LITERATURA SURDA: ANÁLISE INTRODUTÓRIA DE POEMAS EM LIBRAS DEAF LITERATURE: INTRODUCING ANALYSIS OF POEMS IN LIBRAS



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Transcrição:

LITERATURA SURDA: ANÁLISE INTRODUTÓRIA DE POEMAS EM LIBRAS Carolina Hessel Silveira Lodenir Becker Karnopp RESUMO: Os estudos sobre literatura surda e cultura surda são recentes no panorama acadêmico e propiciam reflexões sobre novas formas literárias. O presente artigo, com base em estudos de cultura e de poesia surda, tem como objetivo analisar três poemas sobre a temática Natal em LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais), identificando recursos poéticos, semelhanças e diferenças. Também são feitas algumas considerações sobre perspectivas de investigação de poemas em Libras. Palavras-chave: Literatura surda. Poemas em Libras. Cultura surda. DEAF LITERATURE: INTRODUCING ANALYSIS OF POEMS IN LIBRAS ABSTRACT: Studies of Deaf Literature and Culture are recent in the academic panorama and provide reflections on new literary forms. Based on culture studies and deaf poetry, this paper aims at analysing three poems about Christmas in LIBRAS (Brazilian language of signs), identifying poetic means, similarities and differences. We have also considered some perspectives of investigating poems and LIBRAS. Keywords: Deaf literature. Poems in Libras. Deaf culture. 1 CULTURA E LITERATURA SURDA A literatura surda pode ser entendida dentro do que se identifica como cultura surda, que é um conceito bastante recente. Como entendemos cultura surda? Wrigley (1996, p. 45) afirma que o traço significante que define a cultura surda é o uso de uma língua de sinais, que é uma língua compartilhada em uma comunidade de pessoas surdas. A cultura surda é como uma pele no corpo dos surdos, que usam suas línguas de sinais, utilizam predominantemente a experiência visual, têm seus costumes, hábitos, ideias, convivem entre si e comemoram suas datas como marcos importantes. É uma cultura que é construída pelos surdos, e não é uma cultura adaptada dos ouvintes. Como afirma Miranda (2001, p. 20): A comunidade surda constrói uma cultura e produz identidades em espaços geográficos, no sentido de não nascerem dentro desses, mas em espaços possibilitados ou conquistados para que ocorra, intencionalmente ou não, a organização e a produção surda.

Pode-se dizer que a cultura surda é autônoma, já que ela coloca os surdos num espaço territorial diferente, simbólico. Conforme Strobel (2009, p. 27): Cultura surda é o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e de modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável, ajustando-o com as suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas e das almas das comunidades surdas. Isto significa que abrange a língua, as ideias, as crenças, os costumes e os hábitos do povo surdo. Para compreendermos a cultura surda, podemos buscar subsídios na mesma autora. Na cultura surda, existem artefatos culturais específicos, que são peculiaridades do povo surdo, entre os quais se situam uma experiência visual diferenciada, a língua de sinais, a literatura surda e artes visuais específicas da comunidade. É importante compreender que, na cultura surda, as produções linguísticas, artísticas, científicas e as relações sociais são visuais (STROBEL, 2009). Vê-se, assim, que a literatura surda é um dos componentes importantes da cultura surda. Para defini-la, podemos utilizar a conceituação de Karnopp (2010, p. 161): A expressão literatura surda é utilizada no presente texto para histórias que têm a língua de sinais, a identidade e a cultura surda presentes na narrativa. Literatura surda é a produção de textos literários em sinais, que traduz a experiência visual, que entende a surdez como presença de algo e não como falta, que possibilita outras representações de surdos e que considera as pessoas surdas como um grupo linguístico e cultural diferente. Strobel (2009, p. 61), ao examinar a literatura surda, nos traz mais informações, observando que ela traduz a memória das vivências surdas através das várias gerações dos povos surdos. Essa literatura se multiplica em diferentes gêneros, que não são totalmente correspondentes aos gêneros da literatura consagrada produzida pelos ouvintes. Conforme Karnopp (2010, p. 171), ela é constituída pelas histórias produzidas em língua de sinais pelas pessoas surdas, pelas histórias de vida que são frequentemente relatadas, pelos contos, lendas, fábulas, piadas, poemas sinalizados, anedotas, jogos de linguagem e muito mais. É importante observar que a literatura surda é a literatura que os surdos produzem não registrada através de língua escrita, mas se expressa através da língua de sinais não se trata de uma tradução da Literatura Brasileira ou de qualquer outra literatura nacional produzida pelos ouvintes, mesmo que incorpore alguns temas (assuntos) também partilhados por estes. Considerando que a literatura surda é produzida em língua de sinais, conclui-se que ela já era produzida antes de existirem registros em vídeo, pois, antes disso, sempre ocorriam encontros de surdos nas associações, eventos, etc., em que eles contavam histórias e anedotas, entre outras produções.

A questão das formas de registro das histórias é um aspecto importante a considerar para a análise da literatura surda, porque é diferente do caso da literatura escrita de ouvintes. Wilcox (2005, p. 96) ilustra particularidades sobre esse assunto e, se referindo à ASL (American Sign Language), afirma que: [...] a maioria das línguas no mundo não são escritas. Isso certamente não significa que nessas línguas não exista trabalho literário. Muitos dos clássicos da literatura a Bíblia, os dramas gregos originalmente não eram escritos. Embora a ASL seja ainda uma língua não escrita, ela possui uma longa e rica história de literatura popular. Grande parte dessa literatura tem sido gravada em filme ou fitas de vídeo. É preciso reconhecer que os progressos e facilidades da tecnologia criação da internet, criação de sites de fácil acesso para postagem de vídeos, popularização de gravações através de celulares e outros artefatos trouxeram muitas possibilidades para expansão e conhecimento da literatura surda, que é uma literatura visual. Especificamente neste artigo, vamos focalizar um gênero da literatura surda no Brasil, poemas em Libras (Língua Brasileira de Sinais), e, posteriormente, exemplificá-lo com uma análise de poemas. 2 POEMAS EM LIBRAS A poesia em Libras usa a expressividade das Línguas de Sinais (no nosso caso, da Língua Brasileira de Sinais). Pode-se afirmar que é uma forma de arte recente, que começou a ser divulgada aproximadamente na década de 1970, nos Estados Unidos. Conforme Sutton- Spence (2008, p. 340): Referindo-se à Língua de Sinais Americana, Alec Ormsby afirmou que, antes dos anos 70, não existia registro poético na ASL, porque o registro poético era socialmente inconcebível e, enquanto permanecesse socialmente inconcebível, seria linguisticamente inviável [...]. Entretanto, nos anos 70, surgiram algumas mudanças relacionadas à consideração da poesia em línguas de sinais não apenas como concebível, mas, também, como uma realidade. A autora afirma que apenas com o reconhecimento das línguas de sinais como independentes e reais e com os processos de valorização do ser surdo abriu-se espaço para as performances de poetas das línguas de sinais, inicialmente nos Estados Unidos e depois em outros países. Se pensarmos no caso do Brasil, lembramos que, nas décadas de 1980 e 1990, os surdos (alguns poucos) recorriam ao registro de poemas escritos. Lentamente a situação foi mudando: alguns surdos começaram a apresentar poemas em Libras, através de traduções de

poemas escritos. Posteriormente começaram a produzir poesias em Libras, o que era inédito para nós, surdos brasileiros. Atualmente, na comunidade surda, os poemas em Libras fazem mais sucesso e têm mais receptividade, mas há alguns surdos que continuam usando poesia escrita (em Língua Portuguesa) e poesia traduzida (da Língua Portuguesa para a LIBRAS). A produção de poemas em línguas de sinais significou um avanço nas concepções de literatura, pois, conforme Sutton-Spence (2008, p. 340), antes de haver essa produção, pessoas surdas e ouvintes achavam que a poesia deveria ser escrita apenas em inglês, devido ao status dessa língua. Também no Brasil, os primeiros poemas foram produzidos tanto pelo ator surdo Nelson Pimenta, com registro em DVD em língua de sinais, assim como apresentações de poemas nos eventos, como da poeta paranaense Rosani Suzin, no final da década 90. É importante relembrar que, conforme Morgado (2011b, p. 167), existem muitos poetas surdos no mundo. Os considerados profissionais são os que tiveram formação em poesia da língua gestual, normalmente na Inglaterra ou nos Estados Unidos da América. Isso não diminui a importância de outros poetas surdos que não tiveram tal formação. Mas o que caracteriza a poesia em línguas de sinais? Conforme Quadros e Sutton-Spence (2006, p. 112), a poesia em língua de sinais, assim como a poesia em qualquer língua, usa uma forma intensificada de linguagem [ sinal arte ] para efeito estético. Nos poemas de ouvintes, frequentemente a linguagem verbal recebe especial atenção. Culler (1999, p.80-81), por exemplo, afirma que a base da poesia é colocar a linguagem em primeiro plano e torná-la estranha através da organização métrica e da repetição de sons (...) ; também observa que o poema é uma estrutura de significantes que absorve e reconstitui os significados. Nos poemas surdos, a linguagem também está em primeiro plano, só que de forma diferente, pois se trata de línguas visuais. Assim, Morgado (2011a, p. 62) estabelece uma comparação entre recursos da linguagem verbal (rima, ritmo, verso, métrica e estrofe etc.) e os recursos dos poemas em línguas de sinais. A autora afirma que os poetas surdos podem usar algumas das seguintes formas: - modificação de sinais; - variação de sinais; - utilização de componentes não-manuais (expressão corporal e facial); - uso de classificadores; - recorrência a metáforas;

- interiorização de personagens com suas características; - mudança de papéis para representar diferentes personagens ou situações. Para explicar alguns aspectos linguísticos de poemas, outra estudiosa do tema, Sutton- Spence (2000, s/p) afirma que Repetições regulares de formato das mãos, caminho do movimento e escolha do local são usados em conjunto com ritmo e criatividade para produzir um poema [...]. Existe um tipo de composição peculiar da literatura surda, que precisamos citar, porque é usada em um dos poemas que vamos analisar. Trata-se das Histórias ABC e Números. A comunidade surda brasileira começou a produzir histórias ABC e números a partir de 2000, conforme registros. Através dessa forma de apresentação, uma história é expressa em sequência de configurações de mãos 1, usando alfabeto manual, números, nomes próprios ou outras palavras. Geralmente a história é curta e é um desafio criar a história com configurações de mão. Quando a pessoa começa a aprender a contar uma história em sinais, pode usar seu próprio nome como forma de produção. Nos Estados Unidos, por exemplo, são muito trabalhadas histórias com ABC e números. Conforme Wilcox (2005, p. 98), As histórias A-B-C são especialmente úteis nas aulas de segunda língua. Elas apresentam uma rápida narrativa, rigorosamente limitada em sua estrutura. Elas são compostas por 26 palavras, utilizando em sequência as configurações de mão correspondentes às letras do alfabeto. Os temas costumam girar em torno de tabus, como sexo, histórias de fantasma ou lendas que brincam com religião. Algumas histórias A-B-C tornaram-se famosas e hoje são formas literárias fixas; outras são improvisadas por talentosos contadores de história Surdos. Também a pesquisadora brasileira de cultura surda, Karnopp (2012, p. 27) se interessou por tal tipo de composição, afirmando que [...] encontramos a série intitulada A to Z ABC stories in ASL, cujo foco é apresentar o ABC, com ênfase no alfabeto manual e na sequencialidade dessas letras, associados com sinais. O DVD intitulado A to Z, ABC stories in ASL, produzido por Ben Bahan e outros artistas, apresenta histórias ABC em que o objetivo é proporcionar prazer e diversão, tendo como base os efeitos visuais de tais construções artísticas, efeitos esses proporcionados pelo contato de duas línguas: ASL e Inglês. 2. 1 Análise ilustrativa 1 Configuração da mão (CM) é a forma que a mão assume durante a realização de um sinal. Pelas pesquisas linguísticas, foram identificadas 46 configurações de mãos na Libras. (BRITO, 1995).

O material ilustrativo de poemas com o qual trabalho neste artigo partiu de uma coleta de dados já registrados em vídeo e disponíveis para o grande público. De maneira geral, observo que os poemas surdos, em sua maioria, são autorais. Não são transmitidos para outros surdos, mesmo que alguns sinais sejam iguais. O que mais permanece são as configurações das mãos durante poesias. Por exemplo, a configuração de MÃO ABERTA, que apresenta movimentos do mar, montanha, rena, árvore de natal, anjo, pássaro, sereia, etc. aparece em muitos poemas. Conforme Sutton-Spence (2000, s/p) mostrou, no artigo Aspectos da poesia em BSL, a configuração de mão é usada na poesia. Veja: A estrofe [Manhã em Trio] contém 18 sinais, dos quais dez usam uma forma de mão em B ou em 5. O sinal final ÁRVORES-GEMÊAS usa duas mãos, cada uma com forma em 5. [...] A forma de mão em 5 é vista nos sinais LEÃO, JUBA-DO-LEÃO, e ATAQUE-COM-GARRAS. As configurações de mão MÃO ABERTA são as mais usadas durante poemas. Observem as ilustrações que apresentam momentos dos poetas brasileiros a seguir: A Cor Bandeira Brasileira Nelson Pimenta B Onda Poesia das Rosas Rosani Suzin C Presente A Árvore de Natal Fernanda Machado Figura 1 Momentos de poemas em LIBRAS Fontes: (A) DVD LITERATURA EM LSB, 1999; (B) DVD LIBRAS 03, 2001; (C) DVD Poesia A Árvore de Natal em LSB, 2005 Apresentamos, a seguir, três poemas sobre o Natal, que recontam a história do nascimento do menino Jesus, sendo bastante conhecidos na comunidade surda, considerados poemas clássicos, semelhantes ao uso, pelos ouvintes, de música natalina, poesia natalina, coral etc. na época de Natal. Encontramos seu registro desses poemas em três materiais: o primeiro material é o DVD Poesia A Árvore de Natal em LSB, produzido por Fernanda Machado, em 2005 (poema A). O segundo material é um vídeo postado no YouTube, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=xegtxbi7tf4&feature=plcp com Rosani Suzin, em2009 (poema B). O terceiro material é um vídeo postado no YouTube, disponível

em http://www.youtube.com/watch?v=6zxqoanmm2w com Alan Henry, em 2011 (poema C). A poeta Fernanda Machado apresentou o poema mais longo, com aproximadamente oito minutos de duração, com mais elementos e detalhes, expressando referências sobre nascimento de Jesus e de Papai Noel. Não usou nenhuma soletração e apresentou mais sinais poéticos e neologismos. Quadros e Sutton-Spence (2006, p. 147) explicam que neologismo, também em línguas de sinais, pode ser usado para efeito poético de muitas maneiras, trazendo a língua ao primeiro plano porque o poeta produziu a forma que ainda não é parte da língua. Resumindo o poema de Fernanda Machado, vemos que é uma narrativa sobre uma pessoa pegando bolas coloridas, colocando-as na Árvore de Natal; cada bola expressava a história de um elemento do nascimento de Jesus: anjo, Maria, José, Rei Herodes, três Reis Magos, burro. Fernanda sinalizou a cor de cada bola relacionando-a a um personagem ou a objetos como estrela. No final, quebra-se a bola vermelha, que simbolizava Rei Herodes, e dela sai uma luz que voa para o céu e se transforma em trenó com renas, Papai Noel e saco de presentes. Rosani Suzin apresentou um poema de sua autoria, com o título FELIZ NATAL, através do uso das letras que compõem essas palavras, ou seja, como história ABC, relacionando todas as letras com o nascimento de Jesus, sem referência ao personagem Papai Noel. Cada letra, por exemplo, se transforma numa ideia; o L se transforma em estrela e sorriso, o N se transforma na manjedoura em que nasceu Jesus etc. Alan Henry apresentou Noite Feliz poema (C) de sua autoria, em Libras. Não se trata de tradução de poesia escrita, mas ele utilizou mais sinais dicionarizados. Apresentou um poema com menos elementos e detalhes, usou poucas configurações de mão e explorou poucos recursos expressivos de Libras. Apresentamos o quadro a seguir, comparando os três poemas analisados, em relação aos sinais utilizados, para, em seguida, ilustrar os achados com imagens que os exemplificam. Sinais utilizados QUADRO I Poemas sobre NATAL síntese Poema A (Fernanda Machado) Poema B (Rosani Suzin) Poema C (Alan Henry)

ÁRVORE Neologismo Sinal em Libras Neologismo (sinal produzido com efeito poético, com ênfase na forma visual) (sinal conforme uso cotidiano, sinal dicionarizado) (sinal produzido com efeito poético, com ênfase na forma visual) JESUS Imitação rosto de Jesus, usando configuração de mão fechada S Imitação rosto de Jesus, usando CM fechada A Sinal em Libras JESUS CRISTO (sinal dicionarizado) (refere Jesus, usando CM S, com ênfase no rosto do bebê) SOLETRAÇÃO Nenhuma FELIZ NATAL DEUS ESTRELA Neologismo Neologismo Não utilizado MANJEDOURA Neologismo Sinal com CM em 4, duas mãos cruzando dedos no espaço neutro, referindo as pernas da manjedoura. Neologismo Letra N, balançando como cesta. Não utilizado OBJETO que se QUEBRA Bola caiu, saiu fumaça, voou para céu, se transformou em trenó. Letra E, duas mãos E abrindo, das quais sai luz, voando rápido no céu, que se transforma em cometa, estrelas... Não utilizado No quadro, observa-se que os três poetas apresentaram ÁRVORE e JESUS nos poemas (ver Figura 2 e Figura 3). Somente dois poemas (A e C) criaram neologismo para ÁRVORE. O poema (B) usou sinal dicionarizado ÁRVORE. Dois poemas (A e B) usaram sinal expressando nascimento do Jesus (ver figura 3); outro poema (C) usou sinal JESUS CRISTO. No poema A, a poeta fez configuração de mão S como mãos de Jesus nenê se movendo; no poema B foi usada a configuração de mão A por causa da letra A - Natal como mãos do Jesus se movendo (ver figura 3). Nos poemas A e B, as poetas fizeram expressão facial semelhante ao rosto do Jesus como bebê. Poema Natal Árvore

Poema A Poema C Figura 2: Poema Natal Árvore. Fontes: Poema A - DVD Poesia A Árvore de Natal em LSB. Poema C - http://www.youtube.com/watch?v=6zxqoanmm2w Poema Natal Jesus Poema A Poema B Figura ilustrativa História A até Z, com ênfase no rosto do bebê, utilizando a letra A. Figura 3: Poema Natal Jesus. Fontes: Poema A - DVD Poesia A Árvore de Natal em LSB. Poema B - http://www.youtube.com/watch?v=xegtxbi7tf4&feature=plcp. Figura ilustrativa DVD A to Z: ABC Stories in ASL. Atriz Stefanie Ellis-Gonzales. Ano 2010

Observamos que as figuras mostram que são mulheres as que dão ênfase ao rosto do bebê Jesus, e isso pode estar relacionado com o gênero das poetas. Podemos recorrer à autora Sutton-Spence (2011, p. 180), que reflete sobre expectativa cultural em relação a gêneros: As expectativas podem relacionar-se à cultura geral, quando se considera o gênero, ou cultura surda, quando a situação auditiva é considerada. Por exemplo, sugeri uma expectativa cultural em relação a DeafTrees (Árvores Surdas) de que homens têm maior probabilidade de derrubar árvores. Em Doll (Boneca), sabemos que meninas brincam com bonecas e, convencionalmente, a maquiagem costuma ser para mulheres; [...] Sobre soletração, que pode consistir num recurso interessante para a poesia de Libras, dois poemas a usaram: o poema B usou soletração para FELIZ NATAL, organizando o poema com cada letra da expressão, como história ABC. Em outro poema, C, primeiro o poeta fez o sinal DEUS; e depois soletrou D-E-U-S, levantando D para cima, conferindo maior expressividade para o significante. Em relação à estrela (ver Figura 4), o poema A usou o sinal de estrela, segurando a estrela voando como cometa; o poema B expressou várias estrelas. Poema Natal Estrela Poema A Poema B Figura 4: Poema Natal Estrela. Fontes: Poema A - DVD Poesia A Árvore de Natal em LSB. Poema B - http://www.youtube.com/watch?v=xegtxbi7tf4&feature=plcp. Em MANJEDOURA (Figura 5), no poema A, a poeta utilizou mão aberta como iluminação que se transforma em manjedoura; usou duas mãos cruzadas para baixo como se fosse manjedoura. No poema B, a poeta usou letra N (Natal), com duas mãos N fazendo xis, balançando, para significar manjedoura. Poema Natal Manjedoura

Poema A Poema B Figura 5: Poema Natal Manjedoura. Fontes: Poema A - DVD Poesia A Árvore de Natal em LSB. Poema B - http://www.youtube.com/watch?v=xegtxbi7tf4&feature=plcp. Sobre objeto que se quebra (Figura 6), no poema A, a poeta pegou a bola vermelha, lembrando o Rei Herodes que perseguiu as crianças e é perverso; a poeta fechou os olhos, deixando cair a bola e quebrar (no chão). Então, expressa sinal de fumaça, um pedaço que voa para céu, que se transforma em trenó de Papai Noel. No Poema B, a letra E (segunda letra de Feliz), se faz com duas mãos em E juntando, abrindo como se fosse ovo quebrando, de onde sai uma luz que voa para céu e se transforma em estrelas. Poema Natal - Objeto que se quebra Poema A Poema B Figura 6: Poema Natal Objeto que se quebra. Fontes: Poema A - DVD Poesia A Árvore de Natal em LSB. Poema B - http://www.youtube.com/watch?v=xegtxbi7tf4&feature=plcp. O destaque que fazemos, neste momento, é sobre os sinais JESUS e MANJEDOURA, que as poesias A e B usaram bem próximos. Também a sinalização de OBJETO que se QUEBRA, ambas as poesias A e B apresentaram.

Observa-se, assim, que nos três poemas sobre a temática Natal o que permanece são as configurações das mãos, sinais simbólicos do Papai Noel, Pinheiro de Natal e renas, além do aproveitamento de elementos das histórias tradicionais de Natal. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Através da breve análise comparativa de três poemas de autores surdos, buscamos mostrar a importância da literatura surda, este campo literário quase desconhecido dos estudiosos de literatura e que só recentemente vem ocupando um lugar nos estudos acadêmicos. Procuramos aproximar essa análise de teóricos que analisam poemas surdos, mas sabendo que, no espaço que tínhamos, é um estudo apenas introdutório. Assim como na literatura escrita, em relação à palavra, a literatura surda se vale de recursos que escapam do uso cotidiano de Libras e criam efeitos estéticos, que têm uma repercussão positiva entre a comunidade surda e contribuem para o desenvolvimento de sua identidade. Relembremos, com Quadros e Sutton-Spence (2006, p. 147), que O uso criativo da língua de sinais para produzir novos sinais tem sido chamado também sutileza poética e é relacionado à maneira com que os sinalizantes podem produzir imagem visual forte pelo tratamento criativo da forma visual dos animais. [...] Um poeta usando sinais visualmente criativos para produzir imagem visual forte está celebrando o potencial visual da língua de sinais. De alguma maneira, pensamos que foi possível ilustrar este potencial visual de que as autoras falam através da análise dos poemas aqui realizada. REFERÊNCIAS BRITO, Lucinda Ferreira. Por uma Gramática de Língua de Sinais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; UFRJ, Departamento de Linguística e Filologia, 1995. CULLER, Jonathan. Teoria Literária. São Paulo: Beca Produções Literárias, 1999. KARNOPP, Lodenir Becker. Produções culturais de surdos: análise da literatura surda. Cadernos de Educação (UFPel), v. Ano 19, p. 155-174, 2010.. Narrativas e diferenças em produções culturais de comunidades surdas. Relatório de Pesquisa. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ppgedu/UFRGS), 2012. MIRANDA, Wilson. Comunidade dos surdos: olhares sobre os contatos culturais. (Dissertação de mestrado). Porto Alegre: UFRGS/FACED/PPGEDU, 2001. MORGADO, Marta. Literatura das línguas gestuais. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2011a.

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