Emancipar ou embrutecer? Laura Noemi Chaluh 1 Rancière (2002), em seu livro O mestre ignorante cinco lições sobre a emancipação intelectual 2, traz o percurso educativo e as considerações elaboradas por Joseph Jacocot, um pedagogo francês, no contexto do começo do século XIX, que questiona os pressupostos sobre os quais se baseia a razão pedagógica moderna. Rancière dialoga com Jacocot e foram esses diálogos que me permitiram refletir também sobre a questão da palavra e sua importância para a emancipação do homem. Questão que me envolve... Quais são os significados que a palavra emancipação traz, a partir do pensamento de Jacocot? Questão filosófica, questão política... Procurando pistas no texto desenvolvo aqui a questão filosófica. Entusiasma-me pensar na relação professor-aluno, aluno-professor, professor-professor, tendo como marco a palavra do outro. A palavra do outro pensada como possibilidade, como ponte para alcançar a emancipação. A emancipação é considerada como a tomada de consciência por parte de cada homem de sua natureza de sujeito intelectual. O pensamento não é um atributo da substância pensante, mas um atributo da humanidade (Rancière, 2002, p.47, grifos do autor). Mas, como é possível esse conhecimento de nós mesmos? A resposta que aparece no livro nos oferece um caminho possível: um camponês, um artista (pai de família) se emancipará intelectualmente se refletir sobre o que é e o que faz na ordem social (Rancière, 2002, p.17). E nós, professores? O que é que nós somos? O que é que nós, professores, fazemos dentro do sistema, dentro deste contexto sócio-histórico? Fica claro no texto, que para poder emancipar uma outra pessoa, é necessário primeiramente que se tenha emancipado a si próprio. Será que nós, professores, conseguimos nos emancipar a nós mesmos? Será que 1 Profa. Dra. do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto de Biociências da UNESP Univ Estadual Paulista. 2 Tive acesso ao texto de Rancière, no Grupo de Terça do GEPEC (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada, Faculdade de Educação, UNICAMP), 2004. Este texto foi produzido nessa época.
acreditamos na nossa inteligência, nas nossas potencialidades, acreditamos na ideia de sermos sujeitos intelectuais? E Jacocot, será que pensou em nós, professores, como sendo sujeitos intelectuais e, como consequência, emancipados? A principio pareceria que a visão que Jacocot tem sobre nós, não é muito alentadora: com suas perguntas, eles guiam discretamente a inteligência do aluno - tão discretamente, que a fazem trabalhar, mas não o suficiente para abandoná-la a si mesma (Rancière, 2002, p.40). Aparece, assim, a ideia de professor como alguém que embrutece, que explica, que não possibilita nem favorece o desenvolvimento da inteligência do aluno de forma autônoma. Jacocot confronta os termos mestre artista e coloca a ideia do artista como a pessoa capaz de emancipar: A lição emancipadora do artista, oposta termo a termo à lição embrutecedora do professor, é a de que cada um de nós é artista, na medida em que adota dois procedimentos: não se contentar em ser homem de um ofício, mas pretender fazer de todo trabalho um meio de expressão; não se contentar em sentir, mas buscar partilhá-lo. O artista tem a necessidade de igualdade, tanto quanto o explicador tem necessidade de desigualdade (Rancière, 2002, p.79). Agora, pensando em nosso cotidiano escolar, em estar com os nossos alunos, com os nossos colegas, considerando as múltiplas relações que estabelecemos na escola, me questiono, me pergunto: em que condições posso estar oportunizando essa emancipação do outro, sendo esse outro um aluno, um colega? Lógico, que se eu acredito poder estar emancipando o outro, é porque parto da ideia de que considero-me um sujeito intelectual (lembrando a fala de Jacocot), que acredita nas possibilidades e nas potencialidades que esse outro tem. Pareceria que o mais importante nessa relação não é oferecer a chave que permite ter acesso ao saber. Nessa relação com o outro, Jacocot nos diz que ter a consciência daquilo que pode uma inteligência, quando ela se considera como igual a qualquer outra e considera qualquer outra como igual à sua (Rancière, 2002, p.50). Será que nós questionamos, pensamos, acreditamos, que nossos alunos são semelhantes a nós, ou esquecemos de nossa igualdade no sentido de ser homens e mulheres, nossa humanidade?
Jacocot enfatiza que a virtude de nossa inteligência está menos em saber, do que em fazer. Segundo ele: Saber não é nada, fazer é tudo (Rancière, 2002, p.74, grifos do autor). Esse fazer tem estreita relação com o ato de comunicação: falar é a melhor prova da capacidade de fazer o que quer que seja (Rancière, 2002, p.74). Começa aparecer com clareza a questão filosófica colocada por Rancière no sentido de enfatizar a palavra do outro como meio para a emancipação: No ato da palavra, o homem não transmite seu saber, ele poetiza, traduz e convida os outros a fazer a mesma coisa. Ele se comunica como artesão: alguém que maneja as palavras como instrumentos. O homem se comunica com o homem por meio de obras de sua mão, tanto quanto por palavras de seu discurso: Quando o homem age sobre a matéria, as aventuras desse corpo tornam-se a história das aventuras de seu espírito. E a emancipação do artesão é, antes de mais nada, a retomada dessa história, a consciência de que sua atividade material é da natureza do discurso. Ele se comunica como poeta: um ser que crê que seu pensamento é comunicável, sua emoção, partilhável (Rancière, 2002, p.74). Algumas pistas me estão ajudando: falar, comunicar, poetizar, emoção, sentir, compartilhar... Segundo Jacocot, o aluno recebe a palavra do mestre, neste sentido aparece uma relação de hierarquia, com a superioridade do mestre e do poder da palavra. Qual a relação que o homem-artista estabelece com os outros e a palavra? O homem-artista não pretende transmitir um saber, ele poetiza, cria, joga com as palavras e ao mesmo tempo convida aos outros a poetizar. Será que nós professores estamos convidando aos nossos alunos a poetizar, a pensar, a falar, a sentir, a se expressar? Será que o que Jacocot está colocando é que nós não estamos oportunizando a comunicação com o outro, o que implicaria a não possibilidade de expressão do que o outro pensa, do que o outro sente? Por isso, o exercício da palavra e a concepção de qualquer obra como discurso são um prelúdio para toda aprendizagem, na lógica do Ensino Universal. É preciso que o artesão fale de suas obras para se emancipar; é preciso que o aluno fale da arte que quer aprender. Falar das obras dos homens é o meio de conhecer a arte humana (Rancière, 2002, p.74, grifos do autor).
Fico pensando na música e na sua relação com o prelúdio: ensaio da voz ou de um instrumento antes de cantar ou tocar. Como será esse prelúdio com a palavra? Quais as formas que temos que procurar para possibilitar esses prelúdios na sala de aula? A importância da palavra, de falar. Acredito sim na palavra e na força das palavras na relação com os outros. A ideia do artista me levou a procurar algumas concepções sobre o que significa ser artista hoje, em um outro espaço e em um outro tempo. Apresento na continuação alguns conceitos do artista Ferreira Gullar 3 que nos permitem refletir sobre algumas diferenças entre a ciência, a filosofia e a arte: Não sou um educador, não sou um especialista em educação. [...] Não há nenhuma novidade em dizer que o modo de conhecimento estético difere do modo de conhecimento científico e mesmo do modo de conhecimento filosófico. A arte, a poesia são na verdade expressões questionadoras de todo o conhecimento estabelecido e até mesmo do próprio conhecimento estético. O artista é um questionador permanente da cultura, muito embora isso não implique uma atitude niilista com respeito à cultura. É uma atitude tacitamente crítica, porque privilegia a experiência existencial, afetiva, em face do mundo conceitualizado. [...] Desse modo, o cientista, o filósofo, o sociólogo também questionam a cultura, mas diferentemente do poeta e do artista. Aqueles querem substituir um conceito por outro conceito. O artista não. O artista questiona a própria conceituação da realidade. Ele se nega à generalização que dissolve a experiência vivida no conceito abstrato (Gullar, 1989, p.152-157). Será, como diz Gullar, que nós, como professores, deveríamos abandonar a busca de generalizações, de novos conceitos, abstrações, categorias, e deveríamos nos importar mais com a possibilidade de questionar a realidade que nos apresenta o cotidiano escolar, valorizando o que nele acontece, a experiência vivida? 3 Nascido em São Luiz do Maranhão, em 1930, Ferreira Gullar, procurou apontar em sua obra a problemática da vida política e social do homem brasileiro. De uma forma precisa e profundamente poética traçou rumos e participou ativamente das mudanças políticas e sociais brasileiras, o que lhe levou à prisão juntamente com Paulo Francis, Caetano Veloso e Gilberto Gil em 1968 e posteriormente ao exílio em 1971. Poeta, crítico, teatrólogo e intelectual, Ferreira Gullar entra para a história da literatura como um dos maiores expoentes e influenciadores de toda uma geração de artistas dos mais diversos segmentos das artes brasileiras. http://www.opoema.libnet. com.br/ferreiragullar/ferreiragullar.htm
Referências GULLAR, Ferreira. Educar o educador. Indagações de Hoje. Rio de Janeiro: José Olympo, 1989. p.152-157. Disponível em: <http://portalliteral.terra.com.br/ ferreira_gullar/porelemesmo/educar_o_educador.shtml?porelemesmo>. Acesso em mar., 2003. RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.