Abordagem do adolescente com anemia

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ARTIGO ORIGINAL 41 Anne Paola Gallas Duarte 1 Cláudio Abuassi 2 Approach of the adolescent with anemia Resumo A anemia é uma das doenças mais comuns na adolescência, sendo a ferropênica a principal causa, devido a fatores como aumento da demanda pelo estirão pubertal, hábitos alimentares inadequados e irregularidades menstruais. O médico de adolescentes precisa, todavia, estar atento às outras causas de anemia nessa faixa etária, visando oferecer o tratamento mais adequado ao seu paciente. O presente artigo revisa a abordagem diagnóstica inicial ao adolescente com anemia, baseando-se na classificação das anemias conforme seu mecanismo de instalação, a partir de exames simples como hemograma completo e contagem de reticulócitos, que, somando-se às informações fornecidas pela anamnese e exame físico completo, auxiliam no direcionamento do restante da investigação. Unitermos Anemia; adolescência Abstract Anemia is one of the most common illnesses in the adolescence, being the iron deficiency anemia the main cause, due to factors as the increase of the demand by the pubertal growth spurt, inadequate eating habits and menstrual irregularities. Teenagers doctors need, though, to be attentive to the other anemia causes in that age group, seeking to offer the most appropriate treatment to his/her patient. The following article overhauls the initial diagnostic approach to the adolescent with anemia, basing itself in the classification by its mechanism of development, from simple exams as complete blood count and tally of reticulocytes, adding itself to the information supplied by the anamnesis and complete physical exam, helping then, on orientation in remaining inquiry. Key words Anemia; adolescence Introdução A anemia é uma das doenças mais comuns na adolescência e, segundo estudos brasileiros, independentemente do sexo, há prevalência de até 31% (6). A observação de sinais e sintomas relacionados com anemia é obrigatória. O profissional da saúde deve também ter conhecimento acerca do comportamento nos índices hematimétricos nessa fase da vida. No sexo feminino eles se mantêm estáveis durante a adolescência, porém entre os meninos são dependentes da idade e, principalmente, do desenvolvimento puberal (4, 9). Neles, o hematócrito, sob influência da testosterona, aumenta no decorrer da puberdade (4). Tal elevação não ocorre entre as meninas tanto por ação hormonal (tendo os estrógenos ação inversa, inibindo os efeitos da eritropoetina) (9) como por perdas menstruais (cerca de 20 mg de ferro por período menstrual) (4). Isso se reflete nos diferentes pontos de corte de hemoglobina e hematócrito conforme idade e gênero para o diagnóstico de anemia em adolescentes, propostos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (10), como podemos observar na Tabela 1. 1 Médica de adolescentes da enfermaria do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente do Hospital Universitário Pedro Ernesto (NESA/HUPE/UERJ). 2 Médico do ambulatório do NESA/UERJ; médico pediatra do Hospital Central do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro (HCCB/RJ). Adolescência & Saúde volume 6 nº 3 setembro 2009

42 Duarte & Abuassi Tabela 1 Valores de corte para anemia em adolescentes conforme a Organização Mundial da Saúde Idade Hemoglobina (g/dl) Hematócrito (%) Meninas Meninos Meninas Meninos < 12 anos 11 11 34 34 12 a 15 anos 11,5 12 34 35 15 a 18 anos 11,7 12,3 34 37 > 18 anos 11,7 13,2 34 39 A deficiência de ferro é a principal causa de anemia em adolescentes, tendo o aumento da demanda devido ao estirão pubertal associado a outros fatores de risco, como inadequados hábitos alimentares e irregularidade menstrual. O médico de adolescentes, porém, precisa estar atento às outras possíveis causas de anemia nessa faixa etária, que exigem condutas terapêuticas específicas. O presente artigo tem como objetivo revisar a abordagem diagnóstica inicial dos adolescentes com anemia, baseando-se na classificação conforme seu mecanismo de instalação. Abordagem diagnóstica do adolescente com anemia A abordagem do adolescente com anemia pode ser iniciada por meio de exame clínico detalhado (informações na anamnese e exame físico podem sugerir fortemente uma causa) e exames laboratoriais simples como hemograma completo e contagem de reticulócitos (eritrócitos recém liberados pela medula óssea [MO], cujo valor normal varia entre 1% e 2%) (2), que nos ajudam a direcionar o restante da investigação. Classificação das anemias O mecanismo para redução da massa eritrocitária observada em nosso paciente pode estar na sua inadequada produção na MO, na destruição periférica (hemólise) ou na perda de sangue (hemorragia). Pode-se avaliar a resposta medular à anemia a partir da contagem dos reticulócitos, desde que realizados dois ajustes: correção para o grau de anemia, multiplicandose a porcentagem de reticulócitos pela relação entre a hemoglobina encontrada (ou hematócrito) e o valor esperado para faixa etária e sexo. Isso é necessário, pois na anemia poderia haver aumento na porcentagem de reticulócitos sem alteração real na contagem absoluta; como na anemia pode haver a liberação prematura de reticulócitos na periferia, que sobrevivem mais de um dia na circulação e aumentariam falsamente a estimativa de produção medular de reticulócitos diária, usa-se um fator de correção que varia de um a três, conforme o grau da anemia divide-se o valor encontrado após a primeira correção por dois, de uma forma geral (2). Na ausência de policromasia (esses reticulócitos têm uma cor azul-acizentada) no sangue periférico, não se faz necessária essa segunda correção. Como nem sempre teremos o esfregaço do sangue periférico prontamente disponível, também podemos estimar a duração desses reticulócitos na circulação de acordo com o hematócrito (7) (Tabela 2). Tabela 2 Duração estimada dos reticulócitos na circulação conforme o hematócrito Hematócrito acima de 40% 30% a 40% 20% a 30% abaixo de 20% Duração em dias 1 1,5 2 2,5 Realizadas as correções, temos o índice de produção medular de reticulócitos. Com anemia estabelecida, se o índice reticulocítico for inferior a 2,5, inferimos que há problema na liberação eficaz de eritrócitos pela medula, seja por uma medula hipoproliferativa ou por uma com hiperplasia eritroide, como veremos adiante. Sendo igual ou maior a 2,5, entende-se que a MO está funcionando adequadamente e o problema está na periferia: perda (sangramento) ou destruição (hemólise), havendo substrato adequado para a resposta medular (Figura). volume 6 nº 3 setembro 2009 Adolescência & Saúde

Duarte & Abuassi 43 Índice de produção de reticulócitos Menor que 2,5 Maior ou igual a 2,5 Normocítica VCM alterado Hemólise ou perda de sangue Medula hipoproliferativa Lesão da MO - infiltração - fibrose - aplasia Distúrbios de maturação (ocorre hiperplasia eritroide, com destruição de eritroblastos no interior da MO) Microcitose Deficiência de ferro em estágios iniciais Macrocitose Defeitos citoplasmáticos - deficiência grave de ferro - talassemia - anemia sideroblástica Diminuição do estímulo da eritropoetina - doença renal - supressão da síntese e da resposta medular por citocinas inflamatórias - necessidade tecidual de oxigênio reduzida, por estados hipometabólicos Defeitos nucleares - deficiência de ácido fólico - deficiência de B12 - fármacos - algumas síndromes mielodisplásicas Figura - Fluxograma de classificação das anemias (2) VCM: volume corpuscular médio; MO: medula óssea. A morfologia dos eritrócitos nos auxilia a avançar no raciocínio diagnóstico das anemias com índice reticulocítico baixo (2) : Hemácias normocíticas e normocrômicas sugerem medula hipoproliferativa, que pode ser secundária à diminuição do estímulo pela eritropoetina, às lesões da MO (aplasia como por fármacos e vírus infiltração, fibrose) ou à deficiência de ferro em estágios iniciais. A redução do estímulo da eritropoetina (hormônio regulador da produção eritrocitária produzido fundamentalmente por células de revestimento dos capilares peritubulares no rim) pode ocorrer por ação de citocinas inflamatórias (que tanto diminuem a produção de eritropoetina como suprimem a resposta da MO ao seu estímulo), por doença renal e por estados hipometabólicos (como no hipotireoidismo e na inanição proteica) (1). Na anemia de doença crônica tem-se, além das ações das citocinas já descritas anteriormente, um suprimento inadequado de ferro à MO, apesar das reservas apropriadas de ferro (1). Habitualmente as anemias hipoproliferativas apresentam-se como normocíticas e normocrômicas, mas podem ser observadas células microcíticas hipocrômicas com anemias por deficiência leve de ferro e inflamação de longa duração (2). Ambas apresentam-se com ferro sérico baixo, mas com di- Adolescência & Saúde volume 6 nº 3 setembro 2009

44 Duarte & Abuassi ferentes padrões para o restante da cinética do ferro, conforme observamos na Tabela 3, que com o contexto clínico auxilia na sua diferenciação. Apesar de pouco utilizada na prática clínica com esse intuito, a coloração para ferro na MO pode elucidar o diagnóstico. Tabela 3 Testes de suprimento e armazenamento do ferro nas anemias ferropênica e de doença crônica/inflamação Ferro sérico TIBC Ferritina sérica Deficiência de ferro baixo alto baixa Anemia da inflamação baixo nulo ou baixo normal ou alta TIBC: valor da capacidade ferropéxica. A deficiência de ferro inicialmente acarreta depleção das reservas (com consequente redução da ferritina), evoluindo com diminuição do ferro sérico e, então, queda de hemoglobina e hematócrito. Precocemente podem ser vistos eritrócitos microcíticos no esfregaço periférico (com volume corposcular médio [VCM] ainda normal, já que este não é sensível ao surgimento de pequenas populações micro ou macrocíticas). À medida que a anemia agrava-se, hipocromia e microcitose tornam-se mais evidentes, e a medula (inicialmente hipoproliferativa) evolui com hiperplasia eritroide, como visto adiante (1, 2). Hemácias com alterações nos índices eritrocitários sugerem distúrbios de maturação, em que, apesar de haver hiperplasia eritroide, tem-se anemia pela destruição dos eritroblastos em desenvolvimento no interior da medula. Defeitos de maturação citoplasmáticos são associados a microcitose e hipocromia, como a anemia por deficiência grave de ferro (com as alterações na cinética do ferro citadas) e as talassemias (com um espectro de apresentação clínico-laboratorial conforme a variante). É fundamental a diferenciação entre anemia ferropênica e talassemia (em que o volume corpuscular médio costuma ser mais baixo e os testes de suprimento e armazenamento do ferro são normais) para evitar-se a iatrogênica reposição de ferro nesses pacientes. O diagnóstico diferencial entre talassemias e outras hemoglobinopatias faz-se pela eletroforese de hemoglobina. Defeitos de maturação nuclear estão associados à macrocitose, como a anemia por deficiência de ácido fólico ou vitamina B12 ou devido à ação de vários fármacos (como o metotrexate, por antagonismo do folato, e a zidovudina, por inibição direta da síntese de DNA). Causas de anemia macrocítica em adolescentes podem incluir estritas dietas vegetarianas/ macrobióticas que podem resultar em deficiência de B12 e uso de contraceptivos oral (4), assim como de alguns anticonvulsivantes, como fenitoína e fenobarbital (8). As síndromes mielodisplásicas, infrequentes nessa faixa etária, compreendem um grupo heterogêneo de distúrbios hematológicos que se apresentam normalmente com anemia, isoladamente ou como bi ou pancitopenia (neutropenia ou plaquetopenia isolada é incomum). Com baixo índice reticulocítico, a anemia é frequentemente macrocítica, mas também pode ser microcítica (como na anemia sideroblástica, que quase sempre reflete mielodisplasia) ou normocíticas (2, 5, 11). Outras causas de anemia sideroblástica incluem alcoolismo crônico e intoxicação por chumbo (5). Encontrando-se índice reticulocítico igual ou maior a 2,5, devemos estar diante de perda sanguínea ou hemólise. Não podemos esquecer que entre a perda de sangue aguda e o incremento de reticulócitos na periferia há um intervalo de tempo, quando há aumento da produção de eritropoetina e, então, proliferação medular. O número de reticulócitos liberados pela medula começa a aumentar nos primeiros dois dias, mas a resposta eritropoiética máxima se dá em sete a 10 dias (3). Por outro lado, a perda crônica de sangue (como em alguns quadros de hemorragia digestiva) apresenta-se com mais frequência pela anemia ferropênica. Quanto à anemia hemolítica, são inúmeras as causas que podem ser tanto hereditárias (algumas hemoglobinopatias, defeitos enzimáticos, como a deficiência de G6PD, esferocitose hereditárias e outras) como adquiridas (as imunes, por infecções, toxinas, hiperesplenismo, traumatismos micro e volume 6 nº 3 setembro 2009 Adolescência & Saúde

Duarte & Abuassi 45 macrovasculares, como os que ocorrem em portadores de válvulas mecânicas, hemoglobinúria paroxística noturna, entre outras). É preciso ressaltar ainda que tanto pode haver sobreposição de mecanismos responsáveis pela anemia desencadeados por uma única patologia (como nas hemoglobinopatias, como anemia falciforme e talassemia, que exibem quadros mistos (2) ) como sobreposição de diversas causas no estabelecimento da anemia do nosso paciente. Como exemplos dessa última situação podemos citar o paciente com insuficiência renal crônica (IRC) em hemodiálise (com anemia pela doença renal associada à perda de sangue por meio do procedimento de diálise (1) ), o adolescente com severa desnutrição (podem-se ter, associadas ao estado hipometabólico, carências de nutrientes como ferro e folato, principalmente) ou o paciente com anemia de doença crônica e deficiência de ferro sobreposta. Isso demanda contínua atenção pelo médico assistente para não privarmos nosso paciente do tratamento mais adequado de sua situação. Anamnese e exame físico O mecanismo de instalação da anemia, com base em índices reticulocítico e hematimétricos conforme descrito anteriomente, pode ser inicialmente sugerido pelas informações obtidas na anamnese e no exame físico. Alguns pacientes podem ter sido encaminhados para investigação de anemia detectada por outro profissional, porém avaliaremos muitos adolescentes sem esse diagnóstico sindrômico prévio e nesse caso devemos estar atentos para queixas inespecíficas, como fadiga, cansaço, dispneia e tontura, havendo um amplo espectro de diagnóstico diferencial. São importantes informações o tempo de instalação do quadro; outros sintomas e sinais associados (como artralgia, febre, alterações na pele e fâneros); história de sangramentos maiores (que possam ser a causa da anemia) ou menores (como epistaxe), que assim como a presença de equimoses ou petéquias podem sugerir plaquetopenia associada; uso de medicações; exposição a substâncias tóxicas; histórico alimentar; possibilidade de gestação e padrão dos ciclos menstruais nas meninas; história pregressa que predisponha à evolução para doença renal (como doença do refluxo vesicoureteral grave); história de cirurgia no trato gastrointestinal; história de neoplasia prévia/ tratamento quimio e radioterápico; história familiar e outras. No exame físico devemos estar atentos para possíveis repercussões hemodinâmicas (verificar frequência cardíaca e pressão arterial, em decúbito e ortostase, frequência respiratória, sopro cardíaco, sinais de insuficiência cardíaca de alto débito), coloração das mucosas, presença de queilite ou alterações na língua, presença de icterícia, aspecto da pele e fâneros, presença de alterações articulares, hepatoesplenomegalia; devendo-se realizar exame físico completo, incluindo estadiamento puberal pelos critérios de Tanner. Exames complementares Demais exames complementares devem ser solicitados conforme suspeitas clínicas elencadas a partir do exame clínico e da avaliação laboratorial inicial (grau da anemia: micro, macro ou normocítica; índice reticulocítico: baixo ou elevado). Outras informações importantes podem ser obtidas por meio do hemograma, como alterações nas outras séries (tanto a presença de outras citopenias como elevação nas contagens de leucócitos leucose? inflamação? ou plaquetas, não incomum na anemia ferropriva) e o índice de anisocitose eritrocitária (RDW), medida de dispersão do volume dos eritrócitos, que reflete a heterogeneidade das populações eritrocíticas (elevado na anemia ferropênica, por exemplo). A análise do sangue periférico nos fornece dados quanto à presença de RDW (variações no tamanho), pecilocitose (variações na forma) e policromasia, como já citado. Valiosas informações podem ser obtidas no achado de células afoiçadas e em alvo, fragmentos eritrocitários, corpúsculos de Howell-Jolly, alterações em outras séries, como blastos, e outras alterações que nos sugiram específicas patologias. Adolescência & Saúde volume 6 nº 3 setembro 2009

46 Duarte & Abuassi Pode-se avaliar a cinética do ferro por meio da sua dosagem sérica, do valor da capacidade ferropéxica (TIBC), da porcentagem da saturação da transferrina e da dosagem de ferritina, lembrando que essa, além de estimar as reservas de ferro, é também um reagente de fase aguda, podendo aumentar várias vezes na presença de inflamação aguda ou crônica. Outros exames podem ser solicitados conforme as hipóteses diagnósticas, como dosagem de desidrogenase lática (LDH) e bilirrubinas indiretas (que costumam estar elevadas em episódios hemolíticos), teste de falcização, eletroforese de hemoglobina, dosagem de G6PD (lembrando que logo após o evento hemolítico os valores podem estar normais, por ter havido destruição da coorte de hemácias com deficiência enzimática), teste de Coombs direto (para anemia hemolítica autoimune), dosagens séricas de ácido fólico e vitamina B12, aspirado e biópsia de MO, entre outros. Além desse, exames para investigação de possíveis doenças de base, como ureia, creatinina, hormônios tireoidianos, fator antinuclear (FAN) e outros autoanticorpos, exame endoscópico do trato digestivo (lembrar de doença inflamatória intestinal na adolescência) e outros, também podem ser solicitados conforme indicados. Conclusão Tendo em vista a prevalência não-desprezível de anemia em adolescentes, torna-se fundamental o adequado conhecimento dessa doença, assim como dos diferentes pontos de corte para o seu diagnóstico, de acordo com o sexo e o estágio de desenvolvimento puberal. As anemias carenciais são as mais comuns em nosso meio, porém devemos ter em mente as demais causas de anemia em adolescentes, não se podendo esquecer de que as anemias muitas vezes representam manifestações de outras doenças subjacentes presentes nessa população. Referências 1. Adamson JW. Deficiência de ferro e outras anemias hipoproliferativas. In: Kasper DL, Fauci AS, Longo DL, Braunwald E, Hauser SL, Jameson JL. Harrison Medicina Interna. 16. ed. Rio de Janeiro: McGraw-Hill Interamericana do Brasil Ltda. 2006. p. 615-30. 2. Adamson JW, Longo DL. Anemia e Policitemia. In: Kasper DL, Fauci AS, Longo DL, Braunwald E, Hauser SL, Jameson JL. Harrison Medicina Interna. 16. ed. Rio de Janeiro: McGraw-Hill Interamericana do Brasil Ltda. 2006. p. 345-52. 3. Bunn HF, Rosse W. Anemias Hemolíticas e Perda de Sangue Aguda. In: Kasper DL, Fauci AS, Longo DL, Braunwald E, Hauser SL, Jameson JL. Harrison Medicina Interna. 16. ed. Rio de Janeiro: McGraw-Hill Interamericana do Brasil Ltda. 2006. p. 637-48. 4. Kulkarni R, Gera R, Scott-Emuakpo AB. Adolescent Hematology. In: Greydonus DE, Patel DR, Pratt HD. Essential Adolescent Medicine. McGraw-Hill. 2006. p. 371-90. 5. Linker CA. Blood. In: Tierney Jr. LM, McPhee SJ, Papadakis MA. Current Medical Diagnosis and Treatment. McGraw- Hill. 2003. p. 469-521. 6. Mariath AB, Henn R, Matos CH, Lacerda LLV, Grillo LP. Prevalência de anemia e níveis séricos de hemoglobina em adolescentes segundo estágio de maturidade sexual. Rev Bras Epidemiol. 2006; 9(4): 454-61. 7. Venturella RB, Santos GC, Pasquoloto AC. Contagem de reticulócitos. In: Soares JLMF, Pasqualotto AC, Rosa DD, Leite VRS. Métodos diagnósticos: consulta rápida. Porto Alegre: Artmed Editora. 2002. p. 534-6. 8. Santos GC. Volume corpuscular médio. In: Soares JLMF, Pasqualotto AC, Rosa DD, Leite VRS. Métodos diagnósticos: consulta rápida. Porto Alegre: Artmed Editora. 2002. p. 629-31. 9. Vitalle MSS, Braga JAP. Carta ao editor. Rev Bras Epidemiol. 2007; 10(3): 432-4. 10. World Health Organization. Iron deficiency anaemia: assessment prevention and control. A guide for programme managers. Geneva. 2001. 11. Young NS. Anemia aplásica, mielodisplasia e síndromes afins de insuficiência da medula óssea. In: Kasper DL, Fauci AS, Longo DL, Braunwald E, Hauser SL, Jameson JL. Harrison Medicina Interna. 16. ed. Rio de Janeiro: McGraw-Hill Interamericana do Brasil Ltda. 2006. p. 648-57. volume 6 nº 3 setembro 2009 Adolescência & Saúde