Fraude do Leite. A fraude do leite tem de acabar



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Transcrição:

Fraude do Leite A fraude do leite tem de acabar Sebastião César Cardoso Brandão, Ph.D. Professor Titular do Departamento de Tecnologia de Alimentos Universidade Federal de Viçosa A fraude econômica do leite produz imensos lucros ilegais, à custa dos direitos dos consumidores e da perda dos conceitos fundamentais da sociedade brasileira. É como fazer dinheiro falso em uma impressora. É muito fácil e lucrativo fazer dinheiro falso. Mas se ocorre com freqüência, parece que há tolerância. Nesse caso devemos todos fraudar? Essa é uma premissa totalmente errada que leva a sociedade a uma situação crítica. Se muitos fizerem dinheiro falso, a sociedade entra em colapso total, pois o dinheiro perde totalmente a credibilidade. A lisura das transações comerciais é fundamental para a sustentação da convivência da sociedade. Se não tem policiamento efetivo a lei não é efetiva, o que cria a cultura da impunidade. Fraudar o leite puro com água ou com soro é mais fácil ainda do que fazer dinheiro falso, pois a mistura de água ao leite é muito mais fácil de ser feita, e de ser escondida. A lucratividade ilegal também é enorme, pois a adição de 10% de água em uma empresa de 500.000 litros de leite por dia rende mais de R$ 1,5 milhão por mês. A multa máxima que o MAPA pode aplicar pela fraude do leite é de 16 mil reais, valor ridículo perante os ganhos. Ainda mais, se a multa não for paga, existem meios legais de contornar as conseqüências dessa punição. No entanto, existem diversos métodos de análises laboratoriais para determinar se o leite foi fraudado. Os fraudadores, então, sabendo disso, desenvolvem processos ilegais, como a adição de reconstituintes (sal, açúcar, etanol, entre outros compostos) para modificar os resultados das análises laboratoriais, de tal forma que eles não acusem que houve a fraude. Existem também métodos oficiais de análises para detectar a presença desses reconstituintes. Entretanto, os fraudadores, com o passar dos mais de 40 anos de experiência na fraude econômica do leite, passam a usar novos reconstituintes que não tem metodologia oficializada, ou então que são usados em baixíssimas concentrações, dentro do limite de variação da concentração de componentes normalmente encontrados no leite. Em resumo, enquanto que o governo tenta desenvolver metodologia analítica para determinar indicadores de fraudes com credibilidade judicial, os fraudadores desenvolvem processos e produtos para mascarar os resultados das análises laboratoriais e escaparem de decisão punitiva da Justiça. A fraude econômica do leite pode criar uma série de efeitos colaterais, inclusive envolvendo terceiros, pois o fraudador pode também vender o leite a granel para outras empresas que irão então industrializá-lo. Nesse caso o leite fraudado está sendo processado e comercializado por empresa que não o fraudou diretamente. Como o leite fraudado pode facilmente ter um preço abaixo do leite honesto, e ainda apresentar muito lucro ilegal, ele se torna muito competitivo no mercado. Dessa forma, ele ainda contribui para reduzir o preço do leite honesto. Os fraudadores podem, inclusive, após a divulgação do julgamento inocentando-os, por conseguir burlar a legislação e os métodos de análises laboratoriais, processar os acusadores por perdas e danos, e lucros cessantes. Interessante ressaltar que funcionários públicos, como os fiscais federais, se processados judicialmente, tem de contratar advogado por conta própria para se defender, pois o governo não disponibiliza advogado para sua defesa. Além disso, eles, os fiscais, ainda têm de arcar inclusive com 1

possíveis indenizações de danos à empresa fraudadora, em caso de perda da causa. Isso acaba se tornando mais um fator que prejudica o combate à fraude, pois, como veremos a seguir, podem existir diversos furos nas peças de acusação, que, se o fraudador usar de bons assessores, ele consegue que a justiça não consiga penalizá-lo. Por outro lado, esperar também que existam métodos analíticos perfeitos, que detectem o uso de qualquer produto ilegal, de reconstituintes ou de compostos químicos naturalmente presentes no leite em menores concentrações, só vai prolongar a existência da fraude, e garantir a impunidade dos fraudadores. Desenvolveu-se até um mercado de consultoria especializada em produzir leite fraudado com os resultados das análises laboratoriais normais. A fraude se sofisticou a ponto de serem adicionados compostos químicos proibidos para mascarar e tornar inviáveis os métodos de análise laboratoriais para determinar a adulteração. Outro mercado de consultoria especializada que se desenvolveu foi o de defesa contra ações punitivas do MAPA para protelar, ou até mesmo inviabilizar a punição. Nesse caso o nome do consultor nem aparece nas peças da defesa da empresa acusada, pois quem as assinam é o presidente da empresa autuada. Mas a consultoria foi paga a preço de ouro. Alguns desses supostos consultores têm até doutorado na área química analítica, o que dificulta mais ainda as ações legais do MAPA. Aliás, algum Conselho Federal (de Química, Medicina Veterinária, CREA, entre outros) já realizou ação para julgar e, se for o caso, punir o profissional que usa seus conhecimentos para burlar e inviabilizar a ação corretiva da sociedade (poder executivo, poder judiciário e poder legislativo) contra as fraudes do leite? A função desse profissional é desenvolver processos ilegais, que permitem a fraude do leite sem que possa ser provada por metodologia analítica oficial. Com isso eles prejudicam toda a sociedade. Outro grave problema é a fragilidade do arcabouço jurídico usado pelo governo. A legislação básica sobre a produção, industrialização, e da qualidade e identidade do leite fluido encontra-se no RIISPOA (Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal), que é o Decreto 30.391, publicado em 1952, assinado pelo Presidente Getúlio Vargas, para regulamentar a Lei 1.283 de 1950. O fato de o regulamento original ser um Decreto dificulta, e na verdade inviabiliza, pelo princípio da hierarquia das leis, qualquer alteração conflitante posterior sem a assinatura do Presidente da Republica. Urge que o atual Presidente da Republica assine um Decreto transferindo a responsabilidade de publicar oficialmente detalhamentos, específicos para cada caso, aos Ministérios responsáveis pelo setor, através de normas como instrumentos que possam ser alterados com mais agilidade, em virtude de atualizações constantes. Essas atualizações são necessárias tanto para acompanhar o dinamismo tecnológico, como para inibir a ação dos fraudadores. Existem ainda interesses políticos regionais, que podem conflitar com os interesses dos consumidores. Pessoas influentes já defenderam que a função do SIF é ensinar a empresa a trabalhar direito e não a de fornecer evidências legais, de sua competência legal, para manter todo o sistema sob controle. Não se pode misturar o serviço do SIF no combate à fraude do leite com os supostos interesses escusos de algumas empresas. Não é função da Inspeção Federal ensinar as empresas. Essa função é de outros órgãos, tais como a Emater, Sebrae, entre muitos outros. A função do SIF é manter toda a cadeia produtiva sob controle, para garantir produtos seguros e competitividade sadia. Tem de haver a segregação das funções, inclusive para todo o sistema funcionar conforme o esperado pela população. As análises laboratoriais de controle dos produtos lácteos brasileiros são realizadas em 7 Lanagros do MAPA e em muitos laboratórios das Vigilâncias Sanitárias 2

estaduais. Esses laboratórios usam metodologias oficiais, desenvolvidas, validadas e publicadas pelo poder executivo, utilizando diversos equipamentos, muitos deles caros, como os de análises cromatograficas e espectrometricas. Mas mesmo com essas metodologias e equipamentos, detectar um adulterante pode ser difícil. Pode ocorrer, inclusive, que o adulterante já exista naturalmente no leite, havendo somente um pequeno aumento na sua concentração, o que torna a análise laboratorial inconclusiva para diferenciar leite puro de leite fraudado. Acrescente-se a isso o fato de que existe falta de recursos para disponibilizar materiais de consumo (reagentes químicos, colunas cromatográficas, padrões, lacres etc.), de material permanente (equipamentos específicos, freezers para guarda de amostras etc.), diárias para o deslocamento dos fiscais federais para a inspeção, e até de transporte das amostras (veículos, combustível etc.). Somado a tudo isso, a legislação que fixa a identidade e as características mínimas de qualidade de alguns produtos lácteos não permite o seu controle. A Portaria 370/1997 do MAPA, que estabelece os padrões de qualidade e identidade do leite UHT, por exemplo, não estabelece a concentração mínima de proteínas. Tanto a matéria prima para o leite UHT (o leite cru) como o leite pasteurizado tem concentração mínima legal de proteínas de 2,9%. O componente do leite que tem o valor monetário mais elevado é a proteína, e na grande maioria das vezes, é o componente que tem o seu teor reduzido pela fraude econômica intencional. Dessa forma, eliminar a concentração mínima de proteínas da legislação que estabelece seu padrão de qualidade e identidade é facilitar a fraude. Outra característica físico-química que só existe legalmente para o leite cru e para o leite pasteurizado, e não existe para o leite UHT, é o índice crioscópico máximo, que é usado para determinar a fraude do leite com água. Outra diferença é que para o leite UHT a concentração mínima de extrato seco desengordurado é 8,2% para leite integral, 8,3% para leite semi-desnatado, e 8,4% para leite desnatado (Portaria 370/92), enquanto que para o leite cru e para o leite pasteurizado, o teor mínimo de sólidos do leite não gordurosos é de 8,4% para todos esses tipos de leite. Observa-se, dessa forma, que a legislação é mais tolerante para o leite UHT do que para o leite cru, ou para o leite pasteurizado. Aliás, a Portaria 370/92 aprova também o citrato de sódio para ser usado em leite UHT, mas não menciona que tipo de citrato de sódio (mono, di, ou tri) pode ser usado, nem a concentração máxima permitida. Em resumo, os fraudadores estão sempre um passo na frente das ações do governo. Dessa forma o governo não pode depender somente dos resultados laboratoriais para acabar com a fraude do leite. É preciso ter outros canais legais efetivos. Por outro lado, provas legais da fraude intencional podem ser obtidas em uma ação realizada diretamente nas instalações dos fraudadores, por órgãos do governo. A prova pode ser a presença de materiais e equipamentos usados para a fraude, ou ainda o depoimento de pessoas que sabem da ocorrência da fraude. Isso pode ser realizado tanto pelo MAPA, como pela Polícia. Enquanto o MAPA tem acesso legal direto às instalações do fraudador, e o apoio da rede dos Lanagros para realizar as análises laboratoriais, a Polícia pode realizar ações de inteligência (infiltração, enfim trabalho de detetive), policiais (intimações, depoimentos, etc.), produção de provas (fotografias, impressões digitais, registros em notas fiscais de fornecedores, coleta de provas, entre outros). Dessa forma, ações conjuntas do MAPA com a Polícia, ANVISA, Ministério Público, Receita Federal, Receita Estadual, e com outros órgãos de fiscalização e de Defesa do Consumidor, podem tornar o sistema de controle das fraudes bem mais eficiente. 3

Além do prejuízo na alimentação dos consumidores, da concorrência ilegal, a fraude do leite ainda se reflete no futuro, pois causa a impressão de que o leite não é de qualidade controlável, reduzindo o seu consumo. Esse marketing negativo possivelmente é uma das razões do baixo consumo de leite no Brasil. A sociedade espera que o Estado exerça ações coercivas contra fraudes, punindo os responsáveis, e mantendo sua ocorrência sobre controles. Mas se uma situação vem ocorrendo a muitos anos, sendo claramente denunciada e conhecida, sem que exista nenhuma punição severa, como é o caso da fraude do leite, ela causa grandes prejuízos aos consumidores, causa enorme enriquecimento dos fraudadores, e inviabiliza a concorrência dentro das bases da lei. A fraude do leite existe e é denunciada por mais de 40 anos, sendo, inclusive, mais recorrente nos últimos 10 anos. Dessa forma, a atitude mais recomendável, pelo menos no meu ponto de vista, é a de realizar um combate inteligente contra a fraude econômica do leite, acabando de vez com essa ineficiência gravíssima da nossa sociedade. Muitos e muitos consumidores, produtores e indústrias honestas já foram prejudicados pelas constantes denúncias das atividades ilegais, perturbadoras, e desestabilizadoras dos fraudadores de leite. Os consumidores e os produtores honestos não podem mais suportar isso. Como uma situação do mercado desonesto consegue prejudicar tão negativamente o mercado honesto? Enquanto tolerarmos a fraude econômica do leite estaremos sujeitando a grande maioria dos produtores às instabilidades econômicas que afetaram, inclusive, o preço do leite do mercado interno brasileiro. O julgamento dos acusados de fraude deve ser legal, mas tem de ser inteligente, de um lado para evitar injustiças, e de outro para usar informações que podem facilmente ser obtidas em outras diligências, além da simples análise da composição do leite. Essa é a especialidade principal da inteligência da polícia constituída pelo Estado. Porém, não será um método de análise laboratorial, ou uma ação isolada de um fiscal, ou uma mudança na legislação que vai acabar definitivamente com a fraude do leite no Brasil. Somente uma ação conjunta inteligente dos órgãos responsáveis, com objetivos claros e pontuais, com disponibilidade de recursos humanos e materiais, poderá acabar definitivamente com a fraude do leite no Brasil. Não é um trabalho fácil, mas é o trabalho que a sociedade precisa realizar, para promover a honestidade e a comercialização sadia, no interesse dos consumidores, dos produtores de leite e da indústria. O Poder Executivo (federal, estadual, e municipal) tem responsabilidades na manutenção de um estado de direito onde todos devem receber pelo que foi comprado, especialmente o leite, e que deve ser mantida uma situação de concorrência leal, delimitada por legislação e ações do governo específicos. Assim como o dinheiro usado nas transações comerciais não pode ser falso, o leite não pode ser fraudado. Para a determinação laboratorial da fraude do leite diversos métodos de analises já foram oficializados pelo Ministério da Agricultura. Entre os mais recentes podemos destacar os métodos que determinam o etanol (usado para corrigir a crioscopia após fraude com água ou com soro), a maltodextrina (usada para corrigir a densidade ou a crioscopia após a fraude com água, ou ainda para fraudar leite em pó), e o índice de CMP (usado para determinar a qualidade do leite, detectando a adição de soro). Recentemente nossos laboratórios já desenvolveram novos métodos de análise laboratorial para determinar a fraude do leite, inclusive um método para determinar se o leite foi adicionado de leitelho, usando metodologia para determinar quantitativamente o fósforo de fosfolipídeos do leite. Esse método pode ser usado avaliar a fraude com 4

leitelho em leite pasteurizado, leite UHT, leite condensado, e leite em pó. Esse método ainda não foi oficializado pelo MAPA. Outro método que desenvolvemos recentemente é o método para determinar se o leite foi adicionado de agentes alcalinos para reduzir a acidez titulável de leite ácido. Nesse caso estudamos o aumento da concentração real de ácido lático no leite, por cromatografia líquida de alto desempenho exclusão de íons, e determinamos que existe correlação linear entre o aumento da acidez titulável do leite e a concentração real de ácido lático. Leite de boa qualidade, com acidez titulável de 0,155%, expressa em ácido lático, tem concentração real de ácido lático de menos de 1 mmol por 100ml. Leite com fermentação descontrolada com acidez titulável de 0,18%, expressa em ácido lático, tem concentração real de ácido lático de 8mmol por 100ml. Dessa forma a legislação poderia estabelecer que a concentração real de ácido lático no leite não poderia ser maior do que 8 mmol por 100ml (o que corresponde à acidez titulável máxima permitida, de 0,18%, expressa em ácido lático). Esse método ainda não foi oficializado pelo MAPA. Estamos ainda trabalhando em dois outros métodos de análises laboratoriais para determinar a fraude do leite com soro, que são os métodos de eletroforese capilar e o método de cromatografia líquida de alto desempenho com detecção por espectrometria de massa. Esses métodos estão em fase final de desenvolvimento, e pelo menos um deles deve estar concluído até o final de outubro de 2008. Entretanto é exatamente isso que os fraudadores querem que seja feito, que a ênfase das ações esteja no desenvolvimento de metodologia de analises laboratoriais, porque dessa forma, quando um método de analise é desenvolvido, eles, os fraudadores, contratam um técnico inescrupuloso (para dizer o mínimo), para desenvolver um outro método de fraude, ou então para fraudar dentro dos limites de tolerância de diversos indicadores de qualidade do leite. O governo tem de usar inteligência nas suas ações de combate à fraude do leite. Para isso tem de usar de todos os meios legais para obter provas que serão usadas nos tribunais para que a punição torne a fraude do leite uma atividade muito arriscada, com punição proporcional ao prejuízo que tem causado à sociedade. Para tanto é preciso envolver mais a Polícia, o Ministério Público, e os Órgãos de Defesa do Consumidor. Outra vez, esperar que somente as análises laboratoriais sejam suficientes para combater a fraude do leite é fazer o jogo dos fraudadores. Na situação atual, depois de mais de 40 anos de impunidade, a fraude do leite tem de ser considerada caso de polícia. 5