Clínica Habilidades sociais Já se tornou lugar-comum achar que a busca pela terapia se dá apenas quando há alguma questão estritamente individual a ser resolvida. Mas essa crença cai por terra no momento em que se percebe que o desafio para o tratamento psicoterápico está no desempenho social prejudicado do indivíduo Por Alessandro Vieira dos Reis e Esequias Caetano de Almeida Neto No best-seller Os desafios da terapia (Editora Ediouro), o terapeuta Irving Yalom, com décadas de experiência tratando o sofrimento humano, faz uma declaração contundente sobre o que leva as pessoas a procurar terapia. Segundo ele, essa busca ocorre apenas quando os problemas do indivíduo chegam ao ponto de impedi-lo de ter relacionamentos satisfatórios com outras pessoas. Mal-estar íntimo e subjetivo, em tese, pode ser tolerado com recursos comuns do cotidiano. Mas é quando o sofrimento prejudica as relações sociais concretas que a coisa muda de figura e a terapia surge como necessidade. Dizendo de outra forma: o self problemático só é entendido como alvo de tratamento quando compromete o vínculo com os outros. No sentido que Irving Yalom emprega, a terapia funcionaria como um treinamento intensivo de habilidades sociais. Esse valioso aprendizado terá um efeito salutar no cliente à medida que o torna capaz de lidar com pessoas e, indiretamente, consigo mesmo. Se a falta dessa classe de habilidades causa sofrimento clinicamente relevante mencionado por Yalom, então parece ser algo mais importante que meramente ser legal com os outros, ou ser pop. Sendo assim, como compreender tal gama de comportamentos? Uma resposta é dada pelo autor de Manual de avaliação e treinamento das Habilidades Sociais, Vicente Caballo. Habilidades sociais são comportamentos que ajudam o indivíduo a lidar com situações em que: a) ele deve interagir com ao menos um outro indivíduo; b) para chegar a um resultado desejado e c) cumprir os itens anteriores mantendo sua autoestima e uma boa relação com quem interage. 1
Social ou Interpessoal? Talvez fosse mais correto chamar essa classe de comportamentos de habilidades interpessoais, visto que elas determinam a relação de pessoas. Porém essa nomenclatura parece restringir a relação para um vínculo eu e outros, quando, na verdade, o eu comigo mesmo está incluso. Nesse sentido, autoestima, autocontrole e autoconhecimento são habilidades sociais que o indivíduo emprega para lidar com sua própria pessoa. A experiência de self nada mais é que um contato social consigo. Como diz Oscar Wilde: Amar a si mesmo é viver um romance para a vida inteira. Toda habilidade social partiria desse ponto: obtermos o que precisamos ou queremos e, necessariamente, mantendo um bom convívio em sociedade. Lidar com os outros Imagine um amigo que precisa repreender outro por uma mancada, mas não sabe como vidafazer sem ofendê-lo ou preocupar-se. Pense agora em um pai que gostaria de dizer eu te amo ao filho, mas não acha que seja capaz. Outra cena: a mulher que precisa pedir um favor a um colega de trabalho, mas teme gerar conflito de interesses entre o pessoal e o profissional. Todas essas são situações que demandam habilidades sociais, cada uma a seu modo. A relação de habilidades sociais certamente é vasta. Podemos incluir nela: prestar atenção aos comportamentos dos outros, liderar, obedecer, persuadir, seduzir, declarar sentimentos, 2
elogiar, criticar, pedir ajuda, decifrar linguagem corporal, perdoar, pedir desculpas, pedir favores, repreender, dar notícias desagradáveis, etc. Provavelmente nunca haverá uma lista definitiva, dada a natureza evolutiva do comportamento humano: novas circunstâncias surgem na sociedade e com elas novas demandas (veja quadro Social ou Interpessoal?) Aprendendo a ser sociável O homem é um animal social, disse Aristóteles em seu célebre tratado A Política. Possivelmente a frase mais correta seria: O homem é um animal sociável. Isto é, ele precisa aprender, ao longo da vida, a agir para fazer parte de um grupo, uma família, uma comunidade, etc. Dado seu caráter iminentemente prático, as habilidades sociais só podem ser aprendidas vivencialmente, na experiência cotidiana com os outros. (Até porque tais habilidades são reforçadas pelos outros, e não pelo agente que as aplica). Portanto, um aviso aos entusiastas de autoajuda: não adianta ler livros, estudar artigos científicos ou assistir filmes motivacionais. Apenas o convívio humano, com suas dores e Habilidade social não está ligada à inteligência. alegrias, capacita quando o assunto são os Einstein, por exemplo, isolava-se em seus estudos, termos sociais. Talvez por isso existam afastando-se, inclusive, de sua família pessoas geniais em diversas disciplinas científicas, artísticas e filosóficas, mas que em termos de relações sociais são problemáticas: a elas falta experiência direta com gente. Um exemplo clássico: Albert Einstein, que ficava sozinho por dias para dedicar-se aos cálculos e mal conversava com a esposa. Repertório e resiliência Quanto maior e mais eficaz o repertório de habilidades sociais do indivíduo, maior sua capacidade de enfrentar o sofrimento inerente ao viver. Hoje se fala muito em resiliência, que seria uma propriedade pela qual pessoas lidam com o estresse da vida pessoal e profissional sem passar por grandes transtornos, sem deformar suas mentes. A resiliência, contudo, não é uma propriedade especial de alguns indivíduos. Uma análise comportamental revela que a resiliência é um efeito observado em pessoas que agem socialmente amparadas e engajadas. Por exemplo, o indivíduo que tem em amigos apoio para enfrentar uma doença; o filho que conta com os pais para incentivá-lo a estudar depois de ter sido reprovado em um vestibular, e assim evitam que ele fique deprimido; o subordinado que conta com a liderança eficaz do chefe para motivá-lo em uma crise na empresa; as pessoas que fazem trabalho voluntário em comunidades carentes e assim se tornam mais humildes e satisfeitas com o que têm. Saber lidar com os outros e ter relações sociais satisfatórias é uma maneira de reforçar os próprios recursos subjetivos de saúde e bem-estar. 3
Como funciona o treinamento De acordo com Vicente Caballo, no livro Manual de avaliação e treinamento de Habilidades Sociais, o formato básico no treinamento de Habilidades Sociais consiste em, identificar com a ajuda do cliente em quais situações específicas ele encontra problemas. O terapeuta faz isso por meio de entrevistas, aplicação de inventários de Habilidades Sociais, observação em campo, autoinformes. A princípio é necessário construir um sistema de crenças com o cliente, em que se atente a manter o respeito pelos próprios direitos e pelos direitos das outras pessoas. A premissa subjacente no treinamento de Habilidades Sociais é humanista: não produzir estresse desnecessário nos demais e apoiar-se na autorrealização de cada pessoa. Buscar a moderação em seus atos. Uma segunda etapa do treinamento de Habilidades Sociais consiste em ensinar o cliente a diferenciar ações assertivas, não assertivas e agressivas. Os participantes do treinamento devem entender que o comportamento assertivo é, geralmente, mais adequado e gera mais reforçadores do que os outros estilos de comportamento. Agindo assim, aumentam as possibilidades de que o indivíduo se expresse livremente e também há chances dele conseguir o que se propõe sem prejudicar a si próprio e aos outros. Sendo agressivo, ele geraria provavelmente aversão nos outros, sendo criticado e rejeitado. No caso não assertivo, provavelmente ele não conseguiria o que quer e/ou se submeteria excessivamente à vontade de outros, perdendo assim o respeito pelos próprios direitos. Além destas vantagens, ao ver os resultados positivos por comportar-se assertivamente, o cliente teria a sua motivação aumentada para continuar o treinamento de Habilidades Sociais. Escala de Liebowitz Uma das formas de avaliar o cliente de terapia é por meio de entrevistas fechadas e inventários, escritos ou não. Para compreender o funcionamento único do cliente, o terapeuta pode pesquisar em que escala seus comportamentos se encontram comprometidos e para isso utiliza instrumentos de medida, como a Escala de Liebowitz, como ferramenta auxiliar. O objetivo é mensurar a ocorrência de ansiedade decorrente de contatos sociais. Útil para a avaliação de pessoas com suposto déficit comportamental em termos sociais, a Escala consiste em uma lista de episódios típicos do convívio social. Para cada um desses episódios é solicitado que o avaliando declare: a) o nível de ansiedade que costuma sentir quando o vivencia; e b) com que frequência o episódio em questão costuma ser evitado. A lista de episódios citados na Escala de Liebowitz, que não deve ser encarada como estanque ou definitiva, consta com itens como: telefonar em público, participar em pequenos grupos, comer em locais públicos, ir a uma festa, resistir a um vendedor persistente. Uma vez aplicada, a Escala de Liebowitz pode ajudar, por exemplo, o terapeuta a planejar um programa de Dessensibilização Sistemática (procedimento que consiste da aproximação gradativa de estímulos aversivos de modo que esses tenham seu efeito prejudicial diminuído, de forma controlada). O terapeuta pode, por exemplo, solicitar que o cliente que tem medo de falar em público comece aos poucos se aproximando desse episódio social ao falar diante do espelho. 4
"Uma análise revela que a resiliência é um efeito em pessoas que agem socialmente amparadas e engajadas" A próxima etapa aborda a reestruturação do modo de pensar do cliente socialmente inabilidoso. Lembrando que o comportamento socialmente hábil é situacionalmente específico para cada indivíduo, assim como o modo de pensar e a situação na qual o sujeito esteja inserido. Esta reestruturação do pensamento tem como objetivo ajudar o cliente a reconhecer que o que ele diz a si mesmo pode influenciar seus sentimentos e seus comportamentos. Alguns procedimentos utilizados para isto são: autoanálise racional, imagens racional-emotivas ou diversas variações de treinamento em que o paciente aprende a se autoinstruir. A última etapa e a mais importante, é constituída pelo ensaio comportamental das ações socialmente adequadas em determinadas situações. O que já foi feito anteriormente, como o uso de técnicas de relaxamento em situações em que o cliente sinta-se muito nervoso, a aceitação e reconhecimento dos direitos pessoais e dos outros, a diferenciação de ações assertivas e não assertivas e a reestruturação do modo de pensar do paciente facilita, e por vezes possibilita o ensaio comportamental apropriado e sua generalização às situações reais. Os procedimentos comumente empregados nesta etapa, são: a) Ensaio Comportamental: representar as maneiras apropriadas e efetivas de enfrentar as situações da vida real que são problemáticas para o cliente; b) Modelação: a exposição do paciente a um modelo que mostre corretamente o comportamento-objetivo permitindo que ele aprenda por meio de observação outras maneiras de lidar com a situação; c) Instruções/ensino: proporciona ao cliente a informação explícita sobre a natureza e o grau de discrepância entre a sua atuação e o critério; d) Tarefas para casa: todo terapeuta com experiência sabe que, em grande parte, o sucesso do que é feito na clínica depende das atividades do cliente quando está fora dela. Dentre as tarefas geralmente passadas pelos profissionais encontram-se o registro do seu nível de ansiedade diante de situações problemáticas. Para isso costumam-se usar instrumentos de medida de comportamento, tais como a Escala de Liebowitz para Ansiedade Social (veja quadro Escala de Liebowitz). Um dos benefícios da análise comportamental é trabalhar a tensão em falar em público, uma habilidade que todos têm, mas que alguns acreditam ter muita dificuldade Benefícios sociais da terapia 5
Historicamente, a clínica psicoterápica foi imaginada como a busca da cura de problemas privados, isto é, do indivíduo, atuando no campo dos comportamentos encobertos (como pensamentos, autoconceito, sentimentos, etc.), ou seja, como uma cura que ocorre na interioridade do sujeito. A visão comportamental, pela qual o organismo está em perpétua interação com o ambiente, relativiza o conceito de cura interna e estipula como o bem-estar íntimo está necessariamente conectado ao ambiente social do sujeito. Já foi dito que a clínica deve ir ao social, por exemplo, em atendimentos comunitários. Mas de acordo com o Comportamentalismo, tal divisão é meramente imaginária e apenas obscurece a percepção dos terapeutas. Ao atender a um cliente que chega com sofrimentos buscando ajuda, o terapeuta comportamental entende que junto com a queixa, o cliente carrega consigo um histórico de aprendizagens que explica seus déficits e incompletudes. Se o cliente é parte de uma intricada rede de contingências sociais, e inegavelmente ele o é, então tratá-lo implica na melhoria do ambiente em que ele vive. Dentre as melhorias mais comuns do aspecto social do cliente destacam-se, segundo Caballo, uma melhor capacidade de tolerar frustração, mais resistência, maior capacidade de reforçar positivamente comportamentos alheios, assertividade e maior autocontrole em situações de conflito. A relação da clínica e do social pode ser comparada ao conceito de Condicionamento Operante. Por condicionamento entende-se a conexão dos eventos do organismo com condições do ambiente. Já operante diz respeito ao fato do organismo não apenas responder ao ambiente, mas também operar sobre ele, alterando-o. Ou seja, somos controlados pelo mundo, mas ao mesmo tempo o controlamos. A clínica e o social funcionam mediante o mesmo paradoxo de mútua constituição: toda clínica é social, pois todo indivíduo só existe porque parte da sociedade. Referências YALOM, Irving. Os desafios da terapia. São Paulo: Ediouro, 2007. CABALLO, V. E. Manual de avaliação e treinamento das Habilidades Sociais. São Paulo: Livraria Santos Editora, 2003. http://psiquecienciaevida.uol.com.br/esps/edicoes/41/problemas-de-grupo-procurar-analise-apenaspara-sanar-problemas-141904-1.asp 6