O conceito de totalidade em Marx

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Transcrição:

O conceito de totalidade em Marx Texto base: MARX, Karl. A mercadoria. In: MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, pp. 113-158. De Hegel a Marx: a totalidade como falsidade efetiva. Segundo Martin Jay (1984), se não há consenso na tradição do marxismo ocidental acerca da diferença de certas posições de Hegel e Marx, dificilmente se discordaria que, mesmo tendo negado as premissas idealistas do holismo hegeliano (p. 63), Marx permaneceu sendo "um pensador holista" (p. 61). Se alguns viram isso como um mérito seu na apropriação crítica de Hegel, outros, como Habermas, veem nesse fato uma mácula metafísica: A figura de pensamento própria à filosofia da práxis obriga a absorver os momentos do trabalho e da natureza, inicialmente referidos como distintos um ao outro, na totalidade de um processo de reprodução autoreferencial. Por fim, é a própria natureza que se reproduz a si mesma mediante a reprodução do macro-sujeito constituído pela sociedade e dos sujeitos que nela agem. Mesmo Marx não escapou ao pensamento totalizante de Hegel. (HABERMAS, 2000, p. 474) A crítica ao recurso ao conceito de totalidade - não por acaso, tratado por Habermas como "pensamento totalizante" - se vincula ali a uma crítica geral da assim chamada "filosofia do sujeito" 1. O pressuposto é que toda totalidade só pode ser pensada como produzida por uma atividade sintética subjetiva através da faculdade da razão que dá unidade à experiência, seja o seu realizador o sujeito transcendental, o espírito ou o indivíduo que investiga e conhece o mundo. Ora, se Marx "não escapou" de se valer de um conceito de totalidade, parece, no entanto, se subtrair à crítica de Habermas. Pois a noção de totalidade emerge já no início do desenvolvimento teórico de Marx como uma imposição do objeto investigado, na qualidade de resultado de uma síntese objetiva que emerge historicamente. Assim, a lide de Marx com Hegel é de fato marcada por ambiguidades e idas e vindas, mas em razão do fato de que aquele reconheceu na obra deste a expressão distorcida de uma determinação real do mundo em seu tempo. A dialética não possuiria uma validade absoluta e incondicionada, mas seria adequada a um objeto que se constituiu 1 Desde a perspectiva de seu "pensamento pós-metafísico", "A reconstrução racional inscreve-se no programa do tornar consciente, mas se dirige ao sistema anônimo de regras e não se refere a totalidades. Em contrapartida, a autocrítica implementada metodicamente refere-se a totalidades, mas com a consciência de que jamais poderá esclarecer o implícito, o pré- predicativo, o não-atual do pano de fundo próprio ao mundo da vida" (HABERMAS, 2000, p. 418). 1

historicamente como uma idealidade real, uma abstração objetiva e existente. Nos anos que sucederam a morte de Hegel, dominou entre alguns dos assim chamados jovens hegelianos uma tendência à recuperação do dado imediato contra a mediação abrangente do conceito, do sensível contra o inteligível, do ente contra o ser, da natureza contra a história, do positivo contra o negativo etc. (Cf. LÖWITH, 2014, pp. 77-148). É verdade que, fascinado particularmente pelo pensamento de Feuerbach, Marx flerta em alguma medida com tendências semelhantes até 1844. Assim, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx concede de início Feuerbach "[demoliu] o embrião da velha dialética e da velha filosofia [de Hegel]" (MARX, 2010b, p. 116) e que "a crítica da economia política deve, além do mais, assim como a crítica positiva em geral, sua verdadeira fundamentação às descobertas de Feuerbach. De Feuerbach data, em primeiro lugar, a crítica positiva humanista e naturalista." (MARX, 2010b, p. 20). Feuerbach rejeita em Hegel uma incapacidade de dar conta do que quer que subsista independentemente do pensamento. A positividade do sensível imediato e não contraditório poderia servir de fundamento para a crítica de uma falsificação da realidade pelo idealismo. A crítica do cristianismo ilustra o ponto: tratar-se-ia de opor uma concepção antropológica naturalista às abstrações imateriais da religião, desvendando as últimas como projeções intelectuais da primeira. Já nas Teses sobre Feuerbach, no entanto, Marx rejeita este ponto de vista como o de um materialismo vulgar, e lhe contrapõe um "novo materialismo", que incorpora uma noção alargada de espontaneidade, não apenas a espontaneidade do conceito, já presente no idealismo, mas uma espontaneidade da atividade prática material, que não apenas constitui o mundo idealmente como aquilo que ele é, e, nesse sentido, o naturaliza, mas o nega enquanto tal e o modifica materialmente. A insuficiência do "velho materialismo" de Feuerbach, um materialismo cujo ponto de vista, para Marx, é a sociedade civil-burguesa, está em sua impotência enquanto crítica. Mesmo que as intenções de Feuerbach se dirigissem a uma reforma social, o mero desvelar a "essência verdadeira" das idealidades realmente existentes não as dissolve enquanto tais, mas antes as naturaliza. "Feuerbach não vê (...) que o próprio 'sentimento religioso' é um produto social e que o indivíduo abstrato que ele analisa pertence a uma determinada forma de sociedade" (MARX e ENGELS, 2007, p. 534). Construtos ideais como Deus, o Estado ou o dinheiro são dotados de uma efetividade recalcitrante à crítica meramente teórica. Um dos corolários desse pensamento é de que a crítica precisa passar à práxis, como conclui a célebre décima-primeira tese. Um outro é que a teoria precisa levar a sério a efetividade de certas abstrações, compreendendo que, apesar de falsearem algo, são elas mesmas parte da realidade que falseam, e que, portanto, elas dizem algo sobre a "base material" que as determinam. Uma tal perspectiva, todavia, já comparecia eventualmente em Marx desde há um tempo. Na 2

Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, por exemplo, referindo-se às noções mutuamente excludentes de soberania divina e soberania popular, Marx conclui que "uma das duas soberanias é uma falsidade, ainda que uma falsidade existente" (MARX, 2010a, p. 49, grifo meu). Nos Manuscritos, convivem em tensão uma perspectiva feuerbachiana e uma outra que ameaça com ela romper ao se deparar com um objeto (ao menos até então) material por excelência, mas que carrega em si idealmente a representação de todos os demais. Trata-se do dinheiro, que, "enquanto conceito existente e atuante do valor, confunde e troca as coisas" e "é então a confusão e a troca universal de todas as coisas, portanto, o mundo invertido, a confusão e a troca de todas as qualidades naturais e humanas", fazendo "da representação efetividade e da efetividade uma pura representação" (MARX, 2010b, p. 160-161). No tratamento de um objeto abstrato, Marx descobre um momento de verdade do idealismo hegeliano. Marx chega a se referir à Lógica hegeliana como "o dinheiro do espírito, o valor do pensamento, o valor especulativo do homem e da natureza", pois ambos, as categorias da lógica e o dinheiro, são "essência[s] tornada[s] totalmente indiferente[s] contra toda determinidade efetiva" (MARX, 2010b, p. 120). Nisso já se antecipa em alguma medida o tratamento que Marx dará ao problema em sua obra de maturidade. Ainda em conflito com a teoria do valor-trabalho de Ricardo, Marx não dispõe da categoria do "valor", mas já descobre no dinheiro, que o manifesta, suas características. É o valor, na medida em que emerge historicamente e se torna autorreferencial, que se constitui em uma totalidade social, obrigando a crítica da economia política a herdar não apenas a categoria hegeliana, como também seu método. Assim, n'o Capital, nas palavras de Marcos Müller, O que legitima e torna, assim, em última análise, válida a desvinculação, reivindicada por Marx, entre o núcleo racional da dialética e seus compromissos com a metafísica hegeliana do conceito, é o diagnóstico histórico do capitalismo como modo de produção dominado pela abstração real do valor e do seu fundamento, o trabalho abstrato capitalizado. É o diagnóstico histórico de uma sociedade cujas relações de produção estão dominadas por um universal que se auto-adjudica uma subjetividade pseudo-concreta às expensas da atividade concreta dos indivíduos reais: o capital enquanto valor que se autovaloriza, princípio determinante da reprodução material de uma sociedade que repõe todas as suas condições históricas e lógicas como momentos internos da sua reprodução. (MÜLLER, 1982, p. 33) A totalidade de que falará Marx não será, portanto, a totalidade lógica do conceito, mas uma totalidade que se desenvolvimento do valor. constituiu empírica e historicamente enquanto tal a partir do surgimento e do 3

A emergência histórica de uma totalidade material Já na Ideologia Alemã, Marx deflaciona o conceito hegeliano de história mundial em termos materialistas. A história mundial, isto é, a história enquanto totalidade, não é "o desenvolvimento necessário a partir do conceito da sua liberdade, dos momentos da razão e, com isso, da sua autoconsciência e da sua liberdade, - a exposição e a efetivação do espírito universal", como queria Hegel (2010, p. 306), mas é algo que se constitui enquanto tal a partir de uma síntese objetiva realizada através da divisão do trabalho. Não se trata de uma síntese realizada pelo espírito ou mesmo pelo sujeito no ato de conhecimento histórico, mas de uma síntese que se dá na própria coisa, na emergência e estabelecimento de diferentes estados-nação que se integram economicamente, criando um sentido mundial, no temporal, inclusive para os acontecimentos precedentes: aspecto espacial, e histórico, no aspecto A grande indústria [...] universalizou a concorrência [...], criou os meios de comunicação e o moderno mercado mundial, submeteu a si o comércio, transformou todo capital em capital industrial e gerou, com isso, a rápida circulação (o desenvolvimento do sistema monetário) e a centralização dos capitais. Criou pela primeira vez a história mundial, ao tornar toda nação civilizada e cada indivíduo dentro dela dependentes do mundo inteiro para a satisfação de suas necessidades, e suprimiu o anterior caráter exclusivista e natural das nações singulares. (MARX e ENGELS, 2007, p. 60, grifo meu). A história mundial é cooriginária, portanto, ao capital, que, compreendido como "o valor que se autovaloriza" (MARX, 2013, p. 230), fecha-se em uma totalidade social em seu desenvolvimento, determinando todas as suas partes. Marx volta a tratar da emergência histórica do capital enquanto totalidade nos Grundrisse: É preciso considerar que as novas forças produtivas e relações de produção não se desenvolvem do nada, nem do ar nem do ventre da ideia que põe a si mesma; mas o fazem no interior do desenvolvimento da produção existente e das relações de produção tradicionais herdadas, e em contradição com elas. Se no sistema burguês acabado cada relação econômica pressupõe a outra sob a forma econômico-burguesa e, desse modo, cada elemento posto é ao mesmo tempo pressuposto, o mesmo sucede em todo sistema orgânico. Como totalidade, esse próprio sistema orgânico tem seus pressupostos, e seu desenvolvimento na totalidade consiste precisamente em subordinar a si todos os elementos da sociedade, ou em extrair dela os órgãos que ainda lhe faltam. É assim que devém uma totalidade historicamente. O vir a ser de tal totalidade constitui um momento de seu processo, de seu desenvolvimento. - Por outro lado, quando, no interior de uma sociedade, as relações de produção modernas, i.e., o capital está desenvolvido em sua totalidade e essa sociedade se apodera de um novo território, como as colônias, p. ex., ela descobre, mais especificamente, seu representante, o capitalista, [descobre] que seu capital deixa de ser capital sem trabalho assalariado, e 4

que um de seus pressupostos não é só a propriedade fundiária em geral, mas a propriedade fundiária moderna [...] O capital tem origem na circulação e põe o trabalho como trabalho assalariado; forma-se dessa maneira e, desenvolvido como totalidade, põe a propriedade da terra tanto como sua condição quanto como sua antítese. Mas isso evidencia apenas que assim ele criou o trabalho assalariado como seu pressuposto universal. (MARX, 2011, pp. 217-218.) Como dito, o capital é definido por Marx como o "valor que se autovaloriza". Já o próprio valor possui em si tal tendência totalizante, na medida em que "é uma categoria de uma totalidade direcionalmente dinâmica" (POSTONE, 2014, p. 311). Se o valor é pressuposto lógico do capital, que é definido a partir daquele, na interpretação de Postone, "o valor como categoria totalizante é constituído somente na sociedade capitalista" (ibidem). O valor, como exposto no capítulo da mercadoria, constitui-se enquanto síntese do tempo de trabalho humano abstrato socialmente necessário para a produção de uma mercadoria, pois o trabalho é o único elemento comum a todas as mercadorias, emergindo objetivamente como critério de sua comparação no ato da troca. Nessa qualidade, ele já se oferece como um dado aos agentes do mercado, e a descoberta da lei de sua formação pela ciência econômica deixa intacta a sua validade (MARX, 2013, p. 149). Trata-se, portanto, de uma síntese objetiva, realizada na coisa, e que se oferece como algo pronto e acabado, dotado de objetividade, mesmo que uma "objetividade puramente social" (MARX, 2013, p. 125). Tendo se formado objetivamente nas relações de produção e troca entre os homens, o valor se cristaliza nas coisas e torna os homens reféns de sua regra de equivalência. É o que Marx chama de fetichismo da mercadoria, o fato de que "uma relação social determinada entre os próprios homens [...] aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas" (MARX, 2013, p. 147). Forma-se o capital ("autovalorização do valor") na medida em que, na circulação, o valor é utilizado para obter um mais-valor. A "fórmula geral do capital", segundo Marx, é D-M-D', o que representa a troca de um certa quantia de dinheiro (D) por uma mercadoria (M), a fim de que essa mercadoria seja trocada por uma quantia maior de dinheiro (D'). Considerando que o dinheiro não é senão "a mercadoria que funciona como medida de valor" (MARX, 2013, p. 203), e, nessa qualidade, é também portadora de valor, tem-se na circulação o processo no qual O valor passa constantemente de uma forma a outra [i.e., na troca, ora a forma de mercadoria, ora a forma de dinheiro], sem se perder nesse movimento, e, com isso, transforma-se no sujeito automático do processo. [...] o valor se torna, aqui, o sujeito de um processo em que ele, por debaixo de sua constante variação de forma [...], altera sua própria grandeza e, como mais valor, se aparta de si mesmo como valor originário, valoriza a si mesmo. Pois o movimento em que ele adiciona mais - valor é seu próprio movimento; sua valorização é, portanto, 5

autovalorização. Por ser valor, ele recebeu a qualidade oculta de adicionar valor (MARX, 2013, p. 230, tradução modificada). Assim, na medida em que se torna autorreferencial, o capital fecha-se em uma totalidade que passa a se comportar de forma totalizante, subsumindo a si aquilo que se lhe apresenta como estranho à sua lógica. Marx alude, ao final da citação dos Grundrisse, ao que chama de subsunção do trabalho sob o capital, o que exemplifica seu processo de constituição enquanto totalidade. Em seu desenvolvimento, o capital se totaliza subsumindo o trabalho a si próprio (isto é, à sua lógica de autovalorização). Trata-se, de início, de uma "subsunção formal", com a transformação da força de trabalho em mercadoria por meio da privação do trabalhador dos meios de produção e de sua liberação jurídico-formal da servidão para vender sua força de trabalho. O capital subsume formalmente o trabalho Mas mais que isso, em seu desenvolvimento, no mero ato de, por meio dele, extrair o valor de sua autovalorização. com o surgimento da grande indústria e a racionalização da produção, na qual o trabalhador é que se torna objeto de um processo produtivo automatizado que se converte em sujeito (i.e., desenvolve uma espécie de intencionalidade sistêmica), o capital impõe ao processo mesmo de trabalho sua própria lógica, e "o lugar da subsunção formal do trabalho sob o capital é ocupado por sua subsunção real" (MARX, 2013, p. 578). Nas palavras de Postone (2014, p. 211), "o trabalho abstrato comeca a quantificar e moldar o trabalho concreto a sua imagem, a dominação abstrata do processo de trabalho em si." valor comeca a se materializar no Apesar de seu caráter de totalidade, o capital permanece, para Marx, sempre estruturado internamente por contradições. Suas contradições internas não negam seu caráter total, pois tratase sempre de pólos contraditórios que se constituem pela mediação um do outro, como, por exemplo, a contradição entre capital e trabalho, constituídos um em dependência do outro, ou a contradição que enseja a "queda tendencial da taxa de lucro", aquela entre a tendência do capital a extrair sempre uma quantidade absoluta maior de mais-valor e sua tendência contrária a diminuir a quantidade relativa de extração de mais valor mediante o desenvolvimento das forças produtivas, que por sua vez tem lugar justamente segundo a primeira tendência, i.e., em vista de uma maior extração absoluta de mais valor do ponto de vista do capitalista individual. O capital, é, portanto, uma totalidade internamente contraditória que se movimenta processualmente, na forma da autovalorização do valor, com a resolução e reposicionamento de suas contradições. 6

Referências HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Trad. Luiz Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000. HEGEL, G.W.F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. Trad. Paulo Meneses et al. São Paulo: Loyola, 2010. JAY, Martin. Marxism and totality: The adventures of a concept from Lukács to Habermas. Berkeley: University of California Press, 1984. LÖWITH, Karl. De Hegel a Nietzsche: A ruptura revolucionária no pensamento do século XIX. Trad. Flamarion Ramos e Luiz Martin. São Paulo: UNESP, 2014. MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. 2ª ed. rev. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2010a. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. 4ª reimpr. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2010b. MARX, Karl. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da economia política. Trad.Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011. MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007. MÜLLER, Marcos Lutz. Exposição e método dialético em 'O Capital'. Boletim SEAF, n. 2, 1982, pp. 17-41. POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social: Uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. Trad.Amilton Reis e Paulo César Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2014. 7