LEISHMANIOSE VISCERAL Experiência de um Centro Pediátrico de Referência

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ARTIGO ORIGINAL Acta Med Port 2011; 24: 399-404 LEISHMANIOSE VISCERAL Experiência de um Centro Pediátrico de Referência 1990-2009 Maria Teresa DIONÍSIO, Andrea DIAS, Fernanda RODRIGUES, Miguel FÉLIX, Maria Helena ESTÊVÃO R E S U M O Introdução: A Leishmaniose Visceral (LV) ou Kala-azar é uma infecção sistémica endémica em muitos países, incluindo Portugal. Pretende-se efectuar uma revisão dos casos de LV no nosso Hospital. População e Métodos: Análise retrospectiva dos casos de LV admitidos num hospital pediátrico de nível III, entre Janeiro de 1990 e Dezembro de 2009 (20 anos). Foram avaliados aspectos demográficos, dados epidemiológicos, clínicos, laboratoriais, terapêuticos, evolução e seguimento. Resultados: Registaram-se 54 casos, dos quais três foram excluídos por informação clínica insuficiente no processo. Nos primeiros dez anos do estudo, ocorreram 75% dos casos. A média de idades foi de 27 meses (sete meses doze anos) e 53% eram do sexo feminino. Dois terços dos casos ocorreram nos meses de Primavera e Verão. O tempo médio até ao diagnóstico foi de 31 dias (2-188 dias). Os achados clínicos mais frequentes foram a esplenomegália (100%), febre (96%), palidez (90%) e hepatomegália (82%). O aspirado de medula óssea foi efectuado em todos os casos, com visualização de amastigotas em 73%. A imunofluorescência indirecta foi realizada em 30 casos, sendo positiva em 29 (97%). Foi instituída terapêutica com antimoniato de meglumina a todas as crianças. Foram registadas recidivas em três casos durante o primeiro ano após o episódio inicial. Uma criança de 17 meses de idade faleceu por falência cardio-respiratória. Conclusões: O diagnóstico precoce de LV é fundamental para o seu tratamento atempado, de forma a prevenir eventuais complicações potencialmente fatais. Na nossa população, a resposta terapêutica à instituição de antimoniato de meglumina foi globalmente favorável. S U M M A R Y PAEDIATRIC VISCERAL LEISHMANIASIS Experience of a Paediatric Referral Center: 1990-2009 Introduction: Visceral Leishmaniasis (VL) is a systemic infection, endemic in many parts of the world, including Portugal. The aim is to review all cases of VL admitted to our hospital. Patients and Methods: Retrospective analysis of all cases of VL admitted to a Level III Paediatric Hospital, between January 1990 and December 2009 (20 years). Demographic, epidemiological, clinical, laboratorial, therapeutic and follow-up data were analysed. Results: During the study period, 54 children were admitted with VL, three of which were excluded from the study due to incomplete clinical records. The mean age was 27 months (seven months twelve years) and 53% were female. Two thirds of the cases were diagnosed during Spring and Summer. The mean time for diagnosis was 31 days (2-188 M.T.D., A.D., F.R., M.F., M.H.E.: Serviços de Cardiologia Pediátrica e de Pediatria. Hospital Pediátrico de Coimbra. (C.H.C.). Coimbra 2011 CELOM Recebido em: 27 de Abril de 2010 Aceite em: 6 de Outubro de 2010 399 www.actamedicaportuguesa.com

days). The most common clinical findings were splenomegaly (100%), fever (96%), pallor (90%) and hepatomegaly (82%). Bone marrow aspiration was performed in all children, with amastigotes identified in 73% of the cases. Indirect immunofluorescence was performed in 30 cases, being positive in 29 (97%). All were treated with meglumine antimoniate. Three children relapsed during the first year after the initial episode. A 17 months-old child died due to cardiac failure. Conclusions: The early diagnosis of VL is essential to carry out prompt management and prevent potential fatal complications. In our analysis, the management with meglumine antimoniate resulted in an overall favourable outcome. INTRODUÇÃO A Leishmaniose visceral (LV) ou Kala-azar é uma doença sistémica, endémica em vários países, potencialmente fatal. Trata-se de uma parasitose do sistema retículohistocitário, provocada pela Leishmania spp, protozoários flagelados e parasitas intracelulares obrigatórios. A LV é causada por três espécies do complexo Leishmania donovani (L. donovani): L. donovani donovani (Índia, Ásia, África), L. donovani infantum (países da bacia mediterrânica) e L. donovani chagasi (América do Sul) 1. A incidência a nível mundial é de 500 000 casos/ano, sendo a mortalidade anual de cerca de 10% 2. No nosso país, tem uma distribuição geográfica predominante nas bacias hidrográficas 3. A Leishmania na maioria das áreas endémicas é mantida por um ciclo zoonótico. A infeccção é transmitida aos seres humanos por um mosquito fêmea do género Phlebotomus, geralmente o Phebotomus perniciosus, que se infecta após contacto com reservatórios infectados. Os cães e os roedores são os principais reservatórios 4. O período de incubação é, em média, dois a seis meses (duas semanas-24 meses) 3,5. Foi objectivo deste trabalho efectuar uma revisão dos casos de crianças internadas com o diagnóstico de LV, nos últimos 20 anos. Foi considerada recidiva, a re-infecção clínica e laboratorial (visualização de amastigotas no medulograma). Até 2002, todos os casos da região centro do país eram referenciados a este hospital terciário. A partir dessa data, um dos hospitais desta região passou a fazer localmente o diagnóstico e tratamento. RESULTADOS Nos últimos 20 anos, foram internadas 54 crianças com o diagnóstico de LV. Três dos processos clínicos foram excluídos por informação insuficiente, recaindo o estudo sobre os 51 restantes. De 1990 até 2000 ocorreram 38 dos 51 casos (75%), assistindo-se, nos últimos dez anos, a uma diminuição do número de internamentos por LV (figura 1). A maioria das crianças pertencia aos distritos de Castelo Branco (15/51, 29%), Coimbra (13/51, 25%) e Viseu (9/ 51, 18%) (figura 2). Quanto à proveniência, foram referenciadas de outro hospital, já com a suspeita diagnóstica de LV, 28 (55%) crianças; nove (18%) foram enviadas pelo POPULAÇÃO E MÉTODOS Foi efectuada uma análise retrospectiva dos processos clínicos das crianças com o diagnóstico de LV, admitidas entre Janeiro de 1990 e Dezembro de 2009. A avaliação incidiu sobre dados demográficos, epidemiológicos, clínica de apresentação, diagnóstico, terapêutica e evolução. Fig. 1 Distribuição anual de casos de leishmaniose visceral (1990-2009) www.actamedicaportuguesa.com 400

Fig. 2 Distrito de proveniência dos casos de leishmaníase visceral (1990-2009) médico assistente e 14 (27%) recorreram por iniciativa própria. A incidência de LV foi semelhante nos dois sexos (53% no sexo feminino). A média de idades foi de 27 meses (sete meses 12 anos), constatando-se que as crianças com idade inferior a dois anos foram as mais afectadas (36 crianças, correspondendo a 71%). Verificou-se um predomínio da doença nos meses de Primavera e Verão, diagnosticando-se 33 dos casos (65%). Como factor epidemiológico de relevo, destaca-se a frequência regular de praia fluvial em 17 crianças (33%). Em cerca de 50% dos casos a criança provinha de família de baixa condição sócio-económica (classes IV e V da classificação de Graffar). As manifestações clínicas surgiram maioritariamente de forma insidiosa, decorrendo, em média, 17 dias (0-180 dias) até à primeira observação clínica. A primeira avaliação laboratorial foi efectuada pelo 21º dia, em média. A hipótese diagnóstica de LV foi colocada em média ao 31º dia (2-188 dias). Os sintomas/sinais de apresentação mais frequentes foram esplenomegália (100%), febre (96%), palidez (90%), hepatomegália (82%), anorexia (59%) e irritabilidade/gemido (49%). A pancitopenia foi observada em 40 casos (78%). A velocidade de sedimentação na primeira hora foi determinada em 33 casos e estava elevada em 30 doentes (91%), sendo o valor médio de 83 mm/1ªh (11-142 mm/1ªh). O medulograma foi efectuado em todas as crianças, permitindo o diagnóstico, com a visualização do parasita em 37 casos (73%). Foram ainda realizados outros exames complementares: serologia por imunofluorescência indirecta em 30 crianças, tendo sido positiva em 29 (97%); Western-Blot em cinco crianças (positiva em todos); Polimerase Chain Reaction (PCR) para Leishmania na medula óssea e sangue periférico, em duas crianças (uma positiva na medula óssea e uma positiva no sangue periférico). Foi efectuado tratamento com Antimoniato de Meglumina numa dose crescente nos três primeiros dias, até uma dose total de 20 mg/kg/dia (80 mg/kg/dia de Glucantime ), intramuscular, perfazendo um período de tratamento, em dose total, de 15-20 dias. Um adolescente de 70 Kg foi medicado com Antimoniato de Meglumina endovenoso, sem intercorrências. A apirexia foi atingida, em média, após um dia de dose total de tratamento. Registaram-se intercorrências infecciosas em 12 crianças (24%): cinco otites médias agudas, três amigdalites, uma gastrenterite aguda, uma pericardite por Staphylococcus aureus, uma pneumonia e uma bacteriémia (hemocultura negativa). Uma criança de 17 meses faleceu em falência cardiorespiratória na admissão. Foi apenas possível apurar que se tratava de uma criança previamente saudável que recorreu ao hospital no terceiro dia de doença por quadro clínico caracterizado por febre e distensão abdominal. Após o diagnóstico, 26 crianças (51%) foram transferidas para o hospital da área de residência, para continuação de tratamento. Registaram-se recidivas clínicas da doença em três crianças, todas do sexo feminino e com idade inferior a dois anos, cuja apresentação clínica consistiu em febre e hepatoesplenomegália. Nas recidivas, foi feita a pesquisa do parasita no esfregaço da medula óssea, sendo positiva. Estas crianças foram tratadas com antimoniato de meglumina em doses mais elevadas (Glucantime 100 mg/ kg/dia). A recidiva ocorreu seis meses após o episódio inicial de LV numa criança e oito meses nas outras duas. A evolução foi favorável. DISCUSSÃO No período de estudo, a doença atingiu ambos os sexos de igual modo, o que está de acordo com outros trabalhos publicados 1,5. Ocorreu principalmente nos dois primeiros anos de vida, sendo rara depois dos cinco anos, e sobretudo nos meses de Primavera e Verão, altura em que as crianças brincam mais ao ar livre e há maior densidade do mosquito vector no ambiente, tal como descrito na literatura 2,4. As crianças residiam, na sua maioria, nos Distritos de 401 www.actamedicaportuguesa.com

Castelo Branco e Coimbra, que incluem as bacias hidrográficas dos rios Zêzere e Mondego, focos endémicos importantes em Portugal. Como factor epidemiológico, destaca-se a frequência regular de praia fluvial por 33% dos casos. Assistimos, ao longo dos anos, a uma redução do número de casos de LV, particularmente nos últimos dez anos, não se tendo registado nenhum caso em 2000, 2002, 2003 e 2008. Foram contactados os Hospitais que habitualmente nos enviavam crianças com esta hipótese de diagnóstico. Apenas o Hospital São Teotónio, em Viseu, passou a fazer o diagnóstico localmente, a partir de 2002, mantendo os restantes a mesma orientação. Assim sendo, poder-se-á inferir que esta diminuição se deverá, em parte, a uma menor referenciação das crianças com este diagnóstico, mas poderão haver outros factores, nomeadamente menos reservatórios infectados. Quanto às manifestações clínicas, a esplenomegália estava presente em todas as crianças, seguindo-se, por ordem de frequência, a febre, palidez, hepatomegália, anorexia e irritabilidade/gemido. Devido à progressão insidiosa da doença, verificou-se algum atraso na procura de cuidados de saúde, períodos de tempo semelhantes aos descritos noutras revisões sobre o mesmo tema 6,7. Infecções bacterianas concomitantes, frequentes na LV, estão documentadas no nosso estudo em 24% das crianças. O laboratório é um importante auxiliar no diagnóstico de LV. A pancitopénia, própria desta patologia 5, foi encontrada na grande maioria das crianças (78%). A velocidade de sedimentação na primeira hora estava aumentada em 91% dos casos, tal como descrito na literatura 6,7. O diagnóstico definitivo de LV assenta no isolamento do agente, por exame directo e/ou cultural. A Leishmania encontra-se por ordem decrescente de frequência no baço, medula óssea, fígado, gânglios linfáticos, mucosa nasal e sangue 4,5.O exame microscópico da amostra da medula óssea (medulograma) pode revelar a presença de amastigotas no interior dos macrófagos 2,5. O exame cultural não se efectua entre nós. Apesar da punção esplénica ter elevada sensibilidade (> 98%), existe um risco importante de hemorragia potencialmente fatal, principalmente se houver trombocitopénia significativa, pelo que raramente se utiliza 4,5. Todos os doentes da presente casuística foram submetidos a realização de medulograma, que permitiu a visualização de Leishmania spp na medula óssea em 73% das crianças. Nalguns estudos é descrita uma sensibilidade de 90% para este método, mas depende da experiência do observador 4. Esta técnica também permite o diagnóstico diferencial com outras patologias, nomeadamente as doenças mieloproliferativas. Trata-se contudo de um exame doloroso e invasivo, pelo que se tem verificado a nível internacional algum esforço no sentido de uniformizar e rentabilizar os métodos serológicos 2. Existem actualmente métodos serológicos, baseados na detecção de anticorpos, altamente específicos e sensíveis para a Leishmaniose, nomeadamente Imunofluorescência Indirecta (IFI), ELISA e Teste de Aglutinação Directa (TAD). Destes, o mais utilizado no nosso hospital foi a IFI, efectuada em 30 crianças, sendo apenas negativa num caso. É referida uma sensibilidade de aproximadamente 100% para este método, no entanto a especificidade é mais baixa que o método ELISA 2. O método de ELISA e o TAD, descritos na literatura como muito sensíveis e específicos, não foram usados para diagnóstico de LV em nenhuma das nossas crianças. Apesar de pouco invasivos, os testes serológicos apresentam como principais desvantagens a possibilidade de reacção cruzada com outros parasitas e o facto de permanecerem positivos após o episódio inicial de LV, não permitindo o seguimento nem o diagnóstico de recidivas 2,8. Além disso, podem dar resultados falsos negativos em doentes coinfectados com VIH 2. Podem também ser utilizados métodos de detecção molecular, como Western-blot e PCR para Leishmania spp. No nosso estudo o Western-Blot foi efectuado em cinco crianças (positivo em todas) e a PCR na medula óssea e sangue periférico, em duas. A PCR pode ser realizada quer na medula óssea, quer no sangue periférico, sendo a sua sensibilidade e especificidade elevadas, permitindo a detecção rápida do parasita e o seguimento após tratamento 2,4,8. No que diz respeito à terapêutica, todas as crianças receberam tratamento com antimoniato de meglumina. Analisando a literatura nacional e internacional verificase não existir consenso no que diz respeito à duração do tratamento 9, no entanto a preconiza uma duração de 28-30 dias, iniciando tratamento com a dose total do fármaco 5,10,11. Outro fármaco disponível e actualmente utilizado como primeira linha em muitos centros é a anfotericina B liposómica (AmBisome ) administrado endovenosamente 11. Novas terapias farmacológicas, particularmente de administração mais fácil e mais seguras, nomeadamente a miltefosina oral, estão a ser alvo de ensaios clínicos 4,10,11. Foram registadas apenas três recidivas, em crianças com idade inferior a dois anos. A maioria das crianças teve uma evolução favorável. CONCLUSÕES Nos últimos anos verificou-se uma diminuição do número de internamentos por LV. É importante manter um www.actamedicaportuguesa.com 402

elevado índice de suspeição clínica que permita um diagnóstico correcto e tratamento atempado desta doença insidiosa e potencialmente fatal. Recentemente têm-se desenvolvido novos métodos de diagnóstico e de terapêutica promissores. Conflito de interesses: Os autores declaram não ter nenhum conflito de interesses relativamente ao presente artigo. Fontes de financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo. BIBLIOGRAFIA 1. MELBY PC: Recent developments in leishmaniasis. Curr opin Infect Dis 2002;15:485-490 2. CRUZ I, CHICHARRO C, NIETO J et al: Comparison of new diagnostic tools for management of pediatric mediterranean visceral leishmaniasis. J Clin Microbiol 2006;44(7):2343-7 3. ESAGUY A, LEAL R: Kala-azar infantil (Leishmaníase Visceral). In: Dias PG, ed. Temas de Infecciologia Pediátrica. Lisboa: Glaxo Farmacêutica 1993;1:161-171 4. KAFETZIS DA, MALTEZOU HC: Visceral leishmaniasis in paediatrics. Curr Opin Infect Dis 2002;15(3):289-294 5. ORTEGA-BARRIA E: Leishmania species (Leishmaniasis). In: Long S, Pickering LK, Prober CG. Principles and Practice of Pediatric Infectious Diseases. 2 nd edition. Phyladelphia: Churchill Livingstone 2003;1281-9 6. BRANCO MR, MARTINS SV, GONÇALVES C, BARROSO A: Kala-azar Casuística do Hospital Pediátrico de Coimbra (sete anos). Rev Port D Infec 1988;11:29-33 7. MARCELO F, SILVESTRE P, TEIXEIRA AL: Kala-azar Casuística do Serviço de Pediatria do Hospital Amato Lusitano de Castelo Branco (1979-1995). Saúde Infantil 1996;18:23-30 8. SALOTRA P, SINGH R: Rapid and reliable diagnostic tests for visceral leishmanisis. Indian J Med Res 2005;122(6):464-7 9. BHATTACHARYA SK, SUR D, KARBWANG J: Childhood visceral leishmaniasis. Indian J Med Res 2006;123(3):353-6 10. BERMAN J: Current treatment approaches to leishmaniasis. Curr Opin Infect Dis 2003;16(5):397-401 11. HAILU A, MUSA AM, ROYCE C, WASSUNA M: Visceral leishmaniasis: new health tools are needed. PLoS Med 2005; 2(7):590-3 403 www.actamedicaportuguesa.com

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