Construção dos Números Reais

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Transcrição:

1 Universidade de Brasília Departamento de Matemática Construção dos Números Reais Célio W. Manzi Alvarenga

Sumário 1 Seqüências de números racionais 1 2 Pares de Cauchy 2 3 Um problema 4 4 Comparação de pares de Cauchy 9 5 Adição de pares de Cauchy 11 6 Multiplicação de pares de Cauchy 12 7 Os números reais 14 7.1 Adição de números reais..................... 15 7.2 Multiplicação de números reais................. 17 7.3 Os números reais e os números racionais............ 19 7.4 Interpretação geométrica dos números reais........... 20 7.5 Supremo e ínfimo......................... 25

Seção 1. Seqüências de números racionais 1 1 Seqüências de números racionais Sejam N o conjunto dos números naturais e Q o conjunto dos números racionais. Uma função s: N Q é chamada uma seqüência de números racionais. Como exemplo, seja s: N Q tal que para todo número natural n, s(n) = n. Assim, s(0) = 0, s(1) = 1/2, s(2) = 2/3, etc. 1 + n Seja s: N Q uma seqüência de números racionais. Então quando n é um número natural, s(n) é um certo número racional que também que também costuma ser indicado com esta notação s n. Isto é, s(n) = s n e s n é chamado o n-ésimo termo da seqüência s. É claro que sabendo quais são todos os s n nós conhecemos completamente a nossa seqüência s. Por essa razão uma seqüência s: N Q costuma ser indicada com a notação {s n n N}, ou {s n } n N, ou simplesmente s n quando não há perigo de confusão. Exemplo 1. Consideremos a seqüência f : N Q tal que para todo número natural n, f n é a maior fração que tem denominador 10 n e não ultrapassa 1/3. Desse modo, f 0 = 0; f 1 = 0, 3; f 2 = 0, 33; etc. Uma seqüência de números racionais s n é dita limitada quando existem dois números racionais p, q tais que para todo n N: p s n q A seqüência 1 1 + n é limitada pois para todo número n, 0 1 1 + n 1 A seqüência n 2 não é limitada. Uma seqüência a n é dita crescente se, para todo número natural j : a j a j+1 Como exemplo seja a: N Q tal que para todo n, a n é a maior fração que tem denominador 10 n e não ultrapassa 5/7. O leitor pode mostrar que {a n } é de fato crescente e também limitada, pois para todo n, 0 a n < 5/7. A seqüência b n é chamada decrescente se, para todo número natural j :

Seção 2. Pares de Cauchy 2 b j +1 b j Por exemplo, seja {b n } a seqüência tal que para todo n, b n é a menor fração que tem denominador 8 n e é maior do que 1/3. O leitor pode mostrar que {b n } é decrescente, e limitada, pois para todo número natural n, 1/3 < b n 1. Neste exemplo é fácil ver que b 0 = 1 ; b 1 = 3/8 ; b 2 = 22/8 2 ; b 3 = 171/8 3 ; etc. Exercícios 2. { n 1) Mostre que a seqüência n + 1 { n + 2 2) Mostre que a seqüência n + 1 } n N é crescente e limitada. } n N é decrescente e limitada. 3) Para cada número natural n, seja a n a maior fração que tem denominador 7 n e não ultrapassa 3/8, isto é a n 3/8 < a n + 1/7 n. Mostre que {a n } é uma seqüência crescente e limitada. (Sugestão: seja a n = c n /7 n para todo n N. Mostre que c n 7c n c n+1, e portanto a n a n+1 ). 2 Pares de Cauchy Já encontramos em nossos estudos de Matemática problemas dos seguintes tipos: 1) Dado o número natural n, achar as duas frações de denominador 10 n, a n e b n tais que a n < 5 7 ; 5 7 < b n e b n a n = 1 10 n 2) Dado o número natural m, achar as duas frações positivas c m e d m, do denominador 10 m tais que etc. c 2 m < 2 ; 2 < d 2 m e d m c m = 1 10 m No primeiro problema acima, quando o número natural n vai percorrendo o conjunto dos números naturais, as soluções a n formam uma seqüência crescente {a n } e as soluções b n formam uma seqüência decrescente {b n }. É claro também que os termos a n e b n, de mesmo índice, vão ficando cada vez mais próximos à média em que o índice n cresce, pois a diferença b n a n = 1/10 n vai ficando pequena.

Seção 2. Pares de Cauchy 3 O segundo problema acima também exibe um fenômeno parecido. Os dois exemplos citados acima e muitos outros (que não daremos agora mas encontraremos mais tarde) sugerem que examinemos com atenção este novo tipo de objeto matemático : um par de seqüências de números racionais {a n, b n } tais que {a n } é crescente, {b n } é decrescente a n b n para todo número natural n e a diferença b n a n vai se aproximando de zero à medida em que o índice n cresce. Não exigiremos, entretanto, que a n ou b n seja fração de denominador 10 n. Esse novo tipo de objeto matemático, o nosso par de seqüências {a n, b n } nas condições acima, nós chamaremos de par de Cauchy e iremos estudar na próxima seção. Definição 3. Dizemos que duas seqüências a n e b n de números racionais formam nessa ordem o par de Cauchy {a n, b n } se as seguintes condições estão verificadas: 1) a n é crescente, b n é decrescente; 2) Para todo n N : a n b n ; 3) Dado qualquer número racional ɛ > 0 existe um número natural n 0 tal que para todo n n 0 : b n a n < ɛ Exemplos 4. 1) Seja r um número racional. Para todo número natural n, seja a n = b n = r. É fácil ver que as três condições acima estão satisfeitas e portanto {a n, b n } é um par de Cauchy. 2) Para todo n N sejam a n = 1 n + 1 e b n = 1. É fácil mostrar n + 1 que {a n, b n } é um par de Cauchy. Exercícios 5. 1) Seja {a n, b n } um par de Cauchy. Mostre que { b n, a n } é um par de Cauchy. 2) Seja {c n, d n } um par de Cauchy tal que para todo n N, c n > 0. Mostre que {1/d n, 1/c n } é um par de Cauchy. (Sugestão: para verificar a condição (3) da definição de par de Cauchy, observe que 1 c n 1 d n = d n c n c n d n d n c n c 2 0 ). 3) Seja {e n, f n } um par de Cauchy tal que para todo n N, f n < 0. Mostre que {1/f n, 1/e n } é um par de Cauchy.

Seção 3. Um problema 4 4) Sejam {a n, b n }, {c n, d n } dois pares de Cauchy tais que para todo n N, a n > 0 e c n > 0. Mostre que {a n c n, b n d n } é um par de Cauchy (Sugestão: para verificar a condição (3) da definição de par de Cauchy, observe que portanto b n d n a n c n = b n d n a n d n + a n d n a n c n b n d n a n c n d n (b n a n ) + a n (d n c n ) d 0 (b n a n ) + b 0 (d n c n )) 5) Sejam {a n, b n }, {c n, d n } dois pares de Cauchy. Mostre que {a n + c n, b n + d n } é um par de Cauchy. 6) Sejam {a n, b n } um par de Cauchy e n 0 um número natural. Defina as seqüências a n. b n do seguinte modo: b n = b n0, a n = a n0 para n n 0 b n = b n, a n = a n para n > n 0 Mostre que {a n, b n} é um par de Cauchy 3 Um problema Dado um par de Cauchy {a n, b n }, vamos supor que exista um número racional r tal que para todo n N: a n r b n Queremos saber se é possível existir um outro número racional s, diferente de r, tal que para todo n N: Vamos mostrar que não. a n s b n Se existisse um tal número s, diferente de r, então ou s > r ou s < r. Vamos verificar que s não pode ser maior do que r. De fato, se s > r então s r > 0. De acordo com a condição 3) da definição de par de Cauchy, podemos tomar ɛ = s r (veja página 3) e então existe um número natural n 0 tal que para todo n n 0 acontece isto: 0 b n a n < ɛ

Seção 3. Um problema 5 isto é (pois ɛ = s r): Logo b n a n < s r b n + r < s + a n Mas estamos supondo que a n s b n para todo n N. Então e portanto isto é, b n + r < s + a n b n + a n b n + r < b n + a n r < a n Isso é absurdo pois por hipótese a n r b n para todo n. A demonstração de que s não pode ser menor do que r é análoga à anterior, como o leitor pode observar. Conclusão 6. Dado um par de Cauchy {a n, b n }, se existir um número racional r tal que para todo n N acontece isto: a n r b n então r é o único número racional que está assim relacionado com o par de Cauchy {a n, b n }. Por essa razão podemos introduzir a seguinte definição. Definição 7. Dados o par de Cauchy {a n, b n } e o número racional r, nós dizemos que {a n, b n } determina r se para todo n N acontece isto: a n r b n O leitor a esta altura pode fazer a seguinte pergunta: dado um par de Cauchy {c n, d n } sempre existe um número racional s tal que {c n, d n } determina s no sentido da Definição 7 acima? A resposta a essa pergunta é: nem sempre. { É claro que o par de Cauchy 2 + 1 n + 1, 2 + 1 } determina o número 2, pois para todo n n + 1 N: 2 + 1 n + 1 2 2 + 1 n + 1 Vamos agora dar exemplo de um par de Cauchy {a n, b n } que não determina nenhum número racional. As seqüências a n e b n do par {a n, b n } são definidas do seguinte modo: Para cada n N:

Seção 3. Um problema 6 a n é a maior fração de denominador 10 n tal que a 2 n 2; b n é a menor fração positiva do denominador 10 n tal que b 2 n 2. É claro que para todo n b n a n = 1/10 n. Logo, dado ɛ > 0, existe n 0 tal que, para n n 0, 1/10 n < ɛ, isto é, b n a n < ɛ. O leitor pode verificar que a n é crescente e b n é decrescente. É claro que para todo n, a n b n. Logo {a n, b n } é de fato um par de Cauchy. Vamos então verificar que não existe nenhum número racional tal que, para todo n N: a n h b n De fato, se um tal número racional h existisse deveria acontecer um destes três casos: 1 - o ) h 2 = 2; 2 - o ) h 2 < 2; 3 - o ) h 2 > 2. Vamos mostrar que nenhum desses casos é possível. 1 - o ) Não existe nenhum número racional h tal que h 2 = 2. De fato, se existe um tal h poderíamos escrevê-lo h = p/q, onde p e q são números naturais primos entre si e q 0. Então viria: p 2 /q 2 = 2 p 2 = 2 q 2. Logo p 2 é par. Portanto p é par. Então p 2 é múltiplo de 4 e como p 2 = 2 q 2 concluímos que q 2 é múltiplo de 2. Isso contraria o fato de que p e q são primos entre si e um particular não podem ser ambos pares. 2 - o ) Vamos mostrar que h 2 < 2 também não é possível: Como b n = (b n h) + h, então [(b n h) + h] 2 = b 2 n > 2 (Por definição de b n, b 2 n > 2). Logo (b n h) 2 + 2 h (b n h) + h 2 > 2 Como para todo n N, b n a n = 1/10 n e a n h b n, então 0 < b n h b n a n isto é, 0 < b n h 1 10 n

Seção 3. Um problema 7 e então temos Portanto 2 (b n h) h 2h 10 n (b n h) 2 1 10 2n 1 2h + 102n 10 + n h2 (b n h) 2 + 2(b n h)h + h 2 (1) = [(b n h) + h] 2 = b 2 n > 2 Dado o nosso número racional positivo h, existe um número natural n 0 tal que 10 n 0 > 1 h Logo, para todo n n 0, podemos escrever: 10 n 10 n 0 > 1 h, isto é, 10 n > 1 h ou h > 1 10 n e então concluímos que para todo n n 0 : 1 10 h > 1 n 10 1 n 10 = 1 n 10 2n e assim, de acordo com o resultado (1), obtemos: isto é, para todo n n 0, n N. 1 10 h + 2 n 10 h + n h2 > 1 10 + 2 2n 10 h + n h2 > 2 Podemos concluir de (2) que 3h 10 n + h2 > 2 (2) 3h 10 n > 2 h2

Seção 3. Um problema 8 ou, visto ser 2 h 2 > 0 : qualquer que seja n n 0. Ora, (3) é absurdo pois dado o número racional um número natural n maior do que n 0 tal que 3h 2 h 2 > 10n (3) 3h 2 h 2 < 10n Está pois mostrado que h 2 não pode ser menor do que 2. 3h > 0 sempre existe 2 h2 3 - o ) Deixamos a cargo do leitor mostrar que o terceiro caso, isto é, h 2 > 2, também não pode ocorrer (Sugestão: observe que a n = (a n h) + h, a 2 n < 2 e mostre que a hipótese h 2 > 2 conduz a absurdo). Uma observação final: acabamos de ver que dado um par de Cauchy arbitrário {a n, b n } nem sempre podemos garantir a existência de um número racional r que tenha a seguinte propriedade: a n r b n, n N Sabemos também que quando um tal número r existe, então não é possível existir um outro número s racional, diferente de r e que também satisfaça as condições a n s b n para todo n N. É essa a razão pela qual, quando a n r b n para todo n N, podemos dizer que o par de Cauchy {a n, b n } determina o número racional r. Nesse caso seria fácil obtermos um outro par de Cauchy, diferente de {a n, b n } e que também determina o mesmo número r. Com efeito, é suficiente tomarmos a n = a n 1 n + 1 b n = b n + 1 n + 1 para todo n N. É claro que a n a n, b n b n e a n a n r b n b n, isto é, a n r b n. O leitor pode verificar que {a n, b n} é um par de Cauchy e como a n r b n, então {a n, b n} determina o número r. Moral da história: um par de Cauchy pode determinar no máximo um número racional. Mas um número racional pode ser determinado por muitos pares de Cauchy diferentes.

Seção 4. Comparação de pares de Cauchy 9 4 Comparação de pares de Cauchy Definição 8. Dados dois pares de Cauchy {a n, b n } e {c n, d n } nós dizemos que {a n, b n } é estritamente menor do que {c n, d n }, e escrevemos {a n, b n } < {c n, d n }, se existir algum índice n 0 N tal que b n0 < c n0 Geometricamente a definição acima significa isto: para n > n 0 : a n0 a n b n b n0 c n0 c n d n d n0 Definição 9. Dado dois pares de Cauchy {a n, b n } e {c n, d n }, quando {a n, b n } < {c n, d n } nós dizemos que {c n, d n } é estritamente maior do que {a n, b n } e escrevemos {c n, d n } > {a n, b n }. Observação 10. Consideremos os dois pares de Cauchy {a n, b n } e {c n, d n } tais que para todo n N, a n = b n = 1 e c n = 1 1 n + 1, d n = 1 + 1 n + 1. É fácil ver que {a n, b n } não é nem estritamente maior nem estritamente menor do que {c n, d n }. O leitor observa que tanto {a n, b n } como {c n, d n } determinam o mesmo número racional 1. Problema 11. Dados dois pares de Cauchy {a n, b n }, {c n, d n }, suponhamos que existe um número racional r tal que a n r b n para todo n N (isto é, {a n, b n } determina o número r). Suponhamos ainda que {a n, b n } não é nem estritamente maior nem estritamente menor do que {c n, d n }. Mostrar que {c n, d n } então determina o mesmo número racional r. Solução. Como {a n, b n } não é estritamente menor do que {c n, d n } podemos afirmar que para todo n N : c n b n (4) Como {a n, b n } não é estritamente maior do que {c n, d n }, concluímos que para todo n N: a n d n Para provarmos que {c n, d n } determina r precisamos mostrar que para todo n N temos: c n r d n.

Seção 4. Comparação de pares de Cauchy 10 Ora, se a afirmação: Para todo n N, c n r d n fosse falsa, então deveria existir um número natural n 0 tal que um desses dois casos seguintes aconteceria: 1 - o ) r < c n0 ; 2 - o ) d n0 < r. Vamos mostrar que (1 - o ) não pode ocorrer. De fato, se r < c n0, então c n0 r > 0 e para todo n n 0, c n r c n0 r > 0. Tomemos o número racional positivo c n0 r. Como {a n, b n } é um par de Cauchy, existe n 1 > n 0 tal que para todo n n 1 acontece isto: Então para todo n n 1 temos b n a n < c n0 r b n a n < c n r pois c n0 r c n r e b n a n < c n0 r para n n 1. Então concluímos que para n n 1 : b n c n < a n r (5) Mas em virtude do resultado (4) concluímos que b n c n 0 e portanto o resultado (5) acima implica que a n r > 0 para todo n n 1. Isso contraria a hipótese de ser a n r para todo n N. Deixamos a cargo do leitor mostrar que não podemos ter d n0 < r para nenhum n 0 N. Assim fica demonstrado que se {a n, b n } determina o número racional r e {c n, d n } é um par de Cauchy que não é nem estritamente maior nem estritamente menor do que {a n, b n }, então {c n, d n } determina o mesmo número racional r. O resultado acima serve de motivação para a seguinte definição: Definição 12. Dados dois pares de Cauchy {a n, b n } e {c n, d n }, dizemos que {a n, b n } é equivalente a {c n, d n } e escrevemos {a n, b n } {c n, d n } se {a n, b n } não é nem estritamente maior nem estritamente menor que {c n, d n }.

Seção 5. Adição de pares de Cauchy 11 Deixamos a cargo do leitor mostrar as seguintes propriedades da relação introduzida acima. Para facilitar a escrita usaremos letras gregas para indicar pares de Cauchy. I) α α para todo par de Cauchy α; II) α β = β α; III) Se α β e β γ, então α γ; IV) Se α α, β β e α > β, então α > β. Sugestão: para demonstrar a propriedade III, suponha que ela não seja verdadeira e mostre que isso conduz a absurdo. Tome α = {a n, b n }, β = {c n, d n }, γ = {e n, f n }. Então se α não é equivalente a γ, então ou α > γ ou γ > α. Mostre que nenhum desses casos pode ocorrer. Exercícios 13. 1) Sejam {a n, b n } e {c n, d n } dois pares de Cauchy. Mostre que {a n, b n } {c n, d n } se e só se para todo n, a n d n e c n b n. 2) Sejam r, s números racionais e {a n, b n } um par de Cauchy que determina r, e {c n, d n } um par de Cauchy que determina s. Mostre que {a n + c n, b n + d n } é um par de Cauchy que determina r + s. 3) Sejam r, s números racionais positivos, {a n, b n } um par de Cauchy que determina r e {c n, d n } um par de Cauchy que determina s. Suponhamos que para todo n N, a n > 0 e c n > 0. Mostre que {a n c n, b n d n } é um par de Cauchy que determina r. s e {1/b n, 1/a n } é um par de Cauchy que determina 1/r. 4) Seja m um número natural e {a n, b n } um par de Cauchy. Considere as seqüências a n, b n definidas do seguinte modo: b n = b m e a n = a m para n m b n = b n e a n = a n para n > m Mostre que {a n, b n} é um par de Cauchy equivalente a {a n, b n }. 5 Adição de pares de Cauchy Dados dois pares de Cauchy α = {a n, b n } e β = {c n, d n }, podemos formar o par de Cauchy {a n + c n, b n + d n }, que chamaremos de soma dos pares de Cauchy α e β e escreveremos: {a n, b n } + {c n, d n } = {a n + c n, b n + d n }

Seção 6. Multiplicação de pares de Cauchy 12 Vamos indicar com Ô o par de Cauchy {e n, f n } tal que e n = f n = 0 para todo n N. Dado o par de Cauchy α = {a n, b n }, podemos formar o par de Cauchy α = { b n, a n }, que chamaremos de simétrico de α. O leitor pode verificar que são válidas as seguintes propriedades, onde as letras gregas indicam pares de Cauchy: 1) α α e β β = α + β α + β ; 2) α α = α α ; 3) α+ Ô = α; 4) α+( α) Ô (Observe que não temos igualdade, e sim equivalência); 5) α + β = β + α; 6) (α + β) + γ = α + (β + γ); 7) α > β = α + γ > β + γ para todo par de Cauchy γ. 6 Multiplicação de pares de Cauchy Já sabemos que quando {a n, b n } e {c n, d n } são pares de Cauchy tais que para todo n N a n > 0 e c n > 0, então {a n c n, b n d n } também é um par de Cauchy. Se além disso {a n, b n } determinar o número racional positivo r e {c n, d n } determinar o número racional positivo s, então é fácil mostrar que {a n c n, b n d n } determina o número r. s. Em vista disso é natural que coloquemos a seguinte definição: Definição 14. Se α = {a n, b n } e β = {c n, d n } são pares de Cauchy tais que para todo n N, a n > 0 e c n > 0 então chamamos de produto de α por β o par de Cauchy {a n c n, b n d n } e escrevemos: {a n, b n } {c n, d n } = {a n c n, b n d n } Antes de prosseguirmos, vamos resolver o seguinte exercício: Exercício 15. Seja {a n, b n } um par de Cauchy estritamente maior que o par de Cauchy ˆ0 (veja página 12). Então existe um par de Cauchy {a n, b n} tal que {a n, b n } {a n, b n} e a n > 0 para todo n N. Solução. Como {a n, b n } > ˆ0, então existe um índice n 0 N tal que a n0 > 0. Para todo n n 0 teremos a n > 0. Consideremos as seguintes seqüências a n, b n:

Seção 6. Multiplicação de pares de Cauchy 13 b n = b n0 e a n = a n0 para n n 0 b n = b n e a n = a n para n > n 0 O leitor pode verificar que {a n, b n} é um par de Cauchy equivalente a {a n, b n } e tal que para todo n N, a n > 0. Vamos escolher, no exemplo acima, o índice n 0 de tal modo que a n0 seja o primeiro termo maior do que zero na seqüência a n (isto é, a n0 > 0 e a j 0 para j < n 0 ). Diremos então que {a n, b n} é o par de Cauchy associado a {a n, b n }. Definição 16. Sejam {a n, b n }, {c n, d n } pares de Cauchy estritamente maiores do que ˆ0. Seja {a n, b n} o par associado a {a n, b n } e {c n, d n} o par associado a {c n, d n }. (Sabemos então que a n > 0 e c n > 0 para todo n e {a n, b n } {a n, b n}, {c n, d n } {c n, d n}, colocamos por definição: {a n, b n } {c n, d n } = {a nc n, b nd n}) Exercícios 17. As letras gregas indicam pares de Cauchy estritamente maiores do que 0. Mostre que: 1) α β = β α 2) (α β) γ = α (β γ) 3) α α, β β = α β α β 4) Seja ˆ1 o par de Cauchy {e n, f n } tal que e n = f n = 1 para todo n. Seja α um par de Cauchy estritamente positivo. Verifique que α ˆ1 α 5) Seja α = {a n, b n } um par de Cauchy tal que a n > 0 para todo n, e consideremos o par de Cauchy α 1 = { 1/ b n, 1/a n }. Mostre que α α 1 ˆ1. O par α 1 é chamado o inverso de α. 6) Sejam α e β dois pares de Cauchy estritamente maiores do que ˆ0 e seja α o par de Cauchy associado a α, e β o par de Cauchy associado a β. Mostre que α β = (α ) 1 (β ) 1 (isto é, se dois pares de Cauchy estritamente maiores do que ˆ0 são equivalentes, então os inversos de seus respectivos associados também são equivalentes).

Seção 7. Os números reais 14 7 Os números reais Seja Q o conjunto dos números racionais. Sabemos que Q Q é o conjunto dos pares ordenados de números racionais, isto é: Ora, as funções f : N Q Q chamar de A. Q Q = {(a, b) a Q e b Q} formam um conjunto que podemos Que é um elemento de A? Um elemento de A é uma função f : N Q Q que pode ser pensada como um par de seqüências de números racionais {a n, b n }. Em particular um par de Cauchy pertence a A, isto é, os pares de Cauchy formam um subconjunto de A. Seja então o conjunto dos pares de Cauchy e já sabemos que A. Dado um par de Cauchy α, vamos junta num conjunto α todos os pares de Cauchy equivalentes a α. Isto é, α = {α α α} Diremos que α é o número real determinado pelo par de Cauchy α. O par de Cauchy α é então chamado um representante do número real α. Vamos mostrar que dois pares de Cauchy equivalentes determinam o mesmo número real, isto é: Proposição 18. α β = α = β. Demonstração. Como α e β são subconjuntos de, para provarmos que α = β temos que mostrar que α β e β α. Por definição temos: α = {α α α} β = {β β β} e por hipótese sabemos que α β. Então β α, pois β α. Dado β β, temos β β e como β α, temos β α, isto é β α. Portanto todo elemento de β é também elemento de α, isto é β α. De modo análogo podemos mostrar que α β e assim fica provado que α β = α = β Vamos chamar de R o conjunto de todos os números reais.

Seção 7. Adição de números reais 15 Definição 19. Sejam α e β dois números reais. Dizemos que α é estritamente maior do que β e escrevemos α > β se para todo α α e todo β β acontece isto: α > β (isto é, o par de Cauchy α é estritamente maior que o par de Cauchy β ). O leitor pode verificar que é válido o seguinte resultado: Proposição 20. Dados dois números reais α e β então acontece um e um só dos seguintes casos: 1 - o ) α = β ; 2 - o ) α > β ; 3 - o ) β > α. Exercício 21. Sejam α, β dois pares de Cauchy tais que α > β. Mostre que α > β, isto é, se α β e β β então α > β. 7.1 Adição de números reais Sejam α, β dois números reais. Seja α β um representante de α, e β β um representante de β, como α e β são pares de Cauchy nós podemos formar o par de Cauchy α + β, e depois tomamos o número real determinado por α + β. Com essas notações: Definição 22. α + β = (α + β ) Observação 23. A soma de dois números reais está bem definida, pois se em lugar de α α tivéssemos tomado α α e em lugar de β β escolhêssemos β β, teríamos (conforme exercício da página 12): α + β α + β como dois pares de Cauchy equivalentes determinam o mesmo número real (veja Proposição 18). Temos: (α + β ) = (α + β ) Observação 24. A razão pela qual passamos dos pares de Cauchy aos números reais é que desse modo conseguimos substituir a relação de equivalência entre pares de Cauchy pela relação de igualdade entre números reais. Intuitivamente dois pares de Cauchy equivalentes {a n, b n } e {a n, b n} tais que a n a n ou b n b n não devem apenas por causa dessa circunstância ser considerados diferentes pois, sendo equivalentes, determinam o mesmo número, conforme vimos em exemplos anteriores a propósito de números racionais. (Por exemplo, os pares de Cauchy {a n, b n } e {a n, b n} tais que a n = b n = 0 e a n = 1/(n + 1), b n = 1/(n + 1) determinam o número 0).

Seção 7. Adição de números reais 16 Proposição 25. Sejam α, β e γ números reais. Então: Demonstração. α > β α + γ > β + γ exercício Definição 26. Seja r um número racional e consideremos o par de Cauchy ˆr = {a n, b n } tal que para todo n natural, a n = b n = r. O número real determinado pelo par de Cauchy ˆr será escrito r. Seja α um número real. Vamos mostrar que a equação tem no máximo uma solução. α + x = 0 De fato, suponhamos que x 1 e x 2 fossem dois números reais diferentes e tais que α + x 1 = 0 α + x 2 = 0 Como x 1 x 2, em virtude da Proposição 20 podemos admitir por exemplo que x 1 > x 2. Ora, a Proposição 25 acima garante-nos que x 1 > x 2 x 1 + α > x 2 + α e assim vemos que se x 1 + α = 0, então 0 > x 2 + α isto é, x 2 não é solução da equação dada. Portanto a equação acima tem no máximo uma solução. O leitor pode verificar sem dificuldade que, se {a n, b n } é um par de Cauchy representante de α, então o par de Cauchy { b n, a n } tem a seguinte propriedade: {a n, b n } + { b n, a n } ˆ0 Desse modo, chamando de α o número real determinado pelo par de Cauchy { b n, a n }, temos α + ( α ) = 0 Fica pois mostrada a seguinte Proposição 27. Dado o número real α, a equação α + x = 0 tem uma única solução. Essa solução é indicada com a notação α. Isto é, α + ( α ) = 0. A adição de números reais tem propriedades semelhantes as da adição de números racionais. Isto é, sendo α, β, γ números reais o leitor pode verificar que são válidas as seguintes propriedades:

Seção 7. Multiplicação de números reais 17 α + β = β + α (α + β ) + γ = α + (β + γ ) α + 0 = α Para todo α real existe um número real α tal que α + ( α ) = 0 7.2 Multiplicação de números reais À página 12 tratamos da multiplicação de dois pares de Cauchy estritamente maiores de que ˆ0. Vamos agora usar os resultados lá obtidos para discutirmos agora a multiplicação de números reais. Definição 28. Sejam α e β dois números reais estritamente maiores do que 0. Sejam {a n, b n } um par de Cauchy representante de α e {c n, d n } um par de Cauchy representante de β. Então esses dois pares de Cauchy são ambos estritamente maiores do que ˆ0. De acordo com a definição dada na página 12 podemos considerar o produto desses dois pares de Cauchy {a n, b n } {c n, d n } que vamos chamar de γ. Então, por definição, α β = γ. Observação 29. Suponhamos que {a n, b n } e {a n, b n} sejam dois pares de Cauchy equivalentes que determinam o número real estritamente maior do que 0, α. Sejam {c n, d n } e {c n, d n} dois pares de Cauchy equivalentes que determinam o número real estritamente maior do que 0, β. Então, conforme o exercício 3 da página 11, {a n, b n } {c n, d n } {a n, b n} {c n, d n}. Assim sendo, temos ({a n, b n } {c n, d n }) = ({a n, b n} {c n, d n}) Isso mostra que quando α, β são dois números reais estritamente maiores do que 0, então o produto α β definido acima está de fato bem definido e não depende de como escolhemos um representante para α e outro representante para β a fim de, a partir deles, determinarmos α β. Para completarmos a definição do produto de dois números reais, precisamos tratar dos casos em que ao menos um dos fatores não é um número real estritamente maior do que 0. Definição 30. Seja α um número real qualquer. Então colocamos: α 0 = 0

Seção 7. Multiplicação de números reais 18 Observação 31. Suponhamos que α seja um número real estritamente menor do que 0. Então o leitor pode verificar que α é um número real estritamente maior do que 0. Definição 32. Sejam α e β dois números reais tais que α é estritamente menor do que 0 e β é estritamente maior do que 0. Então colocamos α β = (( α ) β ) Definição 33. Sejam α e β dois números reais estritamente menores do que 0. Então colocamos α β = ( α ) ( β ) Observação 34. Com as quatro definições estudadas acima, o produto de dois números reais fica definido em todos os casos possíveis. O leitor pode verificar que a multiplicação de números reais tem propriedades semelhantes às da multiplicação de números racionais: 1 - o ) α β = β α ; 2 - o ) (α β ) γ = α (β γ ); 3 - o ) α (β + γ ) = α β + α γ ; 4 - o ) α 0 = 0 ; 5 - o ) α β = 0 α = 0 ou β = 0 ; 6 - o ) α 1 = α ; 7 - o ) Se α < β e γ > 0 então α γ < β γ ; 8 - o ) Se α, β são números reais e α 0 então existe um único número real γ tal que α γ = β Tal número real γ é indicado com a notação γ = β α.

Seção 7. Os números reais e os números racionais 19 7.3 Os números reais e os números racionais Proposição 35. Sejam α um número real e d um número racional positivo. Então existem números racionais r e s tais que r < s, s r < d e r < α < s (Para a definição de r veja a página 16). Demonstração. Dado o número real α, seja {a n, b n} um par de Cauchy representante de α. É fácil conseguirmos um outro par de Cauchy {a n, b n }, equivalente a {a n, b n}, tal que a seqüência a n seja estritamente crescente (isto é, a j < a j +1 para j N) e b n seja estritamente decrescente (isto é, b j +1 < b j para j N). Como {a n, b n } é um par de Cauchy, dado o nosso número racional d > 0 existe n 0 tal que para n n 0, acontece isto: b n a n < d. Em particular, temos b n0 a n0 < d. Tomemos r = a n0 e s = b n0. Então r < s, s r < d, e como ˆr < {a n, b n } < ŝ, então r < α < s Observação 36. Na proposição acima, se tivermos α > 0 conseguimos um número racional r tal que 0 < r < α. Exercícios 37. 1) Sejam α, β dois números reais tais que α < β. Mostre que existe um número racional q tal que α < q < β. 2) Sejam α, β dois números reais estritamente positivos.mostre que existe um número natural n tal que α < n β. 3) Mostre que não existe nenhum número racional h tal que h 2 = 3. 4) Mostre que existe um número real positivo α tal que α 2 = 3 (Sugestão: dê um par de Cauchy que represente o α pedido). Vamos agora considerar a função ϕ : Q R que a cada número racional r associa o número real r (veja página 16). Quais são as propriedades da função ϕ? O leitor pode verificar facilmente que para todo a, b, Q: 1 - a ) ϕ(a + b) = ϕ(a) + ϕ(b) isto é, (a + b) = a + b ; 2 - a ) ϕ(a b) = ϕ(a) ϕ(b) isto é, (a b) = a b ; 3 - a ) Se a < b então ϕ(a) < ϕ(b) isto é, a < b = a < b ;

Seção 7. Interpretação geométrica dos números reais 20 4 - a ) Vamos agora considerar a imagem Q em R do conjunto Q através da função ϕ. Isto é, Q = ϕ(q) R. O conjunto Q é por assim dizer uma cópia do conjunto Q pois em Q operamos com os elementos de Q da mesma maneira como operamos com os elementos de Q. A (3 a -) propriedade acima nos mostra que se a, b Q e a b então a b. Podemos então tratar os elementos de Q como se fossem números racionais. É nesse sentido que podemos dizer que os números racionais Q formam um subconjunto dos números reais. A proposição 35 pode agora ser vista deste modo: dado um número real α e um número racional d > 0, sempre existem números racionais r e s cuja distância a α é menor do que d, tais que r < α < s. 7.4 Interpretação geométrica dos números reais Sobre uma reta marcamos dois pontos distintos O, U, escolhemos como sentido positivo de percurso da reta o que vai de O para U: O U P Em seguida, dado um número racional p qualquer, marcamos na reta acima o ponto P de tal modo que a medida algébrica do segmento OP feita com a unidade OU seja expressa pelo número dado p. (Assim, se p > O, então o ponto P se ache à direita de O, e se p < O, o ponto P está à esquerda de O). Assim a cada número racional p podemos associar um ponto bem determinado, P, de nossa reta. Se chamássemos de Q o conjunto de todos os pontos de nossa reta que são correspondentes de números racionais, então aconteceria o seguinte: há pontos na nossa reta que não pertencem a Q! Isto é, existem em nossa reta acima, pontos I que não são correspondentes de nenhum número racional, pois o segmento OI não pode ser medido algebricamente com o segmento OU de maneira que a medida seja um número racional. Dado o número real α, suponhamos que {a n, b n } seja um par de Cauchy representante de α. Os termos a n, b n são números racionais. Vamos então, para cada n N, achar os pontos A n e B n correspondentes a a n e b n, respectivamente. Pois bem, existe na reta um e um só ponto A tal que para todo n, A pertence ao segmento de extremidades A n e B n : É natural então associarmos o número real α ao ponto A acima descrito. Com isso acontece o seguinte: cada ponto da reta é o correspondente de um

Seção 7. Interpretação geométrica dos números reais 21 A 1 A 2 A n A B n B 2 B 1 único número real e cada número real pode ser representado na nossa reta através de um único ponto. A proposição 35 significa geometricamente que perto de cada ponto A que representa um número real α é sempre possível encontrar pontos R e S tais que A pertence ao segmento de extremos R e S, e R e S são pontos correspondentes a números racionais: A R S Exercício 38. Sejam α n uma seqüência crescente de números reais, e β n uma seqüência decrescente de números reais tais que para todo n N, α n β n. Mostre que se p, q são dois números naturais quaisquer, então α p β q. Proposição 39. Sejam α um número real e {r n, s n } um par de Cauchy que determina o número real ρ. Suponhamos que para todo n N, α < s n. Então α ρ. Demonstração. Seja {a n, b n } um par de Cauchy representante do número real α. Precisamos mostrar que {a n, b n } não é estritamente maior do que {r n, s n }. Que aconteceria se {a n, b n } fosse estritamente maior do que {r n, s n }? Então existiria um número natural n 0 tal que s n0 < a n0 (6) Seja {e n, f n } o par de Cauchy tal que para todo n N, e n = f n = s n0. Então, em virtude de (6), teríamos: {e n, f n } < {a n, b n } (7) Mas {e n, f n } determina o número real s n 0 e {a n, b n } determina o número real α. Logo, (7) implica que s n 0 < α e isso contraria a hipótese de ser α < s n para todo n N. 1 1

Seção 7. Interpretação geométrica dos números reais 22 Exercício 40. Sejam β um número real e {r n, s n } um par de Cauchy que determina o número real ρ. Suponhamos que para todo n N, r n < β. Mostre que então ρ β. Observação 41. O leitor deve notar na proposição 42 seguinte que as seqüências α n, β n de números reais que lá consideramos têm propriedades semelhantes as das seqüências de números racionais que entram na formação de um par de Cauchy. Proposição 42. Sejam α n, β n duas seqüências de números reais tais que 1 - o ) α n é crescente e β n é decrescente; 2 - o ) α n β n para todo n N; 3 - o ) Dado qualquer número real positivo ɛ, existe um número natural n 0 (que pode depender de ɛ) tal que para todo n n 0 β n α n < ɛ Então existe um e um só número real ρ tal que α n ρ β n para todo n N. Observação 43. Quando estudamos pares de Cauchy {a n, b n }, onde a n, b n eram números racionais, vimos que nem sempre existia um número racional r tal que a n r b n para todo n N. Na proposição 42 acima estamos considerando pares de Cauchy {α n, β n}, onde agora α n, β n são números reais. A proposição 42 então afirma que nesse caso sempre existe um número real ρ tal que α n ρ β n para todo n N. Demonstração. (da Proposição 42) Primeiramente vamos exibir um número real ρ que tem a propriedade enunciada na proposição 42, isto é, α n ρ β n para todo n N. Para apresentarmos ρ basta que demos um par de Cauchy {r n, s n }, representante de ρ. O par de Cauchy {r n, s n } é construído definindo as seqüências r n, s n por indução do seguinte modo: Para n = 0, tomamos como r 0 um número racional menor do que α 0 e tal que α 0 r 0 < 1;

Seção 7. Interpretação geométrica dos números reais 23 Suponhamos que já foram definidos os termos r n para n = 0, 1,..., p, de maneira que r 0 < r 1 <... < r p, r n < α n e α n r n < 1 n + 1 Vamos então definir o termo seguinte, r p+1 : Como α αp+1 que, para n = 0,..., p e r p < α p, podemos tomar um número racional r p+1 tal r p < r p+1 < α p+1 α p+1 r p+1 < 1 p + 2 Está pois completamente definida a seqüência r n e podemos lembrar outra vez quais são suas propriedades: r n é crescente; r n < α n para todo n N; α n r n < 1 n + 1 para todo n N. De modo parecido podemos definir a seqüência s n de maneira tal que s n é decrescente; β n < s n para todo n N; s n β n < 1 n + 1 para todo n N. r n s n α n β n Afirmamos que {r n, s n } é um par de Cauchy. É claro que r n s n para todo n, pois r n < α n β n < s n. Pela definição de r n e s n, vemos que r n é crescente e s n é decrescente. Falta apenas verificarmos a 3 - a condição da definição de

Seção 7. Interpretação geométrica dos números reais 24 um par de Cauchy. Isto é, precisamos mostrar que dado qualquer número racional d > 0, existe n 0 N tal que para n n 0, s n r n < d Ora, dado o nosso d > 0, conseguimos um n 1 natural tal que para n n 1 β n α n < d 3 (usando a nossa hipótese 3 sobre as seqüências α n e β n). Agora tomamos n 0 > n 1 tal que É claro que para n n 0, teremos portanto Assim, para n n 0, temos 1 n 0 + 1 < d 3 1 n + 1 < d. Finalmente, observamos que 3 s n r n = s n β n + β n α n α n r n s n r n = (s n βn) + (βn αn) + (αn r n ) < 1 n + 1 + (β n αn) + 1 n + 1 s n r n < d 3 + d 3 + d 3 = d O par de Cauchy {r n, s n } determina o número real ρ. É fácil ver que (conforme exercício da página 21) dados dois números naturais p, q quaisquer, α p < s q (8) Usando a proposição 39, concluímos de (8) que α p ρ para todo número natural p. De modo análogo podemos mostrar que ρ β p para todo p N. Deixamos a cargo do leitor mostrar que não pode existir um outro número real σ, diferente de ρ, tal que α n σ β n para todo n N.

Seção 7. Supremo e ínfimo 25 7.5 Supremo e ínfimo Daqui por diante os números reais serão indicados quase sempre com letras latinas minúsculas e eventualmente com letras gregas minúsculas, mas sem o asterisco ( ). Definição 44. Seja A um conjunto não vazio de números reais. Dizemos que A é superiormente limitado se existe algum número real M tal que para todo a A, a M. Definição 45. Seja A um conjunto não vazio e superiormente limitado de números reais. Dizemos que o número real s é o supremo de A se estão satisfeitas as duas seguintes condições: 1 - a ) a s, a A; 2 - a ) Se r é um número real tal que a r para todo a A, então s r. Observação 46. A segunda condição acima na definição de supremo nos diz que entre todos os números reais que majoram o conjunto A, o número s é o menor. Exemplo 47. Seja A = {x R x < 1}. Vamos mostrar que o supremo de A é 1. De fato, pela própria definição de A, a < 1, a A Suponhamos que o número real r seja tal que a r, a A. Vamos mostrar que 1 r. De fato, em caso contrário teríamos r < 1. Ora, o número x = (r + 1)/ 2 é maior do que r e menor do que 1. Portanto r não satisfaz a condição de ser maior ou igual a qualquer elemento de A. Fica assim mostrado que o supremo de A é de fato 1. Definição 48. Seja A um conjunto não vazio e inferiormente limitado de números reais. Então o número real m é chamado o máximo de A se estão satisfeitas as duas seguintes condições: 1 - a ) m A; 2 - a ) a m, a A. Observação 49. É claro que se um conjunto A tem máximo m, então m é também o supremo de A. O conjunto A = {x R x < 1} tem supremo final a 1, mas não tem máximo, pois 1 / A.

Seção 7. Supremo e ínfimo 26 Exercícios 50. Ache o supremo dos seguintes conjuntos: B = {x R 7x + 1 < 4x + 5} { } 1 F = y R y + 1 < 0 Proposição 51. Seja A um conjunto não vazio e superiormente limitado de números reais. Então existe um número real σ tal que σ é o supremo de A. Demonstração. Se o conjunto A tiver um máximo m, então é claro que m também é o supremo de A. Vamos então supor que o nosso conjunto A não tem máximo e vamos provar que existe o supremo de A. Constituiremos duas seqüências r n, s n de números reais de modo que 1 - o ) r n é crescente, s n é decrescente; 2 - o ) para todo n N, r n < s n ; 3 - o ) dado ɛ > 0, existe n 0 N tal que para n n 0, s n r n < ɛ; 4 - o ) para cada n N, a s n, a A; 5 - o ) para cada n N, existem elementos a A tais que r n < a < s n As seqüências r n e s n são definidas por indução do seguinte modo: Como A é não vazio e superiormente limitado podemos considerar dois números reais, r 0 e s 0 tais que r 0 A (pois A ) a < s 0, a A (pois A: superiormente limitado) Consideremos o número real m 1 = r 0 + s 0 2 r 0 n 1 s 0 Dois casos são possíveis (visto A não ter máximo, por hipótese) 1 - o ) a < m 1, a A;

Seção 7. Supremo e ínfimo 27 2 - o ) a A tal que m 1 < a. No primeiro caso tomamos: No segundo caso tomamos: r 1 = r 0 e s 1 = m 1 r 1 = m 1 e s 1 = s 0 Suponhamos que já foram escolhidos os números reais r n, s n para n = 0,..., p de maneira tal que 1 - o ) r n r n+1 < s n+1 s n para n = 0,..., p 1 2 - o ) a < s n a A, n = 0,..., p 3 - o ) Para cada n = 0,..., p, existe a A tal que r n < a < s n 4 - o ) s n r n = s 0 r 0 2 n Vamos então dizer como tomar os termos seguintes r p+1 e s p+1 : r p m 1 s p Consideramos o número real m p+1 = (s p + r p )/2. Então (pela hipótese de A não ter máximo) são possíveis dois casos: 1 - o ) a < m p+1, a A; 2 - o ) existem a A tais que m p+1 < a. No primeiro caso definimos No segundo caso definimos, r p+1 = r p e s p+1 = m p+1 r p+1 = m p+1 e s p+1 = s p O leitor pode verificar que as seqüências r n e s n satisfazem as 5 propriedades enunciadas no começo desta demonstração, isto é, à página 26. Em particular as três primeiras propriedades implicam, pela proposição 42, que as seqüências r n e s n determinam um número real σ tal que para todo n N: r n < σ < s n

Seção 7. Supremo e ínfimo 28 Vamos mostrar que σ é o supremo de A: 1 o -) a σ, a A De fato, suponhamos que isso não fosse verdade. elemento x A tal que σ < x. Então existiria um σ x Como x σ > 0, podemos achar um número natural n 0 tal que s n0 r n0 < ɛ, isto é, s n0 r n0 < x σ. Mas isso é absurdo pois r n0 < σ e x < s n0 (Observe que s n0 r n0 < x σ σ r n0 < x s n0. Como r n0 < σ, então σ r n0 > 0. Como x < s n0, então x s n0 < 0. Um número negativo não pode ser maior que um positivo). Está então mostrado que para todo a A: a σ 2 - o ) Se ρ é um número real tal que a ρ, a A, então σ ρ. Em outras palavras, precisamos mostrar que qualquer número real menor do que ρ é superado por algum elemento de A. De fato, dado δ > 0, consideremos número real σ δ. Podemos achar um número natural n 0 tal que s n0 r n0 < δ como σ < s n0, temos σ r n0 < δ. Portanto como r n0 < σ, temos σ δ < r n0 < σ. Ora, como existem elementos a A tais que r n0 < a < s n0, concluímos que existem números a A tais que σ δ < a Então σ δ não é maior ou igual a qualquer elemento de A. Como δ > 0 é arbitrário concluímos que se ρ a, a A, então δ σ. Isto é, σ é o supremo de A. Definição 52. Um subconjunto não vazio de números reais, B, é inferiormente limitado se existe um número real m tal que m b, b B. Definição 53. Seja B um subconjunto não vazio e superiormente limitado de números reais. O número real f é o ínfimo de B se as duas condições seguintes estão verificadas: 1 - a ) f b, b B; 2 - a ) Se g b, b B, então g f. Deixamos a cargo de leitor a demonstração da seguinte proposição: 1

Seção 7. Supremo e ínfimo 29 Proposição 54. Seja B R um subconjunto não vazio e inferiormente limitado de números reais. Então existe um número real f tal que f é o ínfimo de B.