Miocardiopatia amilóide uma entidade de difícil diagnóstico Amyloid cardiomyopathy a diagnostic challenge

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Transcrição:

Casos Clínicos Case Reports Miocardiopatia amilóide uma entidade de difícil diagnóstico Amyloid cardiomyopathy a diagnostic challenge Gustavo Barbosa, Inês Rangel, Teresa Pinho, Luísa Lobato, Cristina Gavina, Paulo Bettencourt, Maria Júlia Maciel Resumo Os autores apresentam o caso de um doente de 71 anos, com antecedentes de hipertensão arterial e diabetes mellitus, admitido por dispneia e anasarca. O ecocardiograma apresentou dilatação bi-auricular, hipertrofia severa do ventrículo esquerdo (VE) e disfunção sistólica ligeira do VE. A tomografia computorizada abdominal mostrou hepatoesplenomegalia e ascite de grande volume. Reinternado dois meses depois por agravamento da sintomatologia. Repetiu ecocardiograma que revelou, de novo, um fluxo transmitral com padrão de tipo restritivo. O cateterismo cardíaco excluiu doença coronária. A biopsia endomiocárdica revelou lesões de fibro-elastose e hipertrofia nuclear, sem evidência inicial de material do tipo amilóide. A ressonância magnética cardíaca (RMC) revelou hipertrofia bi-ventricular e um padrão de realce tardio (RT) sugestivo de miocardiopatia infiltrativa (amiloidose). Realizou biopsia da gordura abdominal que identificou substância amilóide pelo método do Vermelho do Congo. O diagnóstico de cardiomiopatia amilóide é difícil. Apesar da biopsia endomiocárdica ser o gold standard, a RMC tem surgido como método não-invasivo útil na determinação etiológica das miocardiopatias pela sua capacidade de caracterização tecidular através da técnica de RT. Palavras chave: miocardiopatia restritiva, amiloidose, biopsia endomiocárdica, ressonância magnética cardíaca, realce tardio. Abstract The authors present the case of a 71-year-old male patient, with previous history of arterial hypertension and diabetes mellitus, admitted with dyspnoea and anasarca. The echocardiogram presented biatrial dilation, severe left ventricle (LV) hypertrophy and mild LV systolic dysfunction. Abdominal computed tomography scan revealed hepatosplenomegaly and large volume ascites. Readmitted two months later with symptoms worsening. A new echocardiogram was performed, revealing, besides the referred changes, a transmitral flow with a restrictive pattern. Cardiac catheterization excluded coronary disease. Endomyocardial biopsy revealed fibroelastosis lesions and nuclear hypertrophy, without initial evidence of amyloid deposition. Cardiovascular magnetic resonance imaging (CMRI) revealed bi-ventricular hypertrophy and a pattern of late gadolimium enhancement (LGE) suggestive of restrictive cardiomyopathy (amyloidosis). Abdominal fat biopsy identified amyloid substance by Congo red-stain. The diagnosis of amyloid cardiomyopathy is difficult. Although endomyocardial biopsy is the gold standard, CMRI arises as a non-invasive method useful to determine cardiomyopathies etiology due to its capacity of characterizing tissue through LGE. Key words: Restrictive cardiomyopathy; Amyloidosis; Endomyocardial biopsy; Cardiovascular magnetic resonance imaging; Late gadolinium enhancement. Introdução A miocardiopatia restritiva é uma entidade rara, sendo o tipo de miocardiopatia menos frequente. Caracteriza-se por limitação ao enchimento e redução do volume diastólico de um ou ambos os ventrículos, com preservação da função sistólica. Pode ser idiopática ou associada a outras doenças. 1 Serviço de Cardiologia do Hospital de São João e Serviço de Medicina Interna do Hospital do Padre Américo Recebido para publicação a 08.07.11 Aceite para publicação a 06.11.11 A amiloidose é um distúrbio clínico causado pelo depósito extracelular de um agregado proteico insolúvel, com a característica configuração em folha β pregueada e que apresenta birrefringência verde-maçã à luz polarizada, quando corada com Vermelho do Congo. O espectro de órgãos envolvidos pode incluir os rins, coração, vasos sanguíneos, sistema nervoso central e periférico, fígado, intestino delgado, cólon, pulmão, olhos, pele e osso. 2 A amiloidose cardíaca constitui a causa mais frequente de miocardiopatia restritiva; 1 pode ser primária (AL) hereditária ou, mais raramente, associada a doenças inflamatórias (AA). 2 As manifestações clínicas mais frequentes são a insuficiência cardíaca (IC) e os distúrbios da condução. 2 Qualquer que seja a sua etiologia, a infiltração PUBLICAÇÃO TRIMESTRAL VOL.19 Nº 4 OUT/DEZ 2012 205

Casos Clínicos Medicina Interna Teleradiografia de tórax na admissão. FIG. 3 FIG. 1 ETT (incidência apical 4 câmaras). dilatação biauricular, cavidades ventriculares normais, hipertrofia concêntrica do VE, com miocárdio brilhante. Electrocardiograma na admissão. Padrão qs em V1-V3. FIG. 2 miocárdica por substância amilóide confere pior prognóstico. 2 Existem vários exames complementares de diagnóstico não invasivos usados para identificar o envolvimento cardíaco por amiloidose: o ecocardiograma transtorácico (ETT), o electrocardiograma (ECG), a ressonância magnética cardíaca (RMC) e a cintigrafia com componente amiloide P sérico radiomarcado. Porque nenhum exame por si só é suficiente para fazer o diagnóstico, é necessário conjugar os achados com a clínica e com a identificação histológica de infiltração amilóide noutro local. Ainda assim, muitas vezes é necessário recorrer ao exame considerado gold standard para o diagnóstico: a biopsia endomiocárdica. 2 Caso clínico Os autores apresentam o caso de um homem de 71 anos, com antecedentes de hipertensão arterial e diabetes mellitus tipo 2 conhecidos desde há 10 anos, sem antecedentes familiares de relevo e com clínica de IC com dois anos de evolução. Internado em Serviço de Medicina Interna por dispneia e anasarca. As Fig. 1 e 2 traduzem, respectivamente, a telerradiografia de tórax e o ECG realizados na admissão. Para esclarecimento do quadro clínico, realizou ETT que revelou dilatação biauricular, hipertrofia severa do VE e disfunção sistólica ligeira do VE [fracção de ejecção (FE): 52%]. Interpretada a hipertrofia do VE em contexto de cardiopatia hipertensiva, e na ausência de disfunção ventricular importante, foi investigado o compartimento abdominal por tomografia computorizada que revelou hepatoesplenomegalia e ascite de grande volume. Foi realizada biopsia hepática, que não apresentou alterações específicas. Apresentou melhoria progressiva com terapêutica diurética, tendo alta orientado para consulta de Cardiologia. Foi observado em consulta externa quatro meses após o internamento. Apresentava agravamento da sintomatologia, tendo sido admitido no Serviço de Cardiologia. Repetiu ETT (Fig. 3-6) que revelou, de novo, um fluxo transmitral com padrão de tipo restritivo. Assim, e perante uma miocardiopatia hipertrófica de etiologia não esclarecida, foi realizada biopsia 206 Medicina Interna

Case reports Medicina Interna ETT (incidência eixo curto). Hipertrofia concêntrica do VE de grau severo. FIG. 4 ETT (paraesternal eixo longo). Hipertrofia do septo interventricular. FIG. 5 endomiocárdica que revelou lesões de fibro-elastose e hipertrofia nuclear, sem deposição de material do tipo amilóide. No mesmo procedimento realizou coronariografia que excluiu doença coronária angiograficamente significativa. Perante a ausência de diagnóstico histológico, realiza RMC (Fig. 7) que revelou hipertrofia biventricular e um padrão de RT sugestivo de miocardiopatia infiltrativa amiloidótica. Dado o elevado índice de suspeição de atingimento cardíaco por amiloidose, realizou biopsia aspirativa da gordura abdominal que identificou substância amilóide pelo método do Vermelho do Congo. O doente foi orientado para consulta externa de Medicina Interna. Do estudo realizado salienta-se uma relação κ/λ sérica normal (1,55), com imunoelectroforese/imunofixação de proteínas séricas e urinárias normal; o estudo imunofenotípico da medula óssea foi normal. Faleceu dois meses depois. Perante um diagnóstico de amiloidose sistémica, confirmado por biopsia da gordura abdominal, associado com achados clínicos e imagiológicos de miocardiopatia restritiva com PRT na RMC sugestivo, foi solicitada a reapreciação do fragmento de biopsia endomiocárdica com pesquisa de material amilóide. O estudo histoquímico com Vermelho do Congo mostrou substância amorfa, birrefringente à luz polarizada, confirmando a infiltração amiloidótica cardíaca (Fig. 8-9); o estudo imuno-histoquímico revelou tratar-se de uma proteína amilóide AL λ. ETT (estudo doppler). Fluxo transmitral, com relação E/A de 2,5 (disfunção diastólica de tipo restritivo). FIG. 6 Discussão O caso descrito ilustra a dificuldade no diagnóstico ante-mortem do envolvimento cardíaco na amiloidose. De facto, o carácter inespecífico dos sintomas associados à doença (essencialmente IC direita) causa atrasos no diagnóstico, sendo este feito já em fases avançadas nas quais a disfunção de órgão está presente, condicionando a eficácia do tratamento. O diagnóstico precoce é fundamental para a melhoria da morbi-mortalidade, 2,3,4 mas implica um elevado índice de suspeição clínica. PUBLICAÇÃO TRIMESTRAL VOL.19 Nº 4 OUT/DEZ 2012 207

Casos Clínicos Medicina Interna RMC-Realce tardio: padrão subendocárdico difuso (da esquerda para a direita: quatro câmaras, duas câmaras, eixo curto) FIG. 7 Perante os achados clínicos, electro e ecocardiográficos, a hipótese de diagnóstico de miocardiopatia infiltrativa seria a mais provável. Foi realizado cateterismo cardíaco com coronariografia para exclusão de doença coronária (pois apresentava alterações electrocardiográficas compatíveis com enfarte prévio) e realização de biopsia endomiocárdica. A angiografia coronária não apresentou doença coronária significativa, o que era de esperar, pois a amiloidose raramente afecta os vasos coronários epicárdicos.2 A biopsia endomiocárdica permanece o gold standard para o diagnóstico de amiloidose cardíaca.1,2,3,4 No entanto, no caso apresentado, a pesquisa de substância amilóide foi negativa. Nesta altura, a RMC, com a técnica de RT, permitiu uma caracterização tecidular, reforçando a hipótese de infiltração miocárdica por substância amilóide. Sobre este aspecto, fazem-se duas ressalvas: primeiro, sendo o diagnóstico de amiloidose cardíaca um diagnóstico histológico e, sendo a sensibilidade da biopsia endomiocárdica virtualmente de 100% (pois o depósito amilóide tem um padrão difuso no músculo cardíaco),2 questiona-se por que razão foi negativa a pesquisa de substância amilóide; segundo, na ausência de um resultado histológico miocárdico, questiona-se se os exames de imagem serão suficientes para afirmar o diagnóstico e, dentro destes, qual o papel da RMC. A avaliação de cortes histológicos para pesquisa de material amilóide depende de vários factores. O 208 Medicina Interna método de coloração pelo Vermelho do Congo permanece o gold standard para detecção de depósitos de amiloide.4 Assim, factores como a experiência do observador, uma boa técnica de fixação, um protocolo de coloração adequado (Vermelho do Congo alcalino) e o uso de cortes de 5-10 µm(4) são determinantes para uma correcta avaliação. Não foi possível identificar o motivo pelo qual a primeira avaliação histológica foi negativa para amiloidose, assumindo-se a influência do(s) factor(es) apresentados como causa(s) desse resultado. A RMC é uma poderosa ferramenta não invasiva para suportar a suspeita de amiloidose cardíaca, pois é uma técnica volumétrica que define com precisão dimensões, volumes, função e massas das cavidades cardíacas, com a capacidade de caracterizar anormalidades intersticiais intrínsecas através da técnica do RT.6 Até ao aparecimento deste método, o diagnóstico de amiloidose cardíaca, na ausência de biopsia endomiocárdica, era assumido com base na documentação histológica de infiltração amilóide em outro órgão, associado à combinação da clínica (sintomas de IC classe 2 New York Heart Association) com achados electro e ecocardiográficos2,3,5 baixa voltagem nas derivações dos membros ( 0,5 mv) e aumento da massa do VE com espessamento da parede ventricular (> 12 mm). Frequentemente, a FE do VE é normal ou ligeiramente deprimida até uma fase tardia da doença, podendo, ainda assim, surgirem sintomas de IC severa. Para além destes achados, o aspecto brilhante do miocárdio no ETT é muito característico da ami-

Casos Clínicos Medicina Interna Biopsia endomiocárdica (x200): coloração Vermelho do Congo. FIG. 8 loidose cardíaca. 2 A RMC mostra-se particularmente útil no diagnóstico diferencial entre espessamento da parede ventricular por infiltração miocárdica vs hipertrofia ventricular causada pela hipertensão arterial. A técnica de RT apresenta um padrão de realce difuso subendocárdico, circunferencial, característico da infiltração amiloidótica. 6 Estas alterações típicas no RT devem-se à expansão do compartimento intersticial pela infiltração de proteína amiloide. 2,5,6 Vogelsberg et al. 3 comparando a eficácia da RMC com a biopsia endomiocárdica para detecção de amiloidose cardíaca, concluíram que a primeira apresenta uma sensibilidade e especificidade de 80% e 94%, respectivamente, com um valor preditivo positivo de 92% e preditivo negativo de 85%. Com a confirmação destes dados, através de outros estudos, o diagnóstico de amiloidose cardíaca poderá vir a ser afirmado na presença de critérios clínicos e o típico padrão de RT na RMC, sendo a biopsia endomiocárdica apenas necessária nos casos em que a identificação do tipo de proteína amilóide é necessária para a orientação terapêutica. Para além disso, por fornecer informação directa da distribuição espacial da proteína amilóide no miocárdio, a RMC contrastada poderá ter valor prognóstico e ser usada no follow-up do tratamento. 2,3 Conclusão A infiltração miocárdica por substância amilóide é uma entidade rara, representando um desafio diagnóstico, pois as suas características clínicas sobrepõem-se Biopsia endomiocárdica (x400): coloração Vermelho do Congo sob luz polarizada. FIG. 9 com causas frequentes de IC. O diagnóstico precoce é muitas vezes difícil, sendo estabelecido já em fases tardias da doença, comprometendo o tratamento. Actualmente, a biopsia endomiocárdica permanece como o exame auxiliar para afirmar o diagnóstico. No entanto, com o advento da RMC com a técnica de RT, a identificação de um padrão infiltrativo típico poderá fazer desta técnica a ferramenta diagnóstica para afirmação de amiloidose cardíaca, evitando o recurso à biopsia. Embora os resultados de Vogelsberg et al. sejam encorajadores, são baseados em séries com pouca representatividade, que se relaciona com a raridade da patologia. A realização de estudos multicêntricos com maior número de sujeitos poderá confirmar estes resultados e, assim, validar o uso da técnica de RT para afirmação diagnóstica de miocardiopatia amilóide. Bibliografia 1. Nihoyannopoulos P, Dawson D. Restrictive cardiomyopathies. Eur J Echocardiogr. 2009; 10(8): iii 23-33. 2. Desai H, Aronow W, Peterson S, Frishman W. Cardiac Amyloidosis Approches to Diagnosis and Management. Cardiol Rev. 2010;18(1):1-11. 3. Vogelsberg H, Mahrholdt H, Deluigi C, Yilmaz A, Kispert E, Greulich S, Klingel K, Kandolf R, Sechtem U. Cardiovascular Magnetic Resonance in Clinically Suspected Cardiac Amyloidosis noninvasive imaging compared to endomyocardial biopsy. J Am Coll Cardiol, 2008; 51:1022-1030. 4. Picken M. Amyloidosis Where Are We Now and Where Are We Heading?. Arch Pathol Lab Med 2010; vol 134: 545-551. 5. Ruberg F, Appelbaum E, Davidoff R, Ozonoff A, Kissinger K, Harrigan C, Skinner M, Manning W. Diagnostic and Prognostic Utility of Cardiovascular Magnetic Resonance Imaging in Light-Chain Cardiac Amyloidosis. Am J Cardiol. 2009; 103(4): 544 549. 6. Maceira A, Joshi J, Prasad S et al. Cardiovascular magnetic resonance in cardiac amyloidosis. Circulation 2005;111:122 124. 210 Medicina Interna