A Espiritualidade presente na complexidade da condição humana: um estudo teórico sobre o lugar da espiritualidade na relação pedagógica. Maria Aparecida Sanches Martins Maria Cristina Marcelino Bento
resumo Este trabalho parte da noção de complexidade da condição humana. Tem por objetivo responder à seguinte pergunta: qual a importância de se considerar a espiritualidade na relação pedagógica em sala de aula? Assim apresentamos o que estamos entendendo por relação pedagógica tomando como fundamento a abordagem multirreferencial (Ardoino, Castoriadis, Barbosa, Paris). Palavras-Chave Subjetividade - Espiritualidade - Complexidade. Este trabalho parte da noção de complexidade da condição humana como defendida por Edgar Morin. Discute, inicialmente, a distinção entre espiritualidade e religiosidade e, sem desprezar a realidade de que o estudo científico da espiritualidade tem sido um grave problema na história da pesquisa antropológica, considera a espiritualidade como um aspecto da condição humana (Grof, 1992, 1997; Santos Neto, 2002, 2006; Espírito Santo, 1996, 1998; Morais, 1997). Tem por objetivo responder à seguinte pergunta: Qual a importância de considerar a espiritualidade na relação pedagógica em sala de aula? A relação entre espiritualidade e relação pedagógica (Paris, 2000) é um tema complexo que apresenta problemas e desafios diversos, com implicações em vários âmbitos: individual, profissional, político, social e cultural. Neste trabalho estamos interessados nas implicações para a relação pedagógica em sala de aula. Assim apresentamos o que estamos entendendo por relação pedagógica tomando como fundamento a abordagem multirreferencial (Ardoino, 1988, Castoriadis, 1982, Barbosa, 1998; Paris, 2000). A abordagem por nós adotada quanto à espiritualidade apresentada-a enquanto dimensão do ser humano (Grof, 1992, 1997; Boff, 1999; Santos Neto, 2002, 2006), constituinte de sua forma de ser no mundo e de como com ela interferir na realidade do mundo vivido, avaliar, criar e, enfim, construir-se janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 39
como sujeito histórico. Esta maneira de compreender a espiritualidade exige um mergulho profundo na condição humana, numa perspectiva de autoconhecimento. A partir de uma concepção mais ampliada de ser humano, o ser humano hilo-holotrópico (Grof, 1992, 1997), mostramos a importância de considerar este aspecto no processo educativo, uma vez que o entendemos como espaço privilegiado de constituição dos seres humanos, a partir da construção do conhecimento permeado pela relação pedagógica. Finalizamos considerando que a prática da educação exige métodos e estratégias educativas que têm por objetivo a constituição do ser humano permeado pela complexidade das diferentes variáveis que concorrem para a relação pedagógica, pois indivíduo/sociedade/espécie não só são inseparáveis, mas também co-produtores um do outro, isto é, como experiência especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo e exige da parte dos educadores a coragem de assumir a inteireza da condição humana (FREIRE, 2003, p. 98). Nesse sentido, Grof (1997) em seus estudos enfocou a consciência humana com toda sua complexidade e a capacidade de identificação com todos os seres do universo. Precisamos aceitar o universo como ele é, e não impor a ele aquilo que acreditamos que ele é ou pensamos que ele deveria ser. Nossas teorias precisam lidar com os fatos em sua totalidade, e não com uma seleção de fatos conveniente que se ajuste a nossa visão de mundo e a nosso sistema de crenças (GROF, 1997, p.114). Para entender como as relações com o universo influenciam a vida cotidiana, o autor utilizou uma abordagem que denominou integração holomônica ou terapia holotrópica com suporte teórico nas observações da pesquisa psicodélica associada com a prática da respiração holotrópica, técnica elaborada por ele e sua esposa, para a exploração da consciência a partir de um ritmo de respiração controlada, em busca de um instrumento para a transformação permeada pelo autoconhecimento. Faz-se necessário explicitar que Grof apresenta de forma minuciosa todas as Dimensões da Consciência, explorando diferentes aspectos. Mas, nosso texto aborda apenas dois sub-temas: subjetivismo e espiritualidade, como instrumento para a busca da inteireza do ser. Segundo o autor, o primeiro desafio é entendermos que a existência e a natureza das experiências vivenciadas extrapolam as noções fundamentais da ciência materialista e da visão de mundo mecanicista, porque fazem conexões com o universo todo, e as comunicações são 40 janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006
estabelecidas por meios e canais desconhecidos ou pouco explorados. A compreensão da existência e a natureza das experiências vivenciadas são um processo que conduz o homem a identificar-se com outros aspectos, além do corpo físico, dos sentimentos e da cultura imposta que, muitas vezes, apregoa verdades únicas propiciadoras de uma falsa visão de mundo, cerceadora da totalidade do ser. Entretanto, para o desenvolvimento de um novo olhar é necessário uma mudança de paradigmas. Tal mudança é possível e comprovada pelas diversas disciplinas científicas e conceitos importantes que apresentaram uma relevante contribuição e, ao mesmo tempo, drástica, exigindo uma mudança na visão de mundo. Como exemplo pode-se citar, com base em Grof (1997) que: a física quântica-relativística (Capra, 1975, p. 1982), a astrofísica (Davies, 1983), a cibernética e a teoria de sistemas de informação (Bateson, 1972, 1979; Maturana; Varela, 1980; Varela, 1979), a teoria da ressonância mórfica de Sheldrake (Sheldrake, 1981), o estudo de Prigogine e Stengers sobre as estruturas dissipativas e a ordem por flutuação (Prigogine; Stengers, 1984), a teoria do holomovimento de David Bohm (Bohm, 1980), o modelo holográfico do cérebro de Karl Pribram, 1971, 1977) e a teoria de processo de Arthur Young (YOUNG, 1976). Os exemplos acima ratificam o pensamento de Grof (1997) sobre a evolução da consciência da existência do indivíduo, conectada ao cosmos, uma vez que não há lugar para qualquer forma de espiritualidade como um aspecto relevante e significativo da existência num universo em que a matéria é primária, e a vida, a consciência e a inteligência são seus produtos acidentais. Por isso, o autor (id., ibid.) alerta para que não se confunda a espiritualidade com religião, porque as experiências vivenciadas por meio da auto-exploração experiencial despertam a espiritualidade que conduz o homem a uma busca mística, pois: a divisão realmente importante no mundo da espiritualidade não é a linha que separa as principais religiões individuais uma das outras, mas a linha que separa todas elas de seus ramos místicos. Mas também, salienta a importância das teorias científicas, desde que, alicerçadas em observações do universo e não nas crenças dos cientistas de como é o universo ou seus desejos de como ele deveria janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 41
ser para caber em suas teorias (GROF, 1997 p. 247). Desse modo, a forma como a espiritualidade é aqui entendida, permite afirmar que ela está presente em todo e qualquer tipo de conhecimento independente do sistema. E a partir dessa premissa pode-se concluir que a espiritualidade é de extrema importância para a Educação condutora do conhecimento específico com suporte nas diversas disciplinas entrelaçadas ao conhecimento empírico. A Educação em nível mundial exige uma mudança de paradigmas, o que só se efetivará se o educador modificar sua postura em relação à visão de mundo. Para Grof (1997, p. 251) não se deve separar pesquisa científica e a busca espiritual, pois é essa junção que permite a transformação do indivíduo: Um novo paradigma tão abrangente poderia ser um importante catalisador na evolução da consciência que parece ser uma condição crítica para a sobrevivência da vida neste planeta. Morin (2005) também defende a espiritualidade como um caminho para a transformação do ser, porém sobre outro aspecto: a cultura é que constitui os hábitos, as normas, as crenças, os valores etc., dentro de qualquer sociedade. Essa cultura, de acordo com o autor, é centrada no capital humano, responsável pela transmissão do conjunto de seus hábitos e costumes e pela evolução mental, psicológica e afetiva dos indivíduos, por meio da linguagem, considerada por ele, o nó de toda cultura e de toda sociedade humana, porque a linguagem e o homem são indissociáveis. A linguagem é decorrência do pensamento que combina palavras com diversos sentidos, isto é, a linguagem é uma capacidade do espírito humano, indispensável a todas operações cognitivas e práticas que promovem a revolução mental, sendo que o espírito emerge do cérebro humano, com e pela linguagem, dentro da cultura. Os três termos, cérebro - cultura espírito, são inseparáveis. Uma vez que o espírito emergiu, retroage sobre o funcionamento cerebral e sobre a cultura. Forma-se um circuito entre cérebro espírito cultura, no qual cada um desses termos necessita dos outros. O espírito é uma emergência do cérebro que suscita a cultura, a qual não existiria sem cérebro. [...] Quando escrevo espírito, quero dizer mind, com todas as diversas qualidades que surgem com ela 42 janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006
entre as quais o ingegno de Vico (aptidão combinatória, inventiva) (MORIN, 2005 p. 38). Outra capacidade do indivíduo humano para desenvolver atividade transformadora e produtiva é a de considerar ora sujeito, ora objeto, o que promove o questionamento, a curiosidade e a conseqüente investigação, o prazer de aprender/conhecer, permitindo uma visão de mundo mais ampla, embora complexa, uma vez que cada indivíduo apresenta uma subjetividade singular que o diferencia dos demais, por ser uma unidade dentro da diversidade. O tesouro da humanidade está na diversidade criadora, mas a fonte da sua criatividade está uma sua unidade geradora (MORIN, 2005 p.66). A relação com o outro depende da autonomia do indivíduo considerando o conhecimento empírico, a racionalidade, a sensibilidade, o imaginário, a afetividade, elementos necessários para as relações interpessoais que são marcadas pelas influências sociológicas, como exemplo, a educação familiar e escolar. Dessa forma, cada cultura por meio do seu conjunto de hábitos e costumes pode inibir ou estimular o espírito humano de se tornar um ser autônomo. Entretanto, o processo de autonomia é permeado pela complexidade, aqui entendida como o entrelaçamento das idéias ações individuais, coletivas, do confronto de indivíduo com outro ser, de nos colocarmos no lugar do outro, de ser ora sujeito ora objeto. E esta complexidade precisa ser questionada, investigada, entendida e respeitada, porque toda ação escapa à vontade de seu autor quando entra no jogo das inter-retro-ações do meio em que intervém, uma vez que indivíduo/sociedade/espécie além de serem indissociáveis, são co-autores um do outro, isto é, um depende do outro para o desenvolvimento individual e coletivo (MORIN, 2003 p.88). O pensamento de Morin, embora sobre outro aspecto, confirma a importância da espiritualidade no processo de formação do indivíduo e a complexidade que envolve esse processo que exige uma mudança de paradigmas em todos os âmbitos, principalmente no paradigma educacional. Santos Neto (2006, p. 35-36) afirma a importância da espiritualidade na formação e construção do sujeito. Compreende que este processo só será possível se o sujeito estiver aberto a sua inteireza: [...] inteireza é hilo-holotrópico, o que quer dizer: é marcada pelas condições de vida da histórica, da cultura, da materialidade, da individualidade (o hilotrópico); mas janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 43
também é marcado pelas possibilidades transpessoais, cósmicas, mitológicas, espirituais (holotrópico). Desta forma, falar em abertura/mudança no campo educacional significa compreender o processo de educação como relações entre seres humanos que se desenvolvem na inteireza, num constante movimento de construção e reconstrução de si mesmo e da história da humanidade. O trabalho educativo precisaria estar atento à dimensão da espiritualidade: desobstruí-la, ajudá-la a tornar-se presente no quotidiano das experiências e das decisões, fazer ver que ela não é campo tão somente das religiões (SANTOS NETO, 2006 p. 38-39). No sentido de transformação, Boff (1999) fala que o ser humano é um ser de mudanças e que está sempre se refazendo. As mudanças podem ser interiores ou exteriores. Há mudanças que não transformam nossa estrutura de base. São superfícies e exteriores. Mas há mudanças que são interiores. São verdadeiras transformações alquímicas, capazes de dar um novo sentido a vida ou de abrir novos campos de experiência e de profundidade rumo ao próprio coração e ao mistério de todas as coisas (BOFF, 1999, p. 17-18). Ressaltamos que Boff (1999, p. 21) considera como espiritualidade aquelas qualidades do espírito-humano tais como amor e compaixão, paciência e tolerância, capacidade de perdoar, contentamento, noção, noção de responsabilidade, noção de harmonia que trazem felicidade tanto para a própria pessoa quanto aos outros. Esta idéia, da atenção à dimensão da espiritualidade, propõe o pensar do papel do professor ou da professora. O professor ou a professora necessita de um ciclo de ação/reflexão pedagógica na totalidade. Assim encontramos em Freire (1992, p. 110): O educador ou a educadora crítica, exigente, coerente, no exercício de sua reflexão sobre a prática educativa, sempre a entende em sua totalidade. Isso não significa que os conteúdos escolares fiquem à orla do processo educativo. Os conteúdos escolares fazem parte deste ciclo de ação/reflexão na totalidade, pois são eles que auxiliam no processo de construção e formação do indivíduo. Não há, nunca houve nem pode 44 janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006
haver educação sem conteúdo... (FREIRE, 1992, p. 110). Assim Espírito Santo (1998, p. 19), em seu livro o Renascimento do Sagrado afirma que muitos especialistas trabalham conteúdos específicos, desprezando a visão integral dos ser humano. Sustenta a necessidade de introduzirmos o autoconhecimento. O autoconhecimento é imbricado com a espiritualidade, capaz de desenvolver diferentes níveis de consciência, provedores da inteireza do ser humano. Portanto, é importante uma educação baseada na condição humana, considerando a subjetividade dentro da diversidade e a complexidade que permeia esses dois sistemas antagônicos e indissociáveis. Professores e professoras devem refletir sobre quais documentos abordar em sala de aula. Já não há lugar para a aula cujo professor considere seus alunos uma tábua rasa e ele o detentor do saber como fonte de verdade última. Faz-se necessário refletir sobre quais conteúdos contribuem para a formação de seres humanos em transformação e que se desenvolvem na/para inteireza, em sintonia com o universo. Não basta falar de conteúdos e aulas, é preciso unir profissionais que pensem e executem um projeto político pedagógico para tal situação. Além disso, é preciso que todo o sistema educacional e sua estrutura estejam articulados, para a importância da espiritualidade na formação do sujeito. A educação mundial está em crise, clama por transformações e, conseqüentemente, por mudanças de paradigmas. E, nesse sentido, a busca de novos caminhos para uma outra compreensão de mundo envolve a educação em todos os níveis e em todas as idades. O desenvolvimento da compreensão necessita da reforma planetária das mentalidades; esta deve ser a tarefa da educação do futuro. Tal processo apresenta-se como um grande desafio para o educador, porém necessário e possível. (MORIN, 2003 p.104) janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 45
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Abstract This work has broken of the notion of complexity of the condition human being. It Discusses, initially, the distinction between spirituality and religiosity. It affirms the spirituality as an aspect of the human condition based in Grof, Santos Neto, Espírito Santo, Morais. It Has for objective answer the following question: Which the importance of consider the spirituality in the pedagogical relation in classroom? We presented what we are understanding for pedagogical relation taking like foundation to the approach multirreferencial (Ardoino, Castoriadis, Barbosa, Paris). Maria Aparecida Sanches Martins Licenciada em Letras - Faculdade de Filosofia e Letras de Santo André. Mestranda da Universidade Metodista de São Paulo - UMESP Maria Cristina Marcelino Bento Mestranda da Universidade Metodista de São Paulo - UMESP. janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 47