A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA ESCOLA PÚBLICA:



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BURGOS, Marcelo Baumann. A constitucionalização da escola pública: notas para uma agenda de pesquisa. Boletim CEDES [on-line], Rio de Janeiro, maio de 2009, pp. 20-30. Acessado em: (...) Disponível em: http://cedes.iuperj.br. ISSN: 1982-1522. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA ESCOLA PÚBLICA: NOTAS PARA UMA AGENDA DE PESQUISA Marcelo Baumann Burgos 1 Por seu papel estratégico na construção de consensos cognitivos básicos, a escola, e muito especialmente a escola pública, ocupa um lugar clássico na formação de uma cultura democrática. O Brasil, como veremos, vem construindo, desde 1988, um marco normativo fortemente orientado para a aposta no papel da escola como fonte de socialização na cultura democrática. Em caráter ainda exploratório, este artigo apresenta uma breve reconstituição deste marco normativo que vem sendo construído em torno da educação ao longo dos últimos vinte anos, e procurará sustentar que, apesar das diferentes conjunturas políticas que este período encerra, é possível notar uma nítida continuidade tanto na produção legislativa quanto nas políticas públicas formuladas e desenvolvidas pelo poder executivo federal na área de educação, configurando-se como um processo importante de decantação e sedimentação dos valores inscritos na Constituição de 1988. Será enfocado, de modo mais específico, o ensino fundamental, que já se afirmou como lugar de passagem obrigatório para as novas gerações do mundo popular das grandes metrópoles brasileiras, ganhando, por isso mesmo, especial relevância para o tema da massificação da cultura democrática entre nós. De forma sucinta, pode-se afirmar que a constitucionalização da educação tem sua manifestação mais forte através de dois princípios fundamentais, presentes em toda produção normativa nesse período: de um lado, a idéia de que o processo educacional deve ser capaz de cultivar a formação de indivíduos dotados de autonomia 1 Doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), professor do Departamento de Sociologia da PUC-Rio e membro da coordenação do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES/IUPERJ). 20

cognitiva e intelectual, habilitando-os a viver plenamente a condição do que tem sido definido como cidadãos críticos. E de outro, a idéia de que a escola pública deve se converter em um centro de animação cívica, o que pressupõe que ela seja capaz de mobilizar estudantes, pais/responsáveis e sociedade civil local em torno de uma gestão escolar participativa. Esses dois princípios estão claramente colocados nos artigos 205 e 206 da Constituição Federal. O primeiro, estabelece que a educação direito de todos e dever do Estado e da família será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. E o segundo, define os princípios do ensino, postulando, em sete incisos, valores como igualdade de acesso à escola, liberdade, pluralismo no processo de aprendizado e gestão democrática do ensino. A produção normativa que se segue à Constituição incorpora e materializa esses princípios. Nesse sentido, um primeiro texto legal a ser destacado é o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069/1990), que estabelece uma interface importante com o direito à educação. De fato, dele se extrai um conjunto de parâmetros voltados para o fortalecimento da participação no processo educacional, não apenas dos pais/responsáveis, mas também da comunidade. Com base no ECA, o direito de acesso à escola pública é articulado com os conceitos de proximidade e de participação comunitária em decisões importantes para o cotidiano escolar. Isto fica evidente no Artigo 53, citado a seguir: Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes: I igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II direito de ser respeitado por seus educadores; III direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores; IV direito de organização e participação em entidades estudantis; V acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência. Parágrafo único. É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais. 21

A idéia de proximidade articula-se, de um lado, com a ênfase no respeito às especificidades do contexto em que vive a criança/adolescente, como notório no seu Artigo 58: Art. 58. No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura. Mas também se relaciona com a ênfase atribuída à descentralização do processo decisório, que deve favorecer a participação popular em todas as áreas de interesse da criança e do adolescente, incluindo a escola. Para tanto, as principais agências previstas pelo ECA são os conselhos municipais de direitos da criança e os conselhos tutelares, estes últimos, organizados a partir da vida local, têm como uma de suas atribuições requisitar serviços públicos na área de educação (Art.136, III). A inspiração constitucional inscrita no ECA se estende à lei específica da educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº. 9.394), de 1996. Em seu artigo 12, a LDB define o papel do estabelecimento de ensino, atribuindo-lhe as seguintes incumbências: I elaborar e executar sua proposta pedagógica; II administrar seu pessoal e seus recursos materiais e financeiros; III assegurar o cumprimento dos dias letivos e horas-aula estabelecidas; IV velar pelo cumprimento do plano de trabalho de cada docente; V prover meios para a recuperação dos alunos de menor rendimento; VI articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola; VII informar os pais e responsáveis sobre a freqüência e o rendimento dos alunos, bem como sobre a execução de sua proposta pedagógica. Desse conjunto de incisos, sobressai a aposta em uma escola administrativamente autônoma, mas socialmente controlada por pais/responsáveis e pela comunidade em geral. Este aspecto é ainda mais realçado pelo Artigo 14 da mesma lei, que define parâmetros para a gestão do ensino público na educação básica, determinando que a sua gestão democrática contemple, além da participação dos profissionais de educação, a das comunidades escolar e local através de conselhos escolares ou de outros fóruns que desempenhem função equivalente. 22

Adiante, o artigo 22 da LDB, que trata especificamente da educação básica, define como finalidade principal deste subsistema o desenvolvimento do educando, por meio de uma formação comum capaz de assegurar o exercício da cidadania e o acesso ao mercado de trabalho. Art. 22º. A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. Em seguida, o artigo 32, que define o papel do ensino fundamental, reitera o comando normativo de que o ensino terá por objetivo a formação básica do cidadão, estabelecendo que essa meta será assegurada tanto por meio do desenvolvimento de habilidades que remetem ao papel instrucional da escola, quanto por meio de uma formação nos valores desejados para a vida em sociedade, que incluem o reconhecimento dos laços de solidariedade e a tolerância recíproca. Art. 32º. O ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e gratuito na escola pública, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante: I o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; IV o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social. Na esteira da LDB, o Ministério da Educação edita, em 1997, os Parâmetros Curriculares Nacionais, a fim de atender à necessidade e à obrigação de o Estado elaborar parâmetros claros no campo curricular capazes de orientar as ações educativas do ensino obrigatório, de forma a adequá-lo aos ideais democráticos e à busca da melhoria da qualidade do ensino nas escolas brasileiras. O texto de apresentação do documento é vazado por diversas passagens, que vão deixando evidente o desejo de comprometer a educação escolar com a formação de uma sociedade democrática. A passagem citada a seguir, demonstra como os 23

PCNs apresentam o aprendizado escolar como passaporte necessário para o exercício da cidadania : No contexto da proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais se concebe a educação escolar como uma prática que tem a possibilidade de criar condições para que todos os alunos desenvolvam suas capacidades e aprendam os conteúdos necessários para construir instrumentos de compreensão da realidade e de participação em relações sociais, políticas e culturais diversificadas e cada vez mais amplas, condições estas fundamentais para o exercício da cidadania na construção de uma sociedade democrática e não excludente. Daí se extrai uma concepção sobre o papel institucional a ser jogado pela escola na construção da cultura democrática, que deve atravessar todo o processo de aprendizagem: A escola, ao tomar para si o objetivo de formar cidadãos capazes de atuar com competência e dignidade na sociedade, buscará eleger, como objeto de ensino, conteúdos que estejam em consonância com as questões sociais que marcam cada momento histórico, cuja aprendizagem e assimilação são as consideradas essenciais para que os alunos possam exercer seus direitos e deveres. Para tanto ainda é necessário que a instituição escolar garanta um conjunto de práticas planejadas com o propósito de contribuir para que os alunos se apropriem dos conteúdos de maneira crítica e construtiva. Ao mesmo tempo em que propõe que a construção de cidadania pressupõe uma articulação entre a vida local e as dimensões nacional e global: A escola, na perspectiva de construção de cidadania, precisa assumir a valorização da cultura de sua própria comunidade e, ao mesmo tempo, buscar ultrapassar seus limites, propiciando às crianças pertencentes aos diferentes grupos sociais o acesso ao saber, tanto no que diz respeito aos conhecimentos socialmente relevantes da cultura brasileira no âmbito nacional e regional como no que faz parte do patrimônio universal da humanidade. Nessa perspectiva, afirma ainda o documento de apresentação das PCNs, é essencial a vinculação da escola com as questões sociais e com os valores democráticos, não só do ponto de vista da seleção e tratamento dos conteúdos, como também da própria organização escolar. Pois, na sua concepção, o processo de aprendizagem não pode ser separado dos valores, implícitos e explícitos, que regem a atuação das pessoas na escola. E um postulado básico para o cumprimento dessa 24

tarefa seria a sua capacidade de inserir socialmente seu aluno, de modo a permitir que ele se perceba como parte de uma comunidade, de uma classe, de um ou vários grupos sociais, assegurando com isso que ele venha a se comprometer pessoalmente com questões que considere relevantes para a vida coletiva. Disso resultaria um aprendizado nuclear ao exercício da cidadania, permitindo a superação do individualismo. No que se refere especificamente ao ensino fundamental, essa base valorativa e principiológica é traduzida em um conjunto de objetivos que, por sua importância para o sentido do argumento deste artigo, deve ser integralmente transcrito. Como se verá a seguir, trata-se de uma concepção generosa do papel da educação escolar na formação de uma cultura democrática, que parece ter sido diretamente inspirada pelo preâmbulo da Constituição, ao fazer de valores como solidariedade, justiça social, respeito à pluralidade, e participação ativa na transformação sócio-ambiental, objetivos centrais ao ensino fundamental. Os Parâmetros Curriculares Nacionais indicam como objetivos do ensino fundamental que os alunos sejam capazes de: compreender a cidadania como participação social e política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito; posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas; conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais, materiais e culturais como meio para construir progressivamente a noção de identidade nacional e pessoal e o sentimento de pertinência ao País; conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais; perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente, identificando seus elementos e as interações entre eles, contribuindo ativamente para a melhoria do meio ambiente; desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo e o sentimento de confiança em suas capacidades afetiva, física, cognitiva, ética, estética, de inter-relação pessoal e de inserção social, para agir com perseverança na busca de conhecimento e no exercício da cidadania; conhecer e cuidar do próprio corpo, valorizando e adotando hábitos saudáveis como um dos aspectos básicos da qualidade de vida e agindo com responsabilidade em relação à sua saúde e à saúde coletiva; 25

utilizar as diferentes linguagens verbal, matemática, gráfica, plástica e corporal como meio para produzir, expressar e comunicar suas idéias, interpretar e usufruir das produções culturais, em contextos públicos e privados, atendendo a diferentes intenções e situações de comunicação; saber utilizar diferentes fontes de informação e recursos tecnológicos para adquirir e construir conhecimentos; questionar a realidade formulando-se problemas e tratando de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a criatividade, a intuição, a capacidade de análise crítica, selecionando procedimentos e verificando sua adequação. Esse breve apanhado já seria suficiente para confirmar a hipótese da constitucionalização do ensino público, que se reflete, como se viu, na aposta no papel republicano da escola, da qual se espera a universalização de um conjunto de valores e de práticas capazes de contribuir decisivamente para a construção de uma cultura democrática. Mas vale a pena observar como essa aposta republicana vai se desdobrando e se aprofundando na produção normativa posterior. Em 2001, é aprovado pelo Congresso Nacional o Plano Nacional de Educação (Lei nº. 10.172/2001). Concebido em uma conjuntura na qual a escolaridade básica é alçada à variável fundamental para assegurar uma inserção mais competitiva do país na economia globalizada, nem por isso o Plano deixa de salientar a importância da democratização da gestão do ensino público, conforme se pode observar a seguir, no trecho extraído do documento de apresentação do Plano, especialmente no último item, grifado em negrito: Em síntese, o Plano tem como objetivos: a elevação global do nível de escolaridade da população; a melhoria da qualidade do ensino em todos os níveis; a redução das desigualdades sociais e regionais no tocante ao acesso e à permanência, com sucesso, na educação pública; e democratização da gestão do ensino público, nos estabelecimentos oficiais, obedecendo aos princípios da participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e a participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes. Ao tratar especificamente do ensino fundamental, o documento reafirma que a cobrança de metas e resultados, inerentes à aposta na maior autonomia gerencial das escolas, será orientado pelo princípio democrático da participação, envolvendo comunidade, alunos, pais, professores e demais trabalhadores da educação. 26

Mas esse quadro se torna ainda mais nítido, quando se analisa o desenho de algumas das políticas públicas formuladas pelo governo federal com vistas a implementar o modelo de sistema educacional concebido pelo legislador. Um bom lugar para se observar os objetivos traçados para a educação escolar no Brasil é o documento intitulado Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares, realizado pela Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação, em 2004. Nele, o conselho escolar aparece como instância estratégica para a formulação e difusão da pedagogia democrática que se espera da escola. O documento foi organizado em cinco cadernos, com os seguintes temas: 1 Conselhos Escolares: Democratização da escola e da construção da cidadania; 2 Conselho Escolar e a aprendizagem na escola; 3 Conselho Escolar e o respeito e a valorização do saber e da cultura do estudante e da comunidade; 4 Conselho Escolar e o aproveitamento significativo do tempo pedagógico; 5 Conselho Escolar, gestão democrática da educação e escolha do diretor. O amplo arco temático no qual o conselho deverá estar envolvido é, por si, um claro indicador da expectativa criada em relação ao seu papel no processo educacional. De especial interesse para nosso argumento, no entanto, é o Caderno 1, que situa o conselho escolar como um elo entre o trabalho instrucional e o trabalho de formação voltado para a cidadania. O documento começa por observar que a função social da escola pública é a de formar o cidadão, entendida como construir conhecimentos, atitudes e valores que tornem o estudante solidário, crítico, ético e participativo (BRASIL, p.19). Em seguida, afirma que a escola pública não apenas deve estar orientada para a democratização da sociedade, mas se converter, ela própria, em lugar privilegiado para o exercício da cidadania participativa, qualificada como uma cidadania consciente e comprometida com os interesses da maioria socialmente excluída (Idem, p.20). Para desenvolver plenamente suas funções como lugar de aprendizado e de construção de uma sociedade mais igualitária e participativa, o Programa enfatiza a necessidade de se organizar uma gestão democrática da escola, que deverá ter no conselho escolar seu instrumento principal, devendo caber-lhe não apenas contribuir para o desenvolvimento e permanente monitoramento do projeto político-pedagógico das escolas, mas também a criação de um novo cotidiano escolar, no qual a escola e 27

a comunidade se identificam no enfrentamento não só dos desafios escolares imediatos, mas dos graves problemas sociais vividos na realidade brasileira. Em face desta concepção, fica evidente que mais do que compartilhar a gestão da escola, o conselho funciona como elo que compromete o papel institucional da escola com a comunidade em que ela está inserida, e com a sociedade em geral. No final do documento, reitera-se, ainda uma vez, e com especial ênfase, que a qualidade social que se pretende atingir através do trabalho escolar deve representar um crescimento intelectual, afetivo, político e social dos envolvidos, tendo como horizonte a transformação da realidade brasileira. Em 2007, o Plano de Desenvolvimento da Educação, aprovado pelo governo federal, acrescenta nova camada à concepção que vem sendo construída ao longo desses 20 anos de Constituição. Na apresentação do documento, encontra-se, uma vez mais, a tônica de que a escola tem papel central na construção de uma sociedade democrática, como se verifica a seguir: Indo além, o objetivo da política nacional de educação deve se harmonizar com os objetivos fundamentais da própria República, fixados pela Constituição Federal de 1988: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Não há como construir uma sociedade livre, justa e solidária sem uma educação republicana, pautada pela construção da autonomia, pela inclusão e pelo respeito à diversidade. Só é possível garantir o desenvolvimento nacional se a educação for alçada à condição de eixo estruturante da ação do Estado de forma a potencializar seus efeitos. Reduzir desigualdades sociais e regionais se traduz na equalização das oportunidades de acesso à educação de qualidade. Ato contínuo à aprovação do PDE, o executivo federal promulga, através do Decreto nº. 6094/2007, o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação. Nele, estabelece uma série de medidas voltadas para o fortalecimento da qualidade da educação, definindo um conjunto de 28 diretrizes, voltadas para a ampliação do acesso à escola e para a qualidade da educação pública. Entre essas diretrizes, as quatro últimas, apresentadas a seguir, enfatizam o papel da sociedade civil na vida escolar, acentuando a importância da mobilização social em torno da escola, chegando a postular a organização de um comitê local composto por atores da sociedade civil e do Ministério Público para participar da vida escolar: 28

XXV fomentar e apoiar os conselhos escolares, envolvendo as famílias dos educandos, com as atribuições, dentre outras, de zelar pela manutenção da escola e pelo monitoramento das ações e consecução das metas do compromisso; XXVI transformar a escola num espaço comunitário e manter ou recuperar aqueles espaços e equipamentos públicos da cidade que possam ser utilizados pela comunidade escolar; XXVII firmar parcerias externas à comunidade escolar, visando a melhoria da infra-estrutura da escola ou a promoção de projetos socioculturais e ações educativas; XXVIII organizar um comitê local do Compromisso, com representantes das associações de empresários, trabalhadores, sociedade civil, Ministério Público, Conselho Tutelar e dirigentes do sistema educacional público, encarregado da mobilização da sociedade e do acompanhamento das metas de evolução do IDEB. *** Com esse breve panorama da produção normativa sobre a educação nos últimos vinte anos pretendeu-se demonstrar a forte evidência do processo de constitucionalização neste campo. Ao mobilizar documentos produzidos em diferentes conjunturas políticas, tornou-se possível observar como e quais valores e princípios postulados pela Constituição Federal têm atravessado, como um fio invisível, esse período histórico, conferindo um sentido de continuidade à institucionalidade construída na área da educação. E desse fio invisível sobressaem duas dimensões fundamentais, a da articulação entre aprendizagem e formação para a cidadania, e a ênfase na gestão participativa da escola. Essas duas dimensões aparecem, nos documentos analisados, de forma articulada, conectando a aposta na descentralização socialmente controlada da administração escolar, com a construção coletiva de uma pedagogia orientada para a afirmação de valores básicos para o ideal democrático de 88, como são a solidariedade, a igual-liberdade, a pluralidade e a justiça social. Da leitura desses documentos governamentais se conclui, portanto, que da escola pública se espera muito mais do que simplesmente ensinar uma cultura escolar, dela se espera, sobretudo, que ensine a cultura democrática. Ou, para ser mais preciso, que o processo de aprendizagem considere essas duas dimensões a cultura escolar e a cultura democrática como partes inseparáveis de uma única pedagogia, comprometida com a construção da democracia em uma sociedade que, por sua 29

desigualdade estrutural e por seu autoritarismo congênito, não teria razões para apostar exclusivamente na geração espontânea da cidadania. Mas é importante reconhecer que a efetiva concretização dessa aposta está longe de ser tranqüila. Ao contrário, o mais correto seria considerar que essa dimensão normativa é parte de uma história de luta democrática, que tem encontrado muitas resistências, as quais se manifestam em diversas frentes: nas dificuldades inerentes ao processo de descentralização e autonomização da escola; na resistência em abrir a escola para a comunidade; na falta de interesse da própria sociedade pela escola pública; e na idéia, tão arraigada, de que o papel principal da escola deve ser o de promover a mobilidade social de seus alunos, através da qualificação de seu acesso ao mercado de trabalho. De fato, esse quadro de tensões e conflitos, sugere que a decantação dos valores e princípios constitucionais acerca da educação construída nos últimos vinte anos, tem servido como elemento de afirmação democrática em face de um projeto de corte mais nitidamente liberal para a educação pública, que tende a submetê-la aos ditames do mercado. O descompasso entre o marco normativo construído no país nesse período e a realidade de boa parte das redes públicas de ensino reflete, portanto, ambigüidades e incertezas quanto ao destino da educação pública no país, e sua sorte dependerá da maior ou menor adesão da sociedade às bandeiras democráticas. Mas também parece depender, ao menos em alguma medida, do papel da universidade e em particular da capacidade da sociologia da educação, de introduzir novos temas à agenda de pesquisa sobre a escola e a educação pública, colocando no foco estudos sobre os avanços e impasses que vêm ditando o ritmo de efetivação das diretrizes democráticas traçadas nesses últimos vinte anos. 30