1 O DIREITO DE FAMÍLIA: a união estável - uma eve retrospectiva A família, desde tempos imemoriais, tem sido constituída sob as mais variadas formas, tanto segundo os costumes de cada povo, quanto influenciada pelos valores sócio-culturais, políticos e religiosos de cada época. Assim, embora seja importante registrar que a base da relação familiar deva ser o afeto, nesta eve retrospectiva soe a família na história, em algumas sociedades não-ocidentais, nem sempre prevalece aquele sentimento, sendo os parceiros conjugais escolhidos pelos pais e só vindo a conhecerem-se no momento da celeação das núpcias. No Egito antigo, como exceção à regra universalizada que veda o casamento entre memos da mesma família, o casamento entre irmãos era admitido, para assegurar a manutenção da pureza do sangue da família do Faraó. Na China tradicional, ao contrário, a proibição do casamento no meio familiar estende-se a vários graus de parentesco. Em outras culturas são permitidos vários casamentos concomitantes (poligamia). No Islã, os muçulmanos têm o direito de possuir até quatro esposas ao mesmo tempo. Trata-se da forma de poligamia conhecida como poliginia, onde há duas ou mais mulheres para um mesmo homem. Enfatize-se, ainda, que ocorrem, também, hipóteses de poliandria (uma mulher com dois ou mais maridos), situação bastante comum nas fronteiras entre o Tibet e o Nepal. Em Mustang, uma dessas localidades, a terra fértil é muito escassa e se os homens de uma mesma família se casarem com mulheres diferentes terão que dividir a propriedade, que se tornará insuficiente para o sustento de todos. A solução comumente aceita e institucionalizada é casarem-se dois ou mais irmãos com uma mesma mulher. Compartilham-se a terra e a esposa, que passa um certo número de noites com cada um dos maridos, convivendo o grupo familiar em perfeita harmonia. Não se sabe quem é o pai das crianças. Portanto, o irmão mais velho é chamado de pai e o mais novo de tio. www. lcsa nt os.pro. LUIZ CAR L OS DOS SA NTOS Já em Roma, as pessoas componentes da família encontravam-se sob o patria potestas do ascendente masculino mais velho. Assim, se um casal só tivesse filhas mulheres adultas e um
2 menino, de qualquer idade, este seria o pater famílias, caso o pai viesse a faltar. Não havia correlação direta com a consangüinidade. O pater familias tinha poder soe todos os descendentes não emancipados e soe as mulheres casadas com manus com os descendentes. Assinale-se, porém, que havia em Roma dois tipos de parentesco. A agnação, consistente no vínculo entre pessoas sujeitas ao mesmo pater, mesmo que não fossem consangüíneos e a cognação, que era o parentesco sangüíneo sem sujeição ao mesmo pater. A título de ilustração, em referência à vida dos cidadãos na Roma antiga, Fustel de Coulanges explica que o casamento fazia parte do contexto religioso da família. Cada grupo familiar possuía sua própria religião, suas próprias orações e formulações, em torno do fogo doméstico e dos antepassados. Mas o casamento tinha um caráter de certo modo traumático. A jovem esposa, criada sob a religião paterna, adorava o fogo doméstico e participava de todas as celeações diárias. Ao casar-se, renunciava ao fogo doméstico da casa paterna para aderir ao fogo doméstico da casa do marido. Era como se mudasse de família, passando a ser como que uma filha de seu marido, sob orientação religiosa deste. Para o marido, o ato de casar também tinha a sua gravidade, pois importava em aproximar do fogo doméstico uma pessoa estranha e com ela celear as cerimônias misteriosas do seu culto, revelando-lhe os ritos e as fórmulas que eram patrimônio exclusivo de sua família. De acordo com os estudos empreendidos, o casamento de fato existiu no Direito Romano. Em 450 a.c., já se dizia que havendo posse continuada entre homem e mulher, esta passava, após um ano de convivência ininterrupta, a fazer parte da família de seu marido, sob o poder protetivo deste ou do pai deste, conforme fosse um ou outro o pater familias. O casamento era um fato, apesar das teorias contrárias. O elemento da coabitação romana era a coabitação física. Quando o marido ficava separado mais de cinco anos da mulher, sem que esta soubesse de seu paradeiro, havia o divórcio bona gratia, que era automático. Há registro de que no Direito Romano, como visto, nunca houve necessidade de celeação para haver o matrimônio; nas Ordenações encontram-se três tipos de união matrimonial: o casamento religioso católico, o casamento de fato (usus romano), e o casamento por escritura, LUI Z CARLO S DOS SANT OS www.lcsa ntos.pro. que não era casamento civil, mas realizado por documento ad probationem tantum. Estes institutos têm quase 4.000 anos e foram torpedeados pelo nosso legislativo, no Decreto 181 de 1890. Com este decreto secularizou-se o casamento, passando a existir, somente, o casamento civil, reconhecido pelo Estado.
3 Direcionando este estudo para a sociedade asileira, registre-se que, embora haja diversas formas de registro para um contexto que se entenda como familiar, em algumas culturas como a nossa e praticamente em todo o resto do ocidente, só é aceito um pacto de casamento (monogamia). Dessa forma, acompanhando o desenvolvimento dos preceitos legais em torno da formação do núcleo familiar, cabe frisar que, no Brasil, antes da Carta Magna de 1988, somente era considerada entidade familiar e, portanto, poder gozar da proteção do Estado a união por meio do casamento. Este existia apenas para perpetuar a família, com mera função procracional - sem que lhe conferisse ter como fim o prazer e a felicidade, por exemplo. Entende-se que em uma família que se conceba ideal, cada memo deve ocupar um lugar (lugar de pai, de mãe, de filho, e é no seio deste lar que se encontram o afeto e o respeito). Neste sentido, a Lei 9.278, de 10 de maio de 1996 veio regular o 3º do art. 226 da Constituição Federal de 1988, cuja lei, no seu Art. 1º., preconiza: [...] reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família. Já no Art. 2º. da lei em epígrafe, relaciona os direitos e deveres da união estável, a saber: I - respeito e consideração mútuos; II - assistência moral e material recíproca; III - guarda, sustento e educação dos filhos comuns. Faz-se necessário lemar que os arts. 3º. e 4º. da supramencionada lei foram vetados. Enquanto isso, o Art. 5º. disciplina os bens móveis e imóveis comprados na vigência da União: Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito. Assinale-se que os parágrafos 1º e 2º do Art. 5º. excepcionam duas situações, ora transcritas: ww w.lcs ant os. pro. 1º. Cessa a presunção do caput deste artigo se a aquisição patrimonial ocorrer com o LUI Z CARLOS DOS SANT OS produto de bens adquiridos anteriormente ao início da união. e 2º. A administração do patrimônio comum dos conviventes compete a ambos, salvo estipulação contrária em contrato escrito. Ressalte-se, também, que o Art. 6º. fora vetado.
4 Em relação ao Art. 7º. da lei em tela, Dissolvida a união estável por rescisão, a assistência material prevista nesta Lei será prestada por um dos conviventes ao que dela necessitar, a título de alimentos. O parágrafo único deste artigo dispõe soe o imóvel destinado à residência da família, na dissolução. Eis a íntegra: Parágrafo único - Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o soevivente terá direito real de habilitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família. Referentemente ao Art. 8º. da lei em foco tem-se: Os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da Circunscrição de seu domicílio. No que concerne ao Art. 9º., reza o instituto legal que [...]Toda a matéria relativa à união estável é de competência do juízo da Vara de Família, assegurado o segredo de justiça. O fato é que muitas pessoas ainda desconheciam a existência da Lei 8.971/94 (disciplinando os alimentos e o regime de bens, denominando de companheiros os componentes da relação afetiva) e da detalhada Lei nº 9.278/96. Porém, só com o advento do Novo Código Civil - Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 é que os indivíduos passaram a emprestar maior importância às suas disposições quando souberam que essas previsões agora estavam no referido código, o que denota quão pouco se conhece de legislação em meio à grande massa da população asileira. É sabido, também, que o Direito de Família encontra-se em processo de reconstrução, embalado pelos ideais de despatrimonialização e repersonalização que orientam o novo modelo de Direito Civil. Esse é o entendimento de vários expoentes, dentre os quais: Moraes (1993); Lobo (2002); Perlingieri (2002); Tepedino (1999); Martins (2005); Pretti (2007); Barboza (1997); Hironaka (2000); Fachin (1999); Dias (2006); Carbonera (1998); Reale (2005); Pereira (2001). ww w.l csa nt os. pro.b r LUIZ CARL OS DO S SAN TOS Saliente-se que todo reconstruir passa por um processo de desconstrução, que não é sinônimo de destruir, mas de desagrupar, fragmentar, desagregar. Ou seja, primeiro se fragmenta, desagrega, para depois se reagregar, reconstruir, com uma nova forma/leitura, soe novos alicerces; isto vem ocorrendo desde o advento da Constituição Federal em 1988, que trouxe
5 para seu bojo, na forma de dispositivo guindado ao status de fundamento da República (art. 1º, III), objetivando o princípio da dignidade da pessoa humana. Justamente este princípio veio lastrear as grandes inovações em matéria de direito civil, servindo de norma de estrutura para todo o ordenamento jurídico asileiro, exigindo uma (re) leitura e (re) interpretação dos institutos. A mesma Carta Magna que agasalhou tal princípio aiu um precedente histórico ao disciplinamento da família asileira, reconhecendo e chancelando a união estável como forma legítima de constituição da entidade familiar nãomatrimonial formada por homem e mulher. Frise-se que na Constituição de 1967, mesmo depois da emenda de 1969, o artigo 175 dizia que a família era constituída pelo casamento, certamente civil, tendo a proteção do Poder Público. Um texto constitucional não pode cometer esta discriminação, dizendo como um povo deva constituir sua família. Não pode fechar os olhos à realidade. O projeto de lei de 1988, antes da edição da Constituição, teve o intuito de acabar com essa discriminação. A partir da Constituição de 1967, a jurisprudência tentou equiliar a situação dando direitos à concubina. Até hoje existem decisões tentando ajudá-la, vendo-a como participante de relações domésticas, prestadora de serviços do lar etc. A lei de Previdência Soci, no concubinato adulterino, equipara a concubina à esposa, com o mesmo direito à pensão. O STF criou a súmula 380, que diferiu o concubinato da sociedade de fato. Além da convivência era necessária a aquisição de patrimônio comum, com esforço de natureza econômica, o que era muito difícil provar. Surgiu a Lei Nelson Carneiro, em 1994, bem como a lei de 1996. Com o disciplinamento da "União Estável", como forma de constituição familiar, o ordenamento pátrio aiu ensejo a uma nova era de direitos da personalidade, reafirmando a dignidade da pessoa humana como valor fonte. Tudo passa a convergir para a pessoa, que é a razão de ser do próprio Direito. Enfim, reflita-se soe a assertiva de Hironaka apud Pretti (2007, p.96) "[...] a família é um fato natural e o casamento tornou-se uma convenção social." Nesta nova concepção, não mais se distingue a família pela existência do matrimônio, solenidade que deixou de ser único traço diferencial. LUIZ CARLOS DOS SA NTO S www.l csa ntos. pro. Infere-se que a Constituição Pátria de 1988 tratou de forma ímpar os direitos fundamentais e, em especial, a proteção das relações da pessoa em sociedade. Na parte atinente ao Direito de
6 Família, trouxe profundas e necessárias alterações, pelas quais se ansiava há décadas. Corrobora-se a assertiva de Fachin (2003) quanto à nova (re) leitura crítica do Direito, que já não pode limitar-se à reprodução de saberes, mas deve enveredar-se por novas fontes de investigação, de forma independente. Com esse eve panorama histórico, percebe-se que houve uma grande transformação no conceito de família em todo o mundo, até se chegar à Família contemporânea, especialmente aquela que se encontra disciplinada nos moldes do Direito Brasileiro, com uma amplitude nunca antes reconhecida pela lei. Pelo exposto, reafirma-se a dignidade do ser humano que, como um dado ôntico está no mundo do ser, um valor fundante do ordenamento jurídico e de todas as demais ciências que têm o homem como centro de referência. Transposto ao plano ôntico, como o foi, através da Constituição, este princípio soe a dignidade humana passou a inspirar todo o sistema asileiro e trouxe para o Direito de Família, em especial, profundas modificações estruturais, ampliando o conceito de igualdade jurídica para os cidadãos asileiros. www.lcsantos.pro. LUIZ CARLOS DOS SA NTOS