2. A folha foi simplesmente arqueada, tendo-se somente modificado a sua relação com o espaço ambiente R 3. Este facto é descrito pelo seguinte: a primeira forma fundamental não foi alterada; a segunda forma foi alterada. Dizemos que a primeira forma fundamental de uma superfície S descreve a geometria intrínseca de S e que a segunda forma fundamental descreve a geometria extrínseca de S. À aplicação d S : S S R, tomando para d S (p 1, p 2 ) o ínfimo dos comprimentos das curvas γ : [0, 1] S tais que γ(0) = p 1 e γ(1) = p 2, chama-se distância intrínseca da superfície S. Trata-se, de facto, de uma métrica em S (cf. [8], Prop. 413). É evidente que uma isometria preserva sempre a distância intrínseca. Contudo poderá não preservar a distância extrínseca, como acontece no exemplo acima: sendo d a distância euclidiana de R 3, dados p 1, p 2 T 1, não é verdade que d(g(p 1 ), g(p 2 )) = d(p 1, p 2 ). Por outro lado, a transformação f do Exemplo 7.1 (na qual a superfície S 1 foi transformada em metade de uma esfera) altera a geometria intrínseca da superfície, ou seja, a sua primeira forma fundamental, como vimos. Note que neste caso existem pontos p 1, p 2 S 1 tais que d S2 (f(p 1 ), f(p 2 )) > d S1 (p 1, p 2 ). O facto de g preservar a curvatura de Gauss não é acidental. O Teorema de Gauss, que provaremos em seguida, mostra que a curvatura de Gauss é invariante por isometria. Para demonstrar este resultado clássico fundamental necessitamos de introduzir os chamados símbolos de Christoffel. Seja σ : U S uma parametrização de uma superfície regular S. Consideremos ainda o referencial { σ σ } (q), x y (q), N(p) definido em cada ponto p = σ(q) da superfície S. Existem funções Γ i jk, i, j, k = 1, 2, L 1, L 2, L 2, L 3, a ij, 1 i, j 2 tais que σ xx = Γ 1 11σ x + Γ 2 11σ y + L 1 N σ xy = Γ 1 12σ x + Γ 2 12σ y + L 2 N σ yx = Γ 1 21σ x + Γ 2 21σ y + L 2 N (7.2.1) σ yy = Γ 1 22σ x + Γ 2 22σ y + L 3 N N x = a 11 σ x + a 21 σ y N y = a 12 σ x + a 22 σ y.

7. O TEOREMA EGREGIUM DE GAUSS 141 dizem-se os símbolos de Christoffel de S relativamente à parametri- As funções Γ i jk zação σ. Note que L 1 = (σ xx N) = e, L 2 = (σ xy N) = f, (7.2.2) L 2 = L 2 = f, L 3 = (σ yy N) = g. Como σ xy = σ yx e σ x, σ y, N são linearmente independentes, Γ i 12 = Γ i 21, i = 1, 2. Lema 7.3. Os símbolos de Christoffel de uma superfície S relativamente a uma parametrização σ estão relacionados com a primeira forma fundamental pelas seguintes igualdades: { { { { Γ 1 11 E + Γ2 11 F = 1 2 E x, Γ 1 11 F + Γ2 11 G = F x 1 2 E y, Γ 1 12 E + Γ2 12 F = 1 2 E y, Γ 1 12 F + Γ2 12 G = 1 2 G x, Γ 1 22 E + Γ2 22 F = F y 1 2 G x, Γ 1 22 F + Γ2 22 G = 1 2 G y, Γ 1 11 + Γ2 12 = (log EG F 2 ) x, Γ 1 12 + Γ2 22 = (log EG F 2 ) y. Demonstração: As primeiras seis são imediatas de (7.2.1): Γ 1 11 E + Γ2 11 F = Γ1 11 (σ x σ x ) + Γ 2 11 (σ y σ x ) = (Γ 1 11 σ x + Γ 2 11 σ y σ x ) = (σ xx σ x ) = 1 2 x σ x 2 = 1 2 E x. Γ 1 11 F + Γ2 11 G = Γ1 11 (σ x σ y ) + Γ 2 11 (σ y σ y ) = (σ xx σ y ) = F x 1 2 E y. x (σ x σ y ) (σ x σ xy ) = Γ 1 12 E + Γ2 12 F = Γ1 12 (σ x σ x ) + Γ 2 12 (σ y σ x ) = (σ xy σ x ) = 1 2 y σ x 2 = 1 2 E y. Γ 1 12 F + Γ2 12 G = Γ1 12 (σ x σ y ) + Γ 2 12 (σ y σ y ) = (σ xy σ y ) = 1 2 x σ y 2 = 1 2 G x. Γ 1 22 E + Γ2 22 F = Γ1 22 (σ x σ x ) + Γ 2 22 (σ y σ x ) = (σ yy σ x ) = F y 1 2 G x. y (σ y σ x ) (σ y σ yx ) = Γ 1 22 F + Γ2 22 G = Γ1 22 (σ x σ y ) + Γ 2 22 (σ y σ y ) = (σ yy σ y ) = 1 2 y σ y 2 = 1 2 G y.

142 SUPERFÍCIES EM R3 As duas últimas são consequência das anteriores; provemos a primeira delas (a outra pode provar-se de forma análoga): (EG F 2 ) x = EG x + E x G 2F F x = 2E(Γ 1 12F + Γ 2 12G) + 2G(Γ 1 11E + Γ 2 11F ) 2F (Γ 1 11F + Γ 2 11G + Γ 1 12E + Γ 2 12F ) = 2EGΓ 2 12 + 2EGΓ 1 11 2F 2 (Γ 1 11 + Γ 2 12) = 2(EG F 2 )(Γ 1 11 + Γ 2 12). Então Γ 1 11 + Γ 2 12 = (EG F 2 ) x 2(EG F 2 ) = (log EG F 2 ) x. Resolvendo cada um dos três primeiros sistemas do Lema 7.3, relativamente aos símbolos de Christoffel, obtemos: Γ 1 11 GEx 2F Fx+F Ey =, Γ 2 2EFx EEy F Ex 2(EG F 2 ) 11 =, 2(EG F 2 ) Γ 1 12 Γ 1 22 = GEy F Gx 2(EG F 2 ), Γ2 12 = EGx F Ey 2(EG F 2 ), 2GFy GGx F Gy =, Γ 2 EGy 2F Fy+F Gx 2(EG F 2 ) 22 =, 2(EG F 2 ) Γ 1 21 = Γ1 12, Γ2 21 = Γ2 12. (7.3.1) Isto mostra que os símbolos de Christoffel só dependem de E, F, G e das suas derivadas, pelo que são invariantes por isometria, pelo Teorema 5.2. Teorema 7.4. [Teorema Egregium de Gauss] A curvatura de Gauss é invariante por isometria. Demonstração: Decorre de (7.2.1) e da definição da matriz de Weingarten na página 123 (nomeadamente da igualdade N y = a 12 σ x + a 22 σ y ) que σ xxy = (Γ 1 11σ x + Γ 2 11σ y + en) y = Γ 1 11yσ x + Γ 2 11yσ y + e y N + Γ 1 11σ xy + Γ 2 11σ yy + en y = Γ 1 11yσ x + Γ 2 11yσ y + e y N + Γ 1 11(Γ 1 12σ x + Γ 2 12σ y + fn) + Γ 2 11(Γ 1 22σ x + Γ 2 22σ y + gn) + e(a 12 σ x + a 22 σ y ) = (Γ 1 11y + Γ 1 11Γ 1 12 + Γ 2 11Γ 1 22 + ea 12 )σ x + (Γ 2 11y + Γ 1 11Γ 2 12 + Γ 2 11Γ 2 22 + ea 22 )σ y + (e y + Γ 1 11f + Γ 2 11g)N,

7. O TEOREMA EGREGIUM DE GAUSS 143 σ xyx = (Γ 1 12σ x + Γ 2 12σ y + fn) x = Γ 1 12xσ x + Γ 2 12xσ y + f x N + Γ 1 12σ xx + Γ 2 12σ yx + fn x = Γ 1 12xσ x + Γ 2 12xσ y + f x N + Γ 1 12(Γ 1 11σ x + Γ 2 11σ y + en) + Γ 2 12(Γ 1 21σ x + Γ 2 21σ y + fn) + f(a 11 σ x + a 21 σ y ) = (Γ 1 12x + Γ 1 12Γ 1 11 + Γ 2 12Γ 1 21 + fa 11 )σ x + (Γ 2 12x + Γ 1 12Γ 2 11 + Γ 2 12Γ 2 21 + fa 21 )σ y + (f x + Γ 1 12e + Γ 2 12f)N. Como σ xxy = σ xyx e σ x, σ y, N são linearmente independentes, podemos concluir que ou seja, (Γ 2 11) y + Γ 1 11Γ 2 12 + Γ 2 11Γ 2 22 + ea 22 = (Γ 2 12) x + Γ 1 12Γ 2 11 + Γ 2 12Γ 2 21 + fa 21, (Γ 2 12) x (Γ 2 11) y + Γ 1 12Γ 2 11 + Γ 2 12Γ 2 21 Γ 1 11Γ 2 12 Γ 2 11Γ 2 22 = a 22 e fa 21. Consequentemente, da definição da matriz de Weingarten na página 123, (Γ 2 12) x (Γ 2 11) y + Γ 1 12Γ 2 11 + Γ 2 12Γ 2 21 Γ 1 11Γ 2 12 Γ 2 11Γ 2 ff ge ef fe 22 = e + f EG F 2 EG F 2 = E eg f 2 EG F 2 = EK. De modo análogo, das igualdades σ yyx = σ yxy e N xy = N yx, é possível formular F K e GK em função dos símbolos de Christoffel e das suas derivadas, logo, por (7.3.1), em função de E, F, G e das suas derivadas. Como as funções E, F, G não se podem anular simultaneamente, podemos concluir que a curvatura de Gauss K de uma superfície regular só depende das funções E, F, G e das suas derivadas sendo, assim, invariante por isometria. Como as definições de ponto elíptico e de ponto hiperbólico só dependem da curvatura de Gauss, uma isometria transforma pontos elípticos em pontos elípticos e pontos hiperbólicos em pontos hiperbólicos. O mesmo não acontece com os pontos planares e parabólicos. Com efeito, as noções de ponto planar e ponto parabólico não são invariantes por isometria: dependem não só da primeira forma fundamental da superfície, mas também da segunda forma fundamental. Por exemplo, a isometria g do Exemplo 7.2 transforma pontos planares em pontos parabólicos (Exercício 7.2). Exemplos. (1) A parametrização σ : R 2 R 3 do cilindro, definida por σ(u, v) = (cos(u/a), sin(u/a), av),

144 SUPERFÍCIES EM R3 pode ser vista como um difeomorfismo entre o plano e o cilindro. Como vimos na Secção 5, em ambas as superfícies E = G = 1 e F = 0 pelo que σ é uma isometria. Por outro lado, σ não preserva nem a segunda forma fundamental nem a curvatura média. (2) Temos agora outra justificação para o facto observado na Secção 5 de que não existe nenhuma isometria entre uma esfera e um plano: a curvatura de Gauss de uma esfera é diferente de zero, enquanto a de um plano é nula. Aqui reside a razão fundamental pela qual qualquer mapa plano de qualquer região da Terra distorce sempre as distâncias. (3) O helicóide (Exercício 3.9), parametrizado por helicoide a,b (x, y) = (ay cos x, ay sin x, bx), é isométrico ao catenóide (Exercício 4.2), parametrizado por catenoide t c(x, y) = (c cos x cosh(y/c), c sin x cosh(y/c), y), pois estas duas superfícies são o estado inicial e o estado final de uma deformação entre superfícies (minimais) isométricas. Com efeito, para cada t [0, π/2], seja helparacat t (x, y) = cos t(sinh y sin x, sinh y cos x, x) + sin t(cosh y cos x, cosh y sin x, y). É óbvio que helparacat 0 (x, y) = helicoide 1,1 (x π/2, sinh y), helparacat π/2 (x, y) = catenoide 1 (x, y). É ainda fácil verificar que a primeira forma fundamental de helparacat t é dada por E t (x, y) = G t (x, y) = cosh 2 y, F t (x, y) = 0, sendo pois uma função (de t) constante. Isto mostra que a sequência de superfícies helparacat t, 0 t π/2, é uma deformação do helicóide para o catenóide tal que helparacat 0 é uma reparametrização de um helicóide, helparacat π/2 é um catenóide e cada helparacat t é uma superfície isométrica a helparacat 0. Assim, em particular, o helicóide é isométrico ao catenóide. Por outro lado, como a segunda forma fundamental, que é dada por e t (x, y) = g t (x, y) = sin t, f t (x, y) = cos t, não é função constante de t, a imersão de helparacat t em R 3 depende de t. As figuras seguintes mostram sucessivos passos da deformação t helparacat t.

7. O TEOREMA EGREGIUM DE GAUSS 145 helicóide helparacat π/10 helparacat π/5 helparacat 3π/10 helparacat 2π/5 catenóide (4) O Teorema de Gauss estabelece que cada isometria preserva sempre a curvatura de Gauss. Existem, contudo, difeomorfismos que preservam a curvatura de Gauss mas não

146 SUPERFÍCIES EM R3 são isometrias. Um exemplo clássico de um tal morfismo é a aplicação Φ, definida por Φ(ay cos x, ay sin x, b log y) = (ay cos x, ay sin x, bx), da superfície de um funil parametrizada por (x, y) (ay cos x, ay sin x, b log y), para o helicóide parametrizado por (x, y) (ay cos x, ay sin x, bx). Calculando a curvatura de Gauss de ambas as superfícies chegamos ao mesmo resultado b 2 K(x, y) = b 2 + a 2 y 2. Portanto, Φ é um difeomorfismo que preserva a curvatura de Gauss. Contudo, Φ não é uma isometria, porque, no caso do funil, e, no caso do helicóide, E = (x, y) = a 2 y 2, F (x, y) = 0, G(x, y) = a 2 + b2 y 2 E(x, y) = b 2 + a 2 y 2, F (x, y) = 0, G(x, y) = a 2.

7. O TEOREMA EGREGIUM DE GAUSS 147 Isto mostra que o recíproco do Teorema de Gauss não é válido. (5) Como observámos no Exemplo 6.4(6), qualquer rotação em torno do eixo OZ da sela de macaco preserva a curvatura de Gauss. Pode ser verificado que somente as rotações de um ângulo múltiplo de 2π/3 são isometrias. Este exemplo também mostra que o recíproco do Teorema de Gauss é falso. Exercícios 7.1 Seja γ(t) = (ϕ(t), 0, ψ(t)), t I, uma curva regular. Suponhamos que ϕ(t) > 0 para qualquer t I. Determine os símbolos de Christoffel da superfície de revolução gerada pela curva γ. 7.2 Mostre que a isometria g do Exemplo 7.2 transforma pontos planares em pontos parabólicos. 7.3 Mostre, usando o Teorema Egregium de Gauss, que as seguintes superfícies regulares não são localmente isométricas duas a duas: (a) O plano. (b) A esfera. (c) A superfície {(x, y, z) R 3 z = x 2 y 2 }.