Autor e Texto Author - Text Sueli de Britto Salles* A INCLUSÃO PELA MORTE: UMA ANÁLISE DA CANÇÃO O MEU GURI THE INCLUSION THROUGH DEATH: AN ANALYSIS OF THE POP SONG O MEU GURI Resumo Este trabalho, uma análise da canção O meu guri, de Chico Buarque, discute o recurso da ironia, usado em algumas produções literárias e midiáticas, para retratar a morte como elemento de inclusão social. Abstract This essay, an analysis of Chico Buarque s pop song O meu guri, discuss the resource of irony by using some mediatic and literature productions to retract death as an element of social inclusion. Palavras-Chave Análise Discursiva. Semiótica. Canção Popular. Inclusão Social. Key Words Speech Analysis. Semiotic. Pop song. Social Inclusion. *Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP. Professora da Faculdade de São Paulo (UNIESP),professora da FIAM e da UNIP - Universidade Paulista. R.TEMA S.Paulo nº 60 jul/dez 2012 P. 34-43 UNIESP 34
Sueli de Britto Salles A INCLUSÃO PELA MORTE: UMA ANÁLISE DA CANÇÃO O MEU GURI THE INCLUSION THROUGH DEATH: AN ANALYSIS OF THE POP SONG O MEU GURI Embora o conflito entre classes sociais, base histórica dos estudos marxistas, já tenha sido tema de inúmeras obras da produção cultural brasileira, parece que na atualidade a inclusão social passou a ser assunto obrigatório, nos mais diferentes contextos. Pensando nisso, pareceu relevante retomar uma canção de Chico Buarque, sucesso na década de 80, que trata essa temática de modo crítico e criativo. Para isso, observaremos, com base nos princípios da semiótica francesa, como se cruzam os sentidos na narrativa para tecer uma crítica social a partir do efeito de ironia. A Temática da Inclusão A canção O meu guri, de Chico Buarque de Holanda, data de 1981. Em sua letra, vemos uma suposta mãe relatando, orgulhosa, os feitos do seu guri a um indivíduo representado pelo vocativo seu moço. A fala desta mãe, porém, está repleta de construções polissêmicas que 35 TEMA
conduzem o leitor à ironia. Assim, o autor (Chico Buarque) constrói uma história dentro de outra história, ou seja, um relato dentro da narrativa, com outro enunciador (e locutor) e outro enunciatário, gerando uma divisão na construção de sentidos. Para tentar perceber como se organizam esses dois modos de compreensão do mesmo plano de expressão, observemos algumas particularidades desse texto. Olha aí, ai o meu guri, olha aí/ Olha aí, é o meu guri (!!!). A letra de O meu guri, de Chico Buarque de Holanda, não apresenta nenhuma pontuação de encerramento de frase, mas a exclamação enfática no final do refrão é automaticamente recuperada pela representação social na qual esse tipo de declaração se instala: é a fala de pais orgulhosos com os feitos do filho, sendo que aqui o tom emotivo ganha contornos ainda mais fortes, por tratar-se da fala da mãe (a caricatura da mãe coruja ), que se realiza na realização do filho. Discini afirma que o ponto de vista, que articula o mundo entre o bem e o mal, apoia-se em temas ou ideias, em torno dos quais os textos se organizam (2005: 18). Esses temas, abstratos, são concretizados em narrativas por meio de figuras, ou seja, representações concretas de coisas e seres do mundo. Assim, no texto em questão, no nível temático, vemos a luta entre inclusão e exclusão social. O indivíduo excluído busca inclusão, reconhecimento social, mas sua notoriedade só será conseguida pela morte, uma vez que a violência e a tragédia atraem a curiosidade mórbida da população em geral. É importante notar, porém, que a identidade do cadáver é o menos importante nessas situações. Para chamar a atenção do público para o problema da desigualdade social, o autor fez uso de uma estratégia retórica: o ridículo é aquilo que merece ser sancionado pelo riso (...). A esse tipo de argumentação está ligada a figura ironia, através da qual quer-se dar a entender o contrário do que se diz, o que a torna uma argumentação UNIESP 36
indireta. (Perelman & Tyteca, 1996: 233). O texto de Chico Buarque figurativiza algo que já foi tema de outras obras, como o Poema tirado de uma notícia de jornal, de Manuel Bandeira, no qual também um indivíduo sem nome ou endereço certo, conhecido como João Gostoso, morador do morro (espaço genérico dos excluídos cariocas), ganha visibilidade e existência social apenas por instantes, como notícia de jornal, ao morrer em espaço de elite (na Lagoa Rodrigo de Freitas). Ou ainda da música Construção, também de Chico, no qual o operário passa a existir socialmente quando cai da obra e morre atrapalhando o trânsito, o tráfego, o sábado (dos incluídos, é claro). Em O meu guri, temos uma narração. Fiorin, baseando-se no esquema proposto pela semiótica narrativa, explica que os enunciados podem ser agrupados em quatro fases distintas: manipulação, competência, performance e sanção. (2001: 56) A manipulação (um personagem induz outro a fazer algo) está implícita na narrativa: como moradores pobres de um morro carioca, mãe e filho são influenciados pelos mesmos valores impostos pela sociedade de consumo, ou seja, para fazer parte desta e sair da condição de exclusão em que vivem, devem ter objetos de valor para serem reconhecidos como cidadãos de bem. Então constroem um percurso de acúmulo de competências (o sujeito adquire um saber e um poder) e conquistas desses objetos modais para realizar a performance (o sujeito executa sua ação), ou seja, ter o suficiente para serem vistos/ aceitos pela sociedade, e receberem a sanção (castigo ou recompensa, que no texto são representados, respectivamente, pela exclusão e pela inclusão social). 37 TEMA
Vejamos como isso se desenvolve: 1-Na primeira estrofe, os elementos da narrativa apresentamse: personagens (mãe e filho), espaço (residência muito pobre no alto de um morro, possivelmente carioca, tomando-se por base uma série de pistas textuais e o espaço que normalmente serve de pano de fundo para as músicas de Chico Buarque), tempo (o trajeto de vida do guri), narrador e narratário (a mãe orgulhosa que conta sua história a um indivíduo desconhecido e possivelmente de classe social mais elevada, devido ao tratamento formal e genérico). Narra-se o nascimento do guri em meio à miséria (financeira, social, emocional) da mãe, que logo passa de sua protetora a sua protegida ( Fui assim levando ele a me levar ). É ainda nessa estrofe que se apresenta o objeto de valor do guri (e, por extensão, o objeto de valor da mãe): E na sua meninice ele um dia me disse/que chegava lá. O filho quer vencer e a mãe quer orgulhar-se de ter um filho vitorioso. Colocando isso em linguagem semiótica, temos: o destinador manipulador (sociedade) dota o destinatário manipulado (filho e, por extensão, mãe) de um querer algo (inclusão social). Nesse momento, o sujeito encontra-se em disjunção com seu objeto de valor. 2- Na segunda estrofe, o discurso começa a gerar estranhamento. O guri passa a adquirir competências para conseguir atingir sua grande meta e os efeitos de sentido atribuídos ao objeto de valor chegar lá pelo filho e pela mãe começam a se distinguir. Para ele, o desafio a ser alcançado é o ter : ter objetos de valor implicitamente caracterizados como obtidos de modo ilegal, uma vez que a cena narrativa remete ao leitor a imagem dos chamados pivetes ou trombadinhas, crianças e adolescentes pobres UNIESP 38
que furtavam pequenos objetos de valor, como bolsas, relógios e gravador (aparelho de som de automóveis da época). Para a mãe, chegar lá representa ser : ser um filho trabalhador ( Chega suado e veloz do batente ), carinhoso ( traz sempre um presente pra me encabular ) e cuidadoso com a mãe (... uma bolsa.../ Pra finalmente eu me identificar ). Ou seja, ser um filho vitorioso, do qual a mãe possa se orgulhar. Se o filho, que é sua produção, vence, ela também vence. Se ele sai da exclusão, ela também sai, por meio do orgulho materno. O objeto de valor da mãe é ser (ela, por meio do filho). 3- Na terceira estrofe, também se apresentam elementos para a aquisição de condições para constituir tanto um filho que possui bens materiais quanto uma mãe orgulhosa do próprio filho, ambos valores necessários para se chegar ao objeto de valor principal, ou seja, a inclusão social. Enquanto isso, o jogo do parecer e do ser mesclam-se ainda mais. A mãe mostra-se ciente de haver uma onda de assaltos, mas longe de declarar a possibilidade de o filho participar desse tipo de ilegalidade, reza para que ele não seja vítima de tal ato e reforça a imagem de trabalhador esforçado ( já foi trabalhar ). A mãe fica infantilizada em sua dependência afetiva ( ele me consola/ Boto ele no colo pra ele me ninar ) e em sua ingenuidade. 4- Depois de trilhado o percurso da aquisição de competências (do filho, de acumular bens; da mãe, de criar um bom filho) e da conquista de objetos de valor modal (variados objetos de valor resultantes de furtos, para o filho; a atenção, o carinho, a proteção do filho, o suprimento de necessidades materiais, para a mãe), chega-se ao momento do confronto principal: afinal, mãe e filho já estão prontos para participarem da sociedade que os exclui? Esse confronto não está explícito na narrativa, mas pode ser deduzido a partir da análise da 39 TEMA
atribuição de sanções. A sanção, ainda no jogo da ironia, pode ser vista de diferentes formas: a) A sociedade (por meio de sua polícia?) atribui sanção negativa ao delinqüente, punindo-o com a morte e ainda usando-o como objeto descartável do lucro jornalístico. Ele não será incluído nem neste momento, pois o jornal encobre sua identidade ( com venda nos olhos, legenda e as iniciais ). A mãe, que não via os defeitos do filho para poder sempre ter algo de que se orgulhar na vida, é desmascarada e também recebe a sanção negativa: além de perder o filho que a protegia, passa a ser ainda mais excluída, como extensão do nível máximo de exclusão a que também ficou exposto o filho. Ele perdeu e ela também. b) Se o que o guri buscava era visibilidade social, conseguiu, pois está estampado e com manchete no jornal. Evidentemente esta sanção só é positiva no nível da ironia (ninguém quer este tipo de visibilidade). Esta é a leitura da mãe, que não entende o alvoroço, pois vê seu guri rindo, lindo, de papo pro ar em seu momento de glória, de conquista, enchendo-a de orgulho. A mãe, assim, também recebe sua sanção positiva, pois consegue seu objeto de valor, ou seja, ver o filho sair do anonimato e ser reconhecido socialmente. Por sentir-se orgulhosa e vitoriosa, tem o que contar para o seu moço, elemento desconhecido, distante da sua realidade, mas que justamente lhe dá a oportunidade de, por um instante, estabelecer ligação entre o mundo dos excluídos e dos incluídos. O guri será visto e ela será ouvida. Assim, vimos que o que na fala da mãe parece e é (o percurso de trabalho que transforma o filho em vencedor) constitui a verdade de sua locução: o filho alcança seu UNIESP 40
objeto de valor (inclusão pela notoriedade social) e recebe sanção positiva (sai estampado no jornal). Mas a construção do sentido se altera quando se considera o plano da enunciação que compõe a letra da canção (e não mais a construção do relato por um enunciador mãe), ou seja, a que tem por enunciador o autor do texto e por enunciatário uma comunidade social localizada histórica e socialmente no Brasil de 1981. Para o leitor da canção de Chico Buarque, o discurso da mãe não parece e não é verdade, constituindose em falsidade, ou seja, um discurso da ironia. O Meu Guri (1981) Chico Buarque Composição: Chico Buarque Quando, seu moço, nasceu meu rebento Não era o momento dele rebentar Já foi nascendo com cara de fome E eu não tinha nem nome pra lhe dar Como fui levando, não sei lhe explicar Fui assim levando ele a me levar E na sua meninice ele um dia me disse Que chegava lá Olha aí Olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri E ele chega Chega suado e veloz do batente E traz sempre um presente pra me encabular Tanta corrente de ouro, seu moço Que haja pescoço pra enfiar Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro Chave, caderneta, terço e patuá 41 TEMA
Um lenço e uma penca de documentos Pra finalmente eu me identificar, olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri E ele chega Chega no morro com o carregamento Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador Rezo até ele chegar cá no alto Essa onda de assaltos tá um horror Eu consolo ele, ele me consola Boto ele no colo pra ele me ninar De repente acordo, olho pro lado E o danado já foi trabalhar, olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri E ele chega Chega estampado, manchete, retrato Com venda nos olhos, legenda e as iniciais Eu não entendo essa gente, seu moço Fazendo alvoroço demais O guri no mato, acho que tá rindo Acho que tá lindo de papo pro ar Desde o começo, eu não disse, seu moço Ele disse que chegava lá Olha aí, olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri BIBLIOGRAFIA BAKHTIN, Mikhail (Voloshinov). Marxismo e filosofia da linguagem. 3a. ed. São Paulo: Hucitec, 1986. DISCINI, Norma. Comunicação nos textos.são Paulo: Cortez, 2005. UNIESP 42
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