Pancreatite crônica Cirurgia
PANCREATITE CRÔNICA A pancreatite crônica é definida como uma lesão irreversível do parênquima pancreático, que resulta de inflamação crônica, com atrofia, fibrose e perda de função de seus tecidos (endócrino e exócrino). ETIOLOGIA Ainda não se sabe exatamente como o processo de pancreatite crônica é deflagrado. Mas, sabe-se que ele deve induzir continuamente as células pancreáticas à necrose ou apoptose, manter o processo inflamatório local, e estimular as células estreladas a induzirem fibrose. 20% dos pacientes não apresentam uma causa clara, e 10% apresentam múltiplas causas. A ingestão crônica de álcool é a causa mais comum de pancreatite crônica (responsável por até 80% dos casos). O álcool pode lesar o parênquima pancreático pela indução de obstrução ductal, pela ativação intracelular de enzimas digestivas e por lesão membranosa por radicais livres. É provável que o álcool dependa de associações para causar esse quadro crônico, já que apenas 3 a 7% dos alcoolistas desenvolvem a doença. Essas associações podem ser polimorfismos e mutações, dieta rica em gordura e proteínas, tipo de álcool consumido e modo de ingestão, deficiência de antioxidantes, e tabagismo. Mutações no gene do tripsinogênio (PRSS1) podem causar a pancreatite crônica hereditária, devido à ativação intracelular de enzimas. Mutações no gene responsável pela secreção de bicarbonato (CFTR), podem gerar uma secreção pancreática mais espessa, além de obstrução ductal. Indivíduos heterozigotos e homozigotos possuem maios predisposição à doença, sendo os últimos já portadores de fibrose cística (é a principal causa de pancreatite crônica na infância). Mutação do gene regulador do tripsinogênio (SPINK1) pode potencializar danos pancreáticos.
Outro fator causador de pancreatite crônica é autoimune, com o reconhecimento do pâncreas como um tecido estranho, e que se torna alvo de infiltrado inflamatório. É mais comum em homens maiores de 50 anos. Geralmente causa sintomas compressivos, como, por exemplo, icterícia, devido ao edema inflamatório e, por isso, é um diagnóstico diferencial às neoplasias pancreáticas. O tipo 1 é caracterizado por infiltrado pancreático linfoplasmocitário, com plasmócitos positivos para imunoglobulina G4 (IgG4). No tipo 2, neutrófilos, linfócitos e alguns plasmócitos compõem o infiltrado. A pancreatite tropical acontece mais comumente em áreas dentro de 30º de proximidade da linha do Equador (principalmente no sudoeste da Índia). Sua fisiopatologia não é muito bem conhecida. Afeta mais jovens, na faixa dos 20 anos, gerando falência da função endócrina pancreática e diabetes. Aproximadamente 50% dos pacientes com pancreatite tropical também apresentam mutações associadas ao gene SPINK1. Outras causas de pancreatite crônica são: Hipercalcemia, hiperlipidemia, hipertrigliceridemia, deficiência da lipoproteína lipase, deficiência da Apolipoproteína C-II, obstrução benigna do ducto pancreático, estenose traumática, estenose após episódio de pancreatite aguda, estenose de esfíncter de Oddi, doença cística do duodeno, pâncreas divisum, doença celíaca, estenose pancreática maligna, idade avançada, doença renal crônica, diabetes mellitus, radioterapia, e idiopática. QUADRO CLÍNICO O paciente apresentará, principalmente, dor progressivamente frequente e intensa. Essa dor pode ser causada pelo aumento da pressão intraductal, com obstrução do fluxo e isquemia, ou ainda pela alteração da percepção nervosa dos nociceptores periféricos e centrais. Em fases mais tardias, ou em episódios de agudização, pode haver náuseas e vômitos também. Na doença avançada haverá esteatorreia, devido ao déficit de secreção das enzimas digestivas pancreáticas. Com a síndrome absortiva pode haver deficiência de vitaminas lipossolúveis (A, D, E, e K).
Outra manifestação tardia da doença é o diabetes mellitus, já que as ilhotas são relativamente resistentes ao processo inflamatório (exceto na pancreatite tropical, em que as ilhotas rapidamente tornam-se insuficientes). A fibrose pancreática, devido à retração, pode gerar obstrução do colédoco, causando icterícia ou colangite. Também pode haver compressão duodenal, gerando uma síndrome de estenose pilórica. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL A pancreatite crônica apresenta um quadro muito semelhante ao quadro de tumores periampulares, com dor, icterícia e obstrução duodenal, o que torna difícil diferenciá-los. Além disso, a própria pancreatite crônica é um fator de risco para desenvolvimento de adenocarcinoma pancreático. DIAGNÓSTICO O exame histopatológico é o padrão ouro. Diferentemente da pancreatite aguda, nesse caso, a amilase e lipase geralmente não se elevam. Testes funcionais até podem revelar alterações pancreáticas, mas como não são pedidos na ausência de sintomas, o diagnóstico será baseado principalmente na história clínica e nos sintomas do paciente (associado a exames que analisem a função e estrutura do pâncreas). 1) Testes estruturais São os exames de imagem. O mais solicitado é a tomografia computadorizada (TC) de abdome com estudo dinâmico do pâncreas. Podemos encontrar ducto dilatado, atrofia parenquimatosa e calcificações, achados sugestivos de pancreatite crônica. Também é possível encontrar por meio da TC, complicações locais, como pseudocisto, e complicações vasculares, como trombose portal e aneurismas arteriais. Já a ressonância magnética (RNM) permite melhor visualização de anomalias ductais e parenquimatosas, mas é menos sensível para calcificações. Eventualmente as calcificações são vistas também na radiografia simples de abdome. A colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE)
já foi considerada como melhor método para avaliação estrutural da doença, mas com o surgimento de métodos menos invasivos, e de mesma acurácia, a CPRE passou a ser indicada em casos em que seja necessário intervenção endoscópica, como na presença de fístula pancreática. 2) Testes funcionais São testes que avaliam a função pancreática, direta e indiretamente. Testes diretos consistem em teste da secretina, e análise de imagem. No teste da secretina, estimulamos o pâncreas com secretina (ou colecistoquinina) e aferimos sua resposta pela análise de secreção pancreática por endoscopia, ou cateter oroduodenal. Já a análise de imagem pode ser feita por meio de RNM com estimulação pancreática, método menos invasivo e quase tão acurado. Os testes indiretos consistem em dosagem de elastase, quimotripsina e tripsinogênio fecais, dosagem sérica de tripsinogênio e glicose. A dosagem de elastase é o teste indireto mais utilizado para a avaliação de esteatorreia na doença. CLASSIFICAÇÃO Antigamente a classificação era baseada em sua etiologia (calcificante, obstrutiva, ou inflamatória). Atualmente, a classificação é feita principalmente pela presença ou não de dilatação ductal, o que diferencia as abordagens. 1) Ducto dilatado (doença de grandes ductos) É mais comum no sexo masculino, há maior presença de esteatorreia e diabetes, calcificações são frequentes, geralmente visualizadas na radiografia de abdome, e a CPRE apresenta significativas alterações. O diagnóstico é mais fácil, e o tratamento visa a descompressão do ducto pancreático. 2) Ducto não dilatado (doença de pequenos ductos) É mais comum no sexo feminino, com menos disfunções orgânicas, alteração no teste da secretina, tripsinogênio sérico e elastase fecal normais. São raras as
calcificações, e a CPRE é normal ou pouco alterada. O diagnóstico é mais difícil, e o tratamento geralmente é apenas clínico. TRATAMENTO A pancreatite crônica pode ser tratada de forma paliativa, não sendo possível reverter alterações pancreáticas já sofridas. O manejo clínico do paciente é capaz de reduzir significativamente a progressão da doença, mesmo que com as alterações já instaladas. Por isso, todo paciente com pancreatite crônica deve ser encorajado a cessar a ingesta de bebidas alcoólicas, e a cessar o tabagismo. Além disso, deve ser tentada a correção de alterações metabólicas, como hipercalcemia e dislipidemia. A esteatorreia pode ser tratada com reposição oral de enzimas pancreáticas associada à inibidor de bomba de prótons (IBP) para bloquear a secreção ácida, já que essa potencializa a ação enzimática. O paciente também deve ser orientado a fracionar a dieta e reduzir a ingesta de gorduras. O diabetes pode ser tratado com hipoglicemiantes orais inicialmente, e depois com insulinoterapia. A dor deve ser manejada com analgesia escalonada primeiro analgésicos menos potentes, como a dipirona por exemplo, AINEs e, caso não apresente melhora, iniciar opioides semissintéticos, como o tramadol, e posteriormente opioides clássicos. Pode ser avaliada a associação de fármacos alternativos, como antidepressivos tricíclicos, inibidores seletivos da recaptação de serotonina (IS- RS), inibidores combinados de recaptação da serotonina e norepinefrina e inibidores alfa 2 adrenérgicos. É possível tentar controle da dor também com o uso de enzimas pancreáticas e IBP por 6 semanas, embora seja controverso. Se ainda assim a dor refratária não melhorar, as seguintes opções podem ser tentadas:
1) Dilatação ductal secundária a cálculos ou estenoses É realizada CPRE na tentativa de retirada dos cálculos e dilatação das estenoses, que pode necessitar de stents ductais. Geralmente é feita papilotomia para facilitar a drenagem. Para casos com dilatação maior que 7 mm, que sejam refratários à terapia endoscópica, pode ser feita a descompressão cirúrgica. A cirurgia mais realizada é a pancreatojejunostomia em Y de Roux, que possibilita a limpeza do ducto pancreático e a drenagem pancreática para uma alça de jejuno exclusa. Tem como vantagem a preservação do parênquima pancreático. Quando bem indicada, essa cirurgia tem sucesso em 80% dos casos. Os outros 20% apresentam recidiva da dor em 3 a 5 anos após a cirurgia. Pacientes com maior acometimento fibrótico da cabeça do pâncreas, podem ter parte da cabeça pancreática retirada, com a anastomose também nesse sítio. Essa cirurgia é chamada de procedimento de Beger. O procedimento de Frey, em vez de retirar grande parte da cabeça pancreática, retira apenas uma parte de sua parede anterior, o que permite melhor drenagem local. Tem como desvantagem a perda de parênquima pancreático. 2) Dilatação ductal secundária a cálculo ou estenose única Se o paciente apresentar obstrução única em cabeça ou cauda pancreática, poderá ser feita a pancreatectomia. É um procedimento mais indicado na presença de massa inflamatória local, não podendo excluir neoplasia como diagnóstico diferencial (pancreatite crônica pseudotumoral). Se doença na cabeça do pâncreas, pode ser feita a gastroduodenopancreatectomia, conhecida como cirurgia de Whipple, ou a duodenopancreatectomia com preservação pilórica, conhecida como cirurgia de Traverso e Longmire. Caso haja doença no restante do parênquima, a escolha é a pancreatectomia distal. A desvantagem desses procedimentos é a perda de parênquima pancreático.
3) Doença parenquimatosa sem dilatação ductal Há alta falha terapêutica na drenagem nesses pacientes. Mas se dor refratária, necessitando de abordagem cirúrgica, a pancreatectomia total se faz necessária visando a resolução da dor. Tem como complicações a síndrome disabsortiva e o diabetes mellitus de difícil controle. Apesar de necessitar de mais estudos, pode ser uma opção o transplante autólogo de ilhotas pancreáticas para corrigir o diabetes.