O LIVRO DIDÁTICO DE MATEMÁTICA E A ABORDAGEM DO SISTEMA DE NUMERAÇÃO DECIMAL Maria Luiza Laureano Rosas Ana Coelho Vieira Selva Universidade Federal de Pernambuco UFPE - Brasil adailrosas@bol.com.br; anacvselva@uol.com.br RESUMO Esta pesquisa tem por objetivo analisar a prática pedagógica de uma professora da rede municipal de ensino, através de observações de sala de aula e análise do livro didático (LD) de matemática no trabalho com o Sistema de Numeração Decimal. Foram realizadas 14 (quatorze) observações de aulas de matemática e analisado o livro didático em relação ao Sistema de Numeração Decimal (SND). Neste artigo iremos analisar os dados relativos apenas à análise do livro didático adotado, considerando distribuição e introdução do conteúdo, atividades propostas, recursos utilizados e o manual do professor. Os resultados encontrados apontam que a obra analisada tem um capítulo destinado aos sistemas de numeração, em que aborda o SND e o sistema romano de numeração. O sistema monetário é apresentado em capítulo separado, sem referência alguma aos princípios do SND. O SND é introduzido a partir de uma pequena história em que se faz referência à necessidade humana de agrupamento e reagrupamentos em base dez. Em relação às atividades propostas, observa-se um grande número de atividades repetitivas e mecânicas, com pouca proposição de atividades que trabalhem os princípios do SND. Em relação aos recursos utilizados, constata-se a presença de atividades com apenas dois recursos pedagógicos (quadro-valor-do-lugar - QVL e material dourado). O manual do professor traz sugestões de atividades e orientações metodológicas que ampliam as atividades e recursos utilizados no livro do aluno. Assim, apesar de observar no livro alguns avanços teórico-metodológicos na abordagem do SND, principalmente observados no manual do professor, observamos ainda vários pontos que precisariam de maior complementação do professor na prática de sala de aula.
Palavras-chave: Matemática; Livro Didático; Sistema de Numeração Decimal. 1 Introdução Este artigo é parte integrante de nossa pesquisa que objetiva analisar o uso do LD de matemática no 2º ano do 1º ciclo do Ensino Fundamental (antiga 1ª série) na Rede de Ensino do Recife no trabalho com o SND. Esta é a primeira etapa da nossa pesquisa: analisar o LD adotado pela professora da escola-campo de pesquisa, visto que consideramos importante conhecer a abordagem que o LD traz do conteúdo para a compreensão do uso que o professor faz deste recurso em sala de aula. O LD pesquisado compõe a Coleção Caracol de Matemática, destinado à 1ª série do Ensino Fundamental, avaliado e recomendado pelo PNLD (BRASIL, 2006). 2 O Livro didático de Matemática e o Sistema de Numeração Decimal A importância do LD de matemática tem sido confirmada por várias pesquisas, que apontam que este recurso ainda é muito utilizado em sala de aula (BELFORT, 2003 e ROSAS, 2006, ROMANATO, 2004) e mostram que as avaliações constantemente realizadas pelo Ministério da Educação MEC resultam em avanços significativos na forma e conteúdos abordados nos livros de matemática. Entretanto, poucas investigações têm focalizado como tem se dado o uso do LD por parte do professor. Entre estas, Romanato (op. cit), por exemplo, reforça que os livros têm melhorado, mas ainda alerta para questões relacionadas à formação docente, considerando que o livro continua sendo usado em sala de aula como orientador da prática docente. É o livro, neste caso, que dita os conteúdos a serem trabalhados, a ordem em que aparecem e os métodos de ensino a serem usados em sala de aula. Neste sentido, o autor aponta para o despreparo do professor ao escolher e ao usar esse recurso. De nada adianta a qualidade do livro, acrescentam Rosas (2006) e Belfort (2003), se os professores não estiverem preparados para usá-lo. Para ser um bom recurso, o LD precisa ser escolhido com a participação efetiva dos professores. Faz-se necessário ainda que os docentes conheçam bem o livro e estejam preparados para trabalhar com ele em aula. Caso contrário, mesmo se tratando de um bom livro, poderá deixar de ser mais um recurso no processo ensino-aprendizagem, passando a dominar a prática do docente ou mesmo mecanizá-la no sentido de ir se passando as páginas, sem propor reflexão dos conteúdos, apenas para conseguir ao final do ano terminar o LD. Ao escolhermos analisar como o SND é proposto no LD, reconhecemos a
importância deste conhecimento como base para a construção e desenvolvimento de conceitos matemáticos, tal como a escrita numérica e as operações matemáticas. Desta forma, espera-se que o SND esteja não apenas presente na proposta dos livros didáticos destinados aos anos iniciais, mas que envolva propostas de atividades que explorem seus princípios através do uso de suportes representacionais variados e que articule este conhecimento ao uso cotidiano da matemática, como por exemplo, articulando ao Sistema Monetário. Respaldados em Vergnaud (1988 e 1991), Carraher (1982), Lerner e Sadovsky (1996), consideramos que o SND deve ser abordado contemplando os seguintes aspectos: a história da matemática; diferentes bases; os princípios do sistema, diferentes recursos pedagógicos, o sistema monetário e as operações matemáticas. Tudo isso deve ser proposto através de situações-problema que sejam desafiadoras para as crianças. Um LD que traz consigo uma abordagem do SND nestes moldes é um recurso que pode contribuir para a compreensão do sistema. No entanto, podemos afirmar que uma prática docente, que faça uso do LD de matemática no ensino do SND, não pode se deter apenas às orientações e atividades propostas pelo livro. Por melhor que seja, ele deve ser mais um instrumento didático na sala de aula. 3 Metodologia Análise do LD de matemática que compõe a coleção Caracol, destinado à 1ª série do Ensino Fundamental, considerando os seguintes aspectos: distribuição e introdução do conteúdo, atividades propostas, recursos utilizados e manual do professor. 4 Resultados encontrados Os resultados encontrados foram organizados em cinco categorias: distribuição do conteúdo; introdução ao conteúdo; atividades propostas; recursos utilizados; e manual do professor. 4.1 Distribuição do conteúdo No livro didático investigado existe um capítulo intitulado Sistemas de Numeração (capítulo seis), no entanto, encontramos capítulos anteriores que tratam de aspectos/conceitos/situações relacionados ao sistema decimal de numeração, como por exemplo, idéia de quantidade, algarismos, representação numérica, comparação e ordenação de números com um só algarismo e números no cotidiano. É uma exploração que parece ter por objetivo servir de suporte para o desenvolvimento da compreensão do número, do SND e das operações.
O capítulo destinado aos sistemas de numeração inclui o SND, a numeração par e ímpar, a numeração ordinal e a numeração romana. Nessa organização do livro pareceu surpreendente, pois esperávamos que esse capítulo trata-se de alguns sistemas de numeração existentes na história da Matemática e de aspectos relacionados mais diretamente à compreensão do SND. E, ao invés disso, encontramos aspectos como numeração par e ímpar e numeração ordinal. Em relação ao sistema de numeração romana, o LD pesquisado aborda esse sistema apenas com atividades de reconhecimento e memorização de símbolos e seqüência numérica. Assim, não há, por parte do livro, uma proposta de enriquecimento para o aluno, mostrando diferentes sistemas existentes na história e relacionando-os ao SND, adotado atualmente na maior parte das culturas, que é claramente mais poderoso e econômico do que sistemas anteriores. 4.2 Introdução ao conteúdo O SND é introduzido logo no início do LD (capítulo uma), com uma história em quadrinhos que faz referência à história da matemática. Essa história tem por título A invenção dos números e trata da estratégia humana de organização de objetos em grupos de dez para quantificá-los. Nos capítulos seguintes, o livro explora alguns conceitos/conteúdos relacionados a número e quantidade: algarismo, representação numérica, relação número e quantidade, ordenação e comparação de números com apenas um dígito, entre outros. E ainda traz outros conteúdos, como: cores, geometria. Só no sexto capítulo é retomada a estratégia de fazer agrupamentos na base dez, com uma situação de organização de margaridas em grupos de dez, ou amarradinhos, como o LD nomeia o agrupamento. Parece ao leitor, pela distância entre a história em quadrinhos e a situação de agrupamentos na base 10, que o SND está sendo introduzido novamente. A apresentação das ordens (unidade, dezena e centena) é realizada através da definição de ordem e de atividades já resolvidas, mostrando agrupamentos e reagrupamentos na base 10. 4.3 Atividades propostas As atividades propostas foram organizadas em três categorias: agrupamentos; relação entre as ordens; composição e decomposição. No Gráfico 01 (ver anexos) é apresentada a freqüência dessas atividades no livro.
Em relação aos agrupamentos, encontramos três atividades de formação de grupos em quantidade diferente de 10. O agrupamento e reagrupamento na base 10 foi observado em apenas uma atividade. As atividades de composição e decomposição foram as mais encontradas, sendo que 32 delas fazem uso do material dourado e do QVL, propondo representações através da escrita numérica e do material dourado. Já nas atividades de relação entre as ordens foram incluídas aquelas que comparam as ordens e indicam trocas. Observamos que nas atividades com as operações, são retomadas as trocas entre as ordens e a maioria das operações é trabalhada com o apoio do QVL e do material dourado. É importante salientar que também não foi encontrada nenhuma atividade que possibilitasse uma discussão sobre o papel do zero como mantenedor de posição. Considerando que o papel do zero traz dificuldade, atividades que analisassem esse princípio deveriam ser contempladas nos livros didáticos. 4.4 Recursos utilizados Encontramos apenas a utilização da tabela numérica, do QVL e do material dourado. Os dois últimos, como mostra o Gráfico 02 (ver anexos), são explorados em freqüência semelhante. A tabela numérica é trabalhada no LD, no entanto só com a finalidade de explorar a seqüência numérica. O ábaco também é encontrado no LD pesquisado, mas apenas em atividade que aborda a numeração par e ímpar. Um recurso tão transparente para trabalhar a posicionalidade e para a função do zero no sistema, como o ábaco, poderia ser explorado de forma mais significativa. Quanto aos materiais manipuláveis, não foi encontrada nenhuma proposta de uso no interior do livro do aluno. Em relação ao uso de jogos na matemática, encontramos um único jogo, jogo da trilha, que tem por finalidade explorar a seqüência numérica. Outros jogos não são propostos pelo LD. 4.5 Manual do professor Verificamos no manual do professor sugestão de uso de materiais manipuláveis, do material dourado, do QVL e da tabela numérica na abordagem do SND. O LD privilegia dois recursos pedagógicos, enquanto o manual do professor amplia esse leque, sugerindo também atividades com a tabela numérica e com os materiais manipuláveis na compreensão do SND. O ábaco, mais uma vez, não aparece como sugestão para o trabalho com o SND.
O manual ainda propõe atividades de trocas entre as ordens. Atividades do tipo de trocar barrinhas por cubinho, placas por barrinhas ou cubinhos. Essas atividades sugeridas não constam no livro do aluno, mostrando uma incoerência entre o que é proposto ao professor e o que efetivamente proposto ao aluno. Cabe apenas ao professor implementar tais atividades em sala de aula. 5 Algumas considerações Diante do exposto, consideramos que a abordagem do SND feita pelo LD pesquisado apresenta avanços teórico-metodológicos, principalmente observados no manual do professor. Entretanto, ainda é necessário realizar algumas reflexões relativas aos aspectos analisados, como por exemplo, a ausência de discussão do papel do zero, as pouquíssimas atividades de agrupamentos na base 10, a exploração do ábaco apenas em atividade sobre numeração par e ímpar, entre outros. No entanto, fica claro que o professor tem papel fundamental no uso desse LD em sala de aula. Um livro que apresenta as lacunas e incoerências expostas neste trabalho, no tocante ao SND, vai requerer do professor um cuidado maior na seleção e encaminhamento de atividade. As falhas do LD precisam ser eliminadas ou amenizadas. E os pontos positivos devem ser explorados. Assim, o professor tem a liberdade de tratar de forma diferente o que é proposto pelo LD e ampliar a abordagem do conteúdo com outras atividades, outros recursos, outras representações, situações-problema, etc., que contribuam para a compreensão do conteúdo. 6 Referências bibliográficas BELFORT, E. Reflexões sobre o papel do livro-texto em Matemática: um carcereiro ou um bom companheiro. CIPEM, 2003. BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Guia do Livro Didático. Plano Nacional do Livro Didático. 1ª a 4ª séries, Brasília, 2007. CARRAHER, T. N. O desenvolvimento mental e o sistema numérico decimal. In: CARRAHER, T. N. (org). Aprender pensando: contribuições da psicologia cognitiva para a educação. Petrópolis: Editora Vozes, 1982. DANTE, L. R. Livro didático de matemática: uso ou abuso? In: em Aberto, Brasília, ano 16, n. 69, 83-90, jan/mar, 1996. LERNER, D. e SADOVSKY, P. O sistema de numeração: um problema didático. In: PARRA, C. e SAIZ, I. (orgs.). Didática da matemática: reflexões psicopedagogicas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. MARSICO, M. T., CUNHA, M. C. T. da, ANTUNES, M. E. M., CARVALHO NETO, A. C. de.
Caracol: matemática: 1ª série. Coleção Caracol. São Paulo: Scipione, 2004. ROMANATO, M. C. O livro didático: alcances e limites. Anais do VII EPEM, São Paulo, USP, 2004. ROSAS, M. L. L. Ensino e aprendizagem de matemática no processo de alfabetização infantil. (monografia). Nazaré da Mata: FFPNM/UPE, 2006. VERGNAUD, G. Psicologia do desenvolvimento cognitivo e didática das matemáticas. Um exemplo: as estruturas aditivas. In: Análise Psicológica. V. 1, 75-90, 1986.. El niño, las matematicas y la realidad: problemas de la enseñanza de las matematicas en la escuela primaria. México: Trillas, 1991. 7 Anexos Gráfico 01 Freqüência de atividades propostas na abordagem do SND pelo LD de Matemática 50 40 30 20 10 Agrupamentos Relação entre as ordens Composição e decomposição 0 Gráfico 02 Freqüência de recursos utilizados na abordagem do SND pelo LD de Matemática 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 QVL Mat Dourado Tabela numérica