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Transcrição:

Tal como pretendemos salientar ao longo do primeiro capítulo, no período da indústria artesanal não se concedia demasiada importância ao fenómeno do trabalho infantil. As pessoas de então preocupavam-se, essencialmente, em encontrar os meios de subsistência e de reprodução procurando, assim, dar resposta às suas necessidades vitais. Só com o desenvolvimento da urbanização, o alargamento e a intensificação das actividades comerciais e a implementação do sistema fabril de produção, o trabalho infantil se tornou remunerado. Esta forma de trabalho infantil distinguia-se da indústria artesanal caracterizada pela participação em pequenas tarefas que eram normalmente realizadas no interior da família, tendo em conta o desenvolvimento etário e humano da criança. Numa sociedade em vias de rápida industrialização, predominava um modo de vida totalmente condicionado pelas necessidades de sobrevivência quotidiana, sem grandes perspectivas dum futuro próspero. De facto, no último quartel do século XVIII, a actividade económica e a população começaram a crescer muito rapidamente. A expansão económica e o aumento da população aconteciam em simultâneo pois, apesar do uso de alguma maquinaria, o crescimento económico precisava de mais mão-de-obra e, assim, ambos se pressionavam mutuamente no sentido de uma mudança qualitativa irreversível. Era o nascimento da sociedade industrial. 138

A questão do trabalho infantil não pode ser separada de outros aspectos sociais tais como a pobreza, a desigualdade, a exploração e as relações entre as classes. Para as famílias operárias que tentavam proteger os seus filhos dos horrores do trabalho durante a Revolução Industrial, retirar as crianças do mundo do trabalho (em muitos casos enfrentando a oposição dos patrões) era considerada uma vitória. Claro que algumas famílias queriam que os seus filhos continuassem a trabalhar porque necessitavam do dinheiro, mas a protecção das crianças particularmente das mais jovens das consequências nefastas do trabalho remunerado era algo considerado como bem vindo. Muitas famílias tentaram proteger os seus filhos da brutalidade do mercado de trabalho, mas esta não era uma alternativa para as famílias pobres e para as crianças órfãs. Nada é mais depressivo do que a crueza com a qual foram tratadas as crianças operárias da indústria têxtil e os pequenos limpa-chaminés, e a relutância em garantir a sua protecção. O caminho a percorrer na luta contra o trabalho infantil revelou-se longo e penoso. Este foi reestruturado e desproblematizado, não sendo, no entanto, erradicado. Um combate eficaz ao trabalho de crianças passa, antes de mais, pelo ataque às suas causas. Efectivamente, a génese da lei nesta matéria implica que se criem condições que evitem que as famílias e as crianças, por razões de sobrevivência ou outras, recorram ao trabalho infantil, como um mal menor. Contudo, à urgência de pôr cobro a este panorama confrangedor e humilhante nem sempre corresponderam resultados substanciais e imediatos umas vezes por falta de respostas adequadas, outras pela própria natureza da exploração do trabalho infantil que se inscrevia numa teia alargada de relações a que não eram alheias a precaridade e instabilidade de alguns universos familiares. Considerando as causas de carácter cultural, educativo, económico e social que em torno do trabalho infantil se colocavam, foi fundamental criar, na consciência social 139

colectiva, juízos de censura e reprovação social em relação à tolerância pelas diferentes formas de exploração do trabalho infantil. Procurou-se criar, de um modo gradual, uma cultura de gestão de recursos humanos que não permitisse a concorrência desleal pela utilização de crianças, muitas vezes a ocupar o lugar de adultos no mercado de trabalho, não consentindo a exploração do trabalho infantil que em nada dignifica o ser humano. Só assim se poderia criar uma sociedade mais culta e melhor, deixando o mundo do trabalho para os adultos e o mundo da escola para as crianças, porque a educação era e continua a ser indiscutivelmente, a melhor arma para garantir o seu futuro e o futuro do país. Os primeiros passos foram dados para ajudar a prevenir o fenómeno do trabalho infantil, garantindo à criança o acesso à educação, ao desenvolvimento harmonioso e, sobretudo, garantindo-lhe o direito de brincar. Havia apenas que lhes dar continuidade. As crianças operárias fabris e os limpa-chaminés constituíram, de facto, duas das piores formas de trabalho infantil da Grã-Bretanha do século XIX. Afinal, eram as crianças que estavam em causa. Crianças a quem se negava o direito à palavra, crianças amiúde privadas do direito de crescer com tempo e com sonhos, incitadas tantas vezes pelos adultos, como mão-de-obra barata, a crescer antes do tempo. O trabalho não podia e não pode ser um meio de exploração indiscriminada e nefanda que transformava crianças em vítimas e que as marcava, com frequência, para toda a vida. Estas crianças trabalhadoras não chegavam a viver e saborear a alegria de um período irrepetível da vida, tornando-se adultos antes do tempo, ficando muitas vezes incapacitadas de enfrentar o futuro em igualdade de oportunidades com as restantes, ou mesmo tornando-se fisicamente deficientes e psicologicamente marcadas para sempre. As crianças não adquiriam o direito à infância, antes, tornavam-se adultos que não tiveram 140

tempo de ser meninos. Eram formas de trabalho que não deixavam a criança ser criança; eram Crianças Sem Infância. Passados que são cerca de dois séculos sobre as experiências aterradoras destas crianças ao serviço de uma sociedade limitada pelo seu conhecimento científico humano, apraz-nos registar com orgulho, a evolução que sofreram as mentalidades, o profundo progresso científico e até a valorização da pessoa humana. Na realidade, a crescente preocupação com o desenvolvimento sadio das crianças permitiu, nos países desenvolvidos, que estas conquistassem um lugar confortável e que desfrutem, hoje, de uma infância feliz, na qual possam viver todas as experiências passíveis de lhes permitir ser o futuro de cada nação. A infância é hoje considerada a fase mais importante da vida humana. A brincadeira é uma espécie de linguagem universal. Não importa em que país do mundo, não importa se os brinquedos são improvisados do quotidiano ou são reproduções luxuosas e caras do mundo dos adultos. Em qualquer lado, em qualquer altura, há crianças que brincam. E brincando imitam, aprendem e apreendem o mundo real. Crescem. Hoje em dia, grande parte do tempo das crianças é passado a brincar. É com a brincadeira que vão percebendo o modo de funcionamento das coisas que as rodeiam. Lentamente, vão entrando no mundo dos adultos, vão tomando contacto com as regras que o regem. No seu mundo de fantasia, a criança faz tudo o que, devido à sua tenra idade, lhe está vedado no mundo real. Ao mesmo tempo, aprende a gerir as suas angústias e os seus afectos, soluciona problemas e resolve conflitos, vai experimentando sentimentos. De facto, as crianças brincam a maior parte do tempo, mas brincar é muito mais do que passar o tempo. Brincar é uma coisa séria, que influencia o crescimento físico, intelectual, emocional e social da criança. Ao mesmo tempo estimula a individualidade e fomenta a sociabilidade. 141

É com muita alegria, mesmo com algum alívio que registamos a existência da Convenção dos Direitos da Criança, elaborada em 1989 pela Organização das Nações Unidas, que mostra sem dúvida a preocupação de que as crianças têm vindo a ser alvo ao longo dos tempos. De todos os direitos consignados nesta Convenção, destacamos aquele que encerra em si todas as potencialidades da vida humana: o direito à dignidade. Este permite-nos olhar à volta, para todo o mundo, e acalentar a esperança de um dia, em breve, não termos necessidade de reclamar direitos e podermos simplesmente falar de CRIANÇAS. 142