Crise financeira e reestruturação do sistema monetário internacional



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Crise financeira e reestruturação do sistema monetário internacional Crise financeira e reestruturação do sistema monetário internacional Fernando Ferrari Filho* Luiz Fernando de Paula** Professor Titular da FCE-UFRGS, Pesquisador do CNPq e Vice-Presidente da Associação Keynesiana Brasileira, Doutor em Economia pela USP Professor Adjunto da FCE-UERJ, Pesquisador do CNPq e Presidente da Associação Keynesiana Brasileira, Doutor em Economia pela Unicamp Resumo Este artigo avalia a presente crise financeira internacional e as suas interpretações, bem como sinaliza que sua superação passa por um conjunto de medidas de natureza keynesiana. Palavras-chave: crise financeira; sistema monetário internacional; Keynes. Abstract This papers aims at evaluating the current international financial crisis and the interpretations of the crisis, as well as to show that is necessary a set of Keynesian policies in order to overcome the current crisis. Key words: financial crisis; international monetary system; Keynes. 1 Introdução Este breve artigo avalia a presente crise financeira internacional e as suas interpretações, bem como sinaliza que a sua superação passa por um conjunto de medidas de natureza keynesiana. Para tanto, discutem-se, inicialmente, as origens da crise atual, para, em seguida, mostrarem-se tanto a visão convencional quanto a * E-mail: ferrari@ufrgs.br ** E-mail: luizfpaula@terra.com.br keynesiana da crise. Finalmente, a proposta de reestruturação do sistema monetário internacional (SMI), à luz da teoria keynesiana, é apresentada. 2 A crise financeira atual A internacionalização do sistema financeiro tem alterado substancialmente a natureza e os determinantes da dinâmica econômica mundial: a conjugação entre a desregulamentação dos mercados financeiros e as inovações financeiras tais como securitizações e derivati-

Fernando Ferrari Filho; Luiz Fernando de Paula 1 Para um aprofundamento, ver Carvalho e Kregel (2008). vos, a livre mobilidade de capitais e a flexibilidade e a volatilidade das taxas de câmbio e de juros têm, por um lado, limitado a ação das políticas macroeconômicas domésticas e, por outro, sido um dos responsáveis tanto pelas frequentes crises de balanço de pagamentos das economias emergentes quanto pelas crises de liquidez e solvência, como a recente crise financeira internacional. Esse processo de globalização financeira, em que os mercados financeiros são integrados de tal forma a criar um único mercado mundial de dinheiro e crédito, acaba, por sua vez, diante de um quadro em que inexistem regras monetário-financeiras e cambiais estabilizantes, e os instrumentos tradicionais de política macroeconômica tornam-se crescentemente insuficientes para conter os colapsos financeiros (e cambiais) em nível mundial, resultando em crises de demanda efetiva. A crise financeira atual é, sobretudo, a crise da globalização financeira, entendida como uma certa tendência à criação de um mercado financeiro global e de intensificação no fluxo de capitais entre países. Esse processo remonta à crise do sistema de Bretton Woods e à formação do mercado de eurodólares, que, diga-se de passagem, acabou contribuindo para a desregulamentação doméstica dos sistemas financeiros com o fim da segmentação entre mercados e a liberalização dos fluxos de capitais. Como resultado do processo de desregulamentação financeira, observaram-se um acirramento na concorrência entre instituições bancárias e a consequente queda nas margens de intermediação financeira, tendo como resposta uma tendência à conglomeração financeira e um aumento na escala de operação, via fusões e aquisições. Assim, instituições financeiras passaram a explorar diferentes mercados, inclusive de mais baixa renda. No mercado de títulos, desenvolveram-se mecanismos de securitização, estimulados pelo crescimento de investidores institucionais, em que firmas e bancos se financiam empacotando rendas a receber. Em suma, uma vez que a securitização permitia a diluição de riscos no mercado, as instituições financeiras passaram a aumentar sua alavancagem, supondo que os mecanismos de autorregulação do mercado seriam capazes de continuar avaliando corretamente os riscos inerentes às atividades financeiras. 1 A crise do subprime mercado de financiamento imobiliário de maior risco acabou por expressar todas as contradições desse processo. A necessidade de ampliação de escala levou as instituições financeiras a incorporarem segmentos de baixa renda em condições de exploração financeira no caso do subprime, com taxas de juros variáveis (baixas no início e elevando-se ao longo do tempo), que acabou resultando em um processo de estrangulamento financeiro do tomador de crédito. A securitização, que serviria para diluir riscos, na prática serviu para esconder riscos títulos lastreados em hipotecas eram emitidos por instituições financeiras de grande porte, sendo tais ativos classificados como grau de investimento por uma agência de rating. Tais ativos, como resultado da globalização financeira, passaram, por sua vez, a ser comprados por investidores de diferentes nacionalidades. Criaram-se, assim, novos instrumentos financeiros que não foram devidamente regulamentados pelas autoridades. Mecanismos de autorregulação mostraram-se falhos, devido ao caráter pró-cíclico da tomada de risco: projetos que eram considerados ruins na desaceleração passaram a ser vistos como bons no boom cíclico. 3 A visão convencional da crise financeira Recentemente, foi publicado um livro de autoria de John Taylor (2009), Getting off Track, que parece sintetizar a visão conservadora da crise. Para Taylor, a crise resultou da adoção de uma política monetária excessivamente relaxada no início da década, que teria contribuído para inflar o preço dos imóveis nos Estados Unidos (EUA), e das ações vacilantes do Governo norte-americano ao enfrentar a crise, que, ao agir de modo confuso, ampliou a insegurança dos agentes. Para o economista norte-americano, se o Federal Reserve Bank (Fed) tivesse mantido, entre 2003 e 2005, as taxas de juros de curto prazo nos patamares sugeridos pela Regra de Taylor, ou seja, acima da efetivamente adotada pelo Fed, a expansão do mercado imobiliário norte-americano teria sido bem mais moderada. Ademais, a crise aprofundou-se em função do caráter hesitante do Governo, que a teria diagnosticado como uma simples crise de liquidez, sem perceber a extensão dos problemas dos bancos. Nesse sentido, a quebra do Lehman Brothers seria apenas mais um passo dessa estratégia confusa de lidar com a crise, em que a intervenção do Governo acabou piorando a situação. Alan Greenspan (2009), ex-presidente do Fed, em artigo do jornal Valor, desenvolveu uma interpretação distinta da crise: a crise do subprime não foi determinada

Crise financeira e reestruturação do sistema monetário internacional pela redução, entre 2002 e 2005, da taxa de juros do Fed, visto que a correlação entre a taxa de financiamento imobiliário e a referida taxa era pouco significativa, mas, sim, pelos expressivos superávits em conta corrente de vários países emergentes, em especial da China (e o excesso de poupança dele decorrente), que acabaram pressionando as taxas de juros de longo prazo para níveis progressivamente baixos, contribuindo, assim, para uma bolha de preço habitacional global. Em outras palavras, a criação de uma espécie de moeda endógena, relacionada à liquidez internacional, teria sido determinante na queda sincronizada global das taxas de juros. Greenspan, contudo, fiel (ou ofuscado pelos) aos seus princípios liberais, não enxergou na desregulamentação permissiva uma das causas principais da crise financeira. Assim, ele fornece uma interessante explicação para o estouro da bolha habitacional, mas não é capaz de ter uma visão mais abrangente da crise. Afinal, por que uma crise imobiliária, em um segmento secundário do sistema financeiro (subprime), acabaria por contagiar o sistema como um todo? Um aspecto crítico da argumentação de Taylor, além das considerações feitas por Greenspan, é sugerir que, no final de contas, a propagação da crise teria sido resultado de uma interferência excessiva e indevida do Governo, sob o velho argumento liberal de que a ação do Governo, ao fim e ao cabo, tende a ser ineficaz. Ora, essa não parece ser uma explicação convincente da crise, ao confundir relações de causa e efeito. Taylor e Greenspan têm em comum a sua fé no livre funcionamento do mercado mercados financeiros regulamentados tendem a ser pouco inovadores e ineficientes. Contudo deve-se entender que sistemas financeiros, ao mesmo tempo em que podem ajudar a potencializar o crescimento, são inerentemente instáveis, devido a problemas de assimetria de informações e a instabilidade, que é intrínseca ao funcionamento deles. 4 A perspectiva keynesiana da crise financeira John Maynard Keynes, em sua Teoria Geral do Emprego, do Juros e da Moeda (TG) de 1936, já chamava atenção para o fato de que, em economias monetárias da produção, a organização dos mercados financeiros enfrenta um trade-off entre liquidez e investimento: por um lado, eles estimulam o desenvolvimento da atividade produtiva, ao tornarem os ativos mais líquidos, liberando, portanto, o investidor da irreversibilidade do investimento; por outro, aumentam as possibilidades de ganhos especulativos. Assim, ao estabelecer uma conexão entre os mercados financeiro e real da economia, Keynes, na TG (1964, p. 159), escreve que [...] a posição é séria quando o empreendimento torna-se uma bolha sobre o redemoinho da especulação. Quando o desenvolvimento das atividades de um país torna-se o subproduto das atividades de um cassino, o trabalho provavelmente será mal-feito. Indo ao encontro de Keynes, nos dias de hoje, a ação dos global players, em um mercado mais liberalizado e integrado, faz com que os mercados financeiros se convertam em uma espécie de grande cassino global. Especulação, em uma economia global, tem caráter disruptivo não somente em mercados domésticos, mas sobre países como um todo, criando uma espécie de cassino financeiro ampliado. Na perspectiva keynesiana, instabilidade financeira não é vista como anomalia, mas como resultante da própria forma de operação dos mercados financeiros em um sistema no qual não existe uma estrutura de salvaguarda que exerça o papel de um market marker global. Assim, o formato institucional específico dos mercados financeiros determina as possibilidades de se ter um ambiente em que a especulação possa florescer. Crises financeiras não são apenas resultados de comportamentos irracionais dos agentes, mas resultam da própria forma de operação dos mercados financeiros globais liberalizados sem um sistema de regulação adequado (Alves Júnior; Ferrari Filho; Paula, 2004). A atual crise financeira internacional, cuja origem está nas perdas causadas pelo crescente default dos empréstimos das hipotecas de alto risco do mercado subprime norte-americano e que, devido ao fato de que grande parte dessas hipotecas foram securitizadas e distribuídas a investidores do mercado global, acabou tornando-se global, induz a duas reflexões. Em primeiro lugar, ela põe em xeque os benefícios concretos da globalização financeira, com mercados financeiros desregulados, inclusive nos países desenvolvidos. Em segundo, ela remete, a partir das medidas de natureza fiscal e monetária implementadas pelos EUA e pelos países da Zona do Euro e o Japão tais como injeção de liquidez e de capital nos sistemas financeiros por parte das autoridades econômicas desses países e redução sincronizada da taxa básica de juros dos principais bancos centrais mundiais, para se evitar uma recessão econômica aguda, tanto a repensar o próprio papel do Estado na economia, quanto à necessidade de rerregulamentar os sistemas financeiros domésticos e reestruturar o SMI.

Fernando Ferrari Filho; Luiz Fernando de Paula Em relação à primeira reflexão, como os mercados financeiros desregulamentados não são eficientes, na ausência de regras que estabilizem os referidos mercados, as atividades especulativas e a valorização financeira da riqueza afloram naturalmente. Isto porque a liberalização dos mercados financeiros e a existência de novos instrumentos financeiros (como derivativos) ampliaram a possibilidade de realização de atividades especulativas. Torna-se, assim, necessária a regulamentação de operações derivativas exóticas e outras práticas (alavancagem excessiva de instituições financeiras) que ocasionam a festa dos investidores e dos bancos. Quanto à segunda, a lição da crise atual é que não somente a ação estatal é fundamental para prevenir ou remediar a crise, como é importante, sobretudo em momentos críticos, uma maior coordenação global entre as diferentes políticas nacionais, em particular dos grandes países desenvolvidos. No que diz respeito à necessidade de se reestruturar o SMI, pode-se dizer que há um certo consenso, entre economistas e policymarkers, de que medidas para restaurar a estabilidade do referido sistema são fundamentais. Todavia, infelizmente, não há um consenso acerca de como o SMI deve ser reestruturado. Para os economistas do mainstream, um SMI eficiente para países emergentes é aquele constituído por regimes cambiais flexíveis, maior mobilidade de capitais e maior liberalização financeira dos mercados, pois tais medidas equilibram, automaticamente, os balanços de pagamentos, alocam eficientemente as poupanças e melhoram a performance econômica. Por outro lado, a necessidade de se preservarem as autonomias das políticas fiscal e monetária dos países essenciais para assegurarem trajetórias de crescimento econômico sustentável tem reforçado o ponto de vista de economistas keynesianos, de que é necessária a criação de uma espécie de International Market Maker para garantir a liquidez internacional, para expandir a demanda efetiva mundial. Essa questão é melhor explorada na seção seguinte. 5 Uma proposta de superação da crise à la Keynes A presente crise financeira internacional, que acabou afetando dramaticamente a atividade econômica dos países tanto desenvolvidos, em maior escala, quanto emergentes, tem gerado um consenso acerca da necessidade de se reestruturar o SMI, condição imprescindível para que a economia mundial volte a experimentar períodos de estabilidade e de crescimento dos níveis de produto e emprego. Indo nessa direção, em abril de 2009, o Presidente do Banco Popular da China e o G-20 apresentaram algumas propostas que visam reestruturar o SMI. Por um lado, o Presidente do referido banco sugeriu a substituição do dólar como moeda de conversibilidade internacional pela criação de uma moeda universal, soberana e independente das decisões dos bancos centrais nacionais. Por outro, o G-20 propôs, além da criação de uma linha de crédito emergencial de cerca de US$ 1,1 trilhão, para aumentar o volume de funding do Fundo Monetário Internacional e dos bancos de desenvolvimento multilaterais e para financiar o comércio mundial, marcos regulatórios para o sistema financeiro principalmente dos hedge funds, a reforma das instituições financeiras e restrições aos paraísos fiscais, dentre outras medidas. As proposições acima remetem à proposta de Keynes (1980) apresentada na conferência de Bretton Woods, em 1944, qual seja: a criação de uma autoridade monetária internacional, International Clearing Union (ICU), emissora de uma moeda de reserva internacional (bancor), não passível de entesouramento e especulação por parte dos agentes econômicos, voltada basicamente para estimular as relações comerciais e financeiras do SMI. Para que essa moeda pudesse lastrear as operações econômicas entre os países, a estabilidade do SMI, segundo Keynes, deveria ser assegurada pela adoção de regras cambiais fixas, porém ajustáveis, e pela implementação de controle dos fluxos de capitais de curto prazo. Ciente de que, em economias monetárias da produção, a organização dos mercados financeiros enfrenta um dilema entre liquidez e investimento eles estimulam o desenvolvimento da atividade econômica, mas, ao mesmo tempo, aumentam as possibilidades dos ganhos especulativos, a ideia central de Keynes, com sua ICU, era garantir a liquidez internacional necessária para expandir a demanda efetiva mundial. Para tanto, o bancor, em conjunto com a sistemática de taxas de câmbio administradas e de cerceamento da capacidade desestabilizadora dos fluxos de capitais, sinalizaria a convenção estabilizadora das expectativas dos agentes econômicos, fundamental para, ao reduzir o grau de incerteza acerca do comportamento futuro dos preços dos ativos e/ou contratos, dinamizar as suas tomadas de decisão de gastos, sejam de consumo, sejam de investimento, expandindo, por conseguinte, a atividade econômica e o nível de emprego.

Crise financeira e reestruturação do sistema monetário internacional Seis décadas após a proposta de Keynes e quase três décadas depois da rejeição, por parte dos policymakers, de políticas econômicas de natureza keynesianas para estimular a atividade econômica, a ironia do mundo globalizado é que a solução para a presente crise passa, em termos práticos, por políticas fiscais contracíclicas keynesianas e, em termos teóricos, por uma proposição de reestruturação do SMI de algum modo similar à apresentada por Keynes quando da conferência de Bretton Woods. Em relação à praticidade da política keynesiana, as principais autoridades econômicas mundiais (AEM), cientes de que a crise atual está relacionada à ausência de atuação do Estado e não à sua suposta ação ativa, têm atuado ativamente para, se não evitar, atenuar o recrudescimento da crise financeira e sua propagação prolongada para o lado real. Nesse sentido, as políticas econômicas que têm sido implementadas nos últimos meses pelos Estados Unidos, nos países da Zona do Euro e no Japão, mostram que a crise deve ser enfrentada através da atuação de um banco central como prestador de última instância e da adoção de políticas fiscais contracíclicas. Em termos teóricos, as proposições do banco central chinês e do G-20 reconhecem, por um lado, assim como Keynes reconhecia na TG, que a liberalização e desregulação dos mercados financeiros pode levar, como já assinalado, [...] as atividades econômicas de um país a tornarem-se um subproduto das atividades de um cassino. Por outro, as proposições apresentadas convergem para a proposta de Keynes: reestruturação do SMI, para que ele possa manter a estabilidade dos preços, assegurar a liquidez para a economia mundial e regular os ciclos econômicos. Em suma, no momento em que as AEM implementam políticas econômicas keynesianas e acenam com a possibilidade de se arquitetar uma nova ordem do SMI, bem como o pensamento convencional de fé na eficiência dos mercados livres e desregulamentados é seriamente questionado, o resgate das ideias de Keynes acerca de políticas fiscal, monetária e cambial ativas e da reestruturação do SMI é essencial para um desfecho menos sombrio para a crise financeira internacional e, principalmente, para a prevenção de outras crises. Referências ALVES JUNIOR, A.; FERRARI FILHO, F.; PAULA, L. F. Crise cambial, instabilidade financeira e reforma do sistema monetário internacional. In: FERRARI FILHO, F.; PAULA, L. F. (Org.). Globalização financeira: ensaios de macroeconomia aberta. Petrópolis: Vozes, 2004. CARVALHO, F. C.; KREGEL, J. Crise financeira e déficit democrático. Rio de Janeiro: IBASE, 2008. GREENSPAN, A. O Fed não causou a bolha habitacional. Valor, 12 mar. 2009. KEYNES, J. M. The general theory of employment, interest and money. New York, HBJ Book, 1964. KEYNES, J. M. Activities 1940-1944: shaping the post- -War World, the Clearing Union. London, Macmillan, 1980 (The Collected Writings of John Maynard Keynes, v. 25, edited by Donald Moggridge). TAYLOR, J. Getting Off Track: how government actions and interventions caused, prolonged, and worsened the financial crisis. Stanford, Hoover Institution Press, 2009.

Fernando Ferrari Filho; Luiz Fernando de Paula