ORDENAMENTO TERRITORIAL E POLÍTICAS DE GESTÃO AMBIENTAL EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO 1



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Transcrição:

ORDENAMENTO TERRITORIAL E POLÍTICAS DE GESTÃO AMBIENTAL EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO 1 ALEXANDRE, M. A. Resumo A atual política ambiental brasileira não impede o processo de perda da biodiversidade. A PNMA estabelece que a constituição de áreas de proteção integral deve ser o preferencial instrumento para a conservação, sendo também fundamento para as políticas ambientais do Estado do Rio de Janeiro, em função da estrutura federativa que rege o País. Assim, o modelo de unidades de uso restritivo dissocia os processos de discussão de conservação e preservação da presença do homem. Entretanto, o ser humano deve ser considerado em qualquer modelo de gestão para áreas protegidas, através de formas diferenciadas e locais de ação que contemplem a participação das comunidades locais. Este estudo propõe uma discussão da política ambiental estadual para a criação e o gerenciamento de unidades de conservação, à luz das relações entre o homem e o meio, principalmente aqueles que ocupam seu interior e entornos. Para tanto, foram escolhidas duas unidades como áreas de estudo de caso: a Reserva Ecológica da Juatinga, localizada no litoral sul do estado, e o Parque Estadual do Desengano, situado a partir da porção norte da região serrana. Em ambas os processos de conservação dos recursos buscam, embora de forma diferenciada, incorporar aspectos sociais e estabelecer um padrão de relações com a natureza. 1. Objetivos O presente projeto, realizado entre 1999 e 2003, avaliou o atual modelo utilizado pelo Poder Executivo estadual para a criação e o gerenciamento de áreas protegidas, com o propósito de estudo das mesmas como categoria de entendimento da espacialidade social. Objetivou-se discutir a política de gestão ambiental de acordo com o conceito do sistema federativo que prevê, segundo Dallari (2003), a unicidade dos interesses públicos a partir do direito promanado da União. Formulada segundo uma ótica que privilegia a caracterização técnica e cênica do meio, a Lei nº 6.938/81, que estabelece a PNMA, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação e constitui o SISNAMA, resultou no estabelecimento de unidades de conservação (UC s) de uso indireto como principal instrumento para a política ambiental no país, e também para as unidades da Federação. Posteriormente, a Lei nº 9.985/2000, que institui o SNUC, estabeleceu novas diretrizes para o sistema ambiental federativo. Estas intervenções públicas podem entendidas como políticas territoriais, ao serem definidas como uma ação estatal que visa alcançar um maior controle da realidade sócio-espacial. Implicam, simultaneamente, uma dada concepção de espaço, uma estratégia de intervenção ao nível da estrutura territorial e mecanismos concretos que viabilizem tais políticas. 1 Trabalho apresentado no I Simpósio Nacional sobre Áreas Protegidas UFV, 2005. www.marceloacha.eng.br Página 1

Assim pretendeu-se compreender o significado das UC s no processo de intervenção ambiental executado pelos governos do estado do Rio de Janeiro no período compreendido entre 1974 e 2002, isto é, desde a fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro. Para tanto, estabelecemos como áreas de estudo de caso a Reserva Ecológica (RESEC) da Juatinga, localizada no município de Paraty, no litoral sul do estado, e o Parque Estadual (PE) do Desengano, situado entre os municípios de Santa Maria Madalena, São Fidélis e Campos dos Goytacazes, na porção norte da região serrana. MAPA 1 Localização Geral 2. Metodologia Esta pesquisa pretendeu demonstrar que os aspectos restritivos de manejo das unidades de uso indireto não são suficientes para garantir a preservação dos recursos, enquanto que a presença de grupos tradicionais aqui entendidos como comunidades que, segundo Diegues (1994), apresentam uma dinâmica diferenciada de relações com a natureza, com formas de apropriação www.marceloacha.eng.br Página 2

comunal dos espaços e dos recursos naturais, distintas daquelas existentes nas sociedades urbano-industriais pode auxiliar na conservação dos mesmos. Não consideramos o conjunto das unidades federais, municipais e particulares, observando somente as possíveis influências que sua dinâmica possa exercer na gestão do conjunto de UC s estaduais. A escolha destas duas áreas deve-se ao fato de que são, ambas, administradas pela Fundação Instituto Estadual de Florestas do Estado do Rio de Janeiro, o IEF-RJ, podendo, em tese, ser consideradas espelhos da administração estadual para o setor, refletindo seus problemas e virtudes. Além disso, fazem parte da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, área com 29 milhões de hectares distribuídos por quatorze estados brasileiros. Constituídas com objetivos diferentes a RESEC Juatinga é uma área de uso direto, enquanto o PE Desengano é uma unidade de uso indireto apresentam problemas em comum, embora de intensidades diferenciadas, tais como desmatamentos, queimadas, a caça e o extrativismo vegetal ilegal, dentre outros. A elaboração desse modelo é a base para a correlação entre os limites fixados pelos requisitos legais bem como pelas pressões originadas por parte do movimento ambientalista brasileiro e as demandas geradas pelos grupos tradicionais (no caso da RESEC Juatinga). Procuramos assim demonstrar que o atual método de escolha de áreas a serem convertidas em UC s, a partir da idéia do uso restritivo do ambiente, estará equivocado por não contemplar os grupos tradicionais em seu interior. A representatividade da dinâmica da natureza para tais grupos irá constituir a base para a fixação de objetivos em um processo específico de gestão do território, ao apoiar o desenvolvimento de uma metodologia capaz de permitir uma redução dos riscos e o uso racional dos recursos naturais por grupos sociais que efetivamente ocupem as áreas em estudo. Além disso, a partir do exemplo do PE do Desengano, discutimos os impactos causados pelos processos de degradação ambiental às áreas de uso restritivo, e suas conseqüências para a política ambiental do estado. 3. Unidades de conservação e ordenamento territorial As primeiras UC s foram criadas sob a égide do antigo Código Florestal. Os critérios estéticos e a idéia de que o homem é um ser potencialmente destruidor da natureza foram utilizados para justificar a criação das mesmas. Em 1937 surgiu o PARNA de Itatiaia e em 1939 os do Iguaçu e da Serra dos Órgãos. Podemos notar, portanto, que dois dos três primeiros espaços protegidos do território nacional estão localizados no eixo Rio-São Paulo, tradicional pólo concentrador de atividades produtivas. Desde então, as UC s são consideradas como áreas que comportam bens de interesse comum, implicando em formas específicas de uso e de direito de propriedade, à exceção das categorias www.marceloacha.eng.br Página 3

de Monumento Natural e Refúgio da Vida Silvestre. Nestas, é facultada a criação de unidades em área particular desde que seja possível conciliar o objetivo da categoria da unidade com o da utilização da terra e dos recursos por parte do proprietário. Atualmente há cinco categorias de unidades de proteção integral, em que área é de posse e domínio público. O contexto dos anos 80 tornou relevante o propósito de conciliar a política ambiental com a realidade do país. Desta forma, o IBAMA tentou estabelecer outras estratégias de conservação sem promover a aquisição de terras pelo Estado. A adoção deste novo modelo, contudo, deve ser mais relacionada aos aspectos econômicos, visto que sua criação é menos onerosa ao poder público por demandar menor contingente de fiscalização e promover menos desapropriações, do que aos aspectos metodológicos, em função da efetiva participação da comunidade no processo de criação e gerenciamento das unidades. Criou-se a APA, categoria que tem por finalidade assegurar o bem-estar das populações humanas e conservar ou melhorar as condições ecológicas locais. Deve-se ressaltar, todavia, que o processo de planejamento, criação e gerenciamento das APA s restringe-se à iniciativa do poder público. O processo de gestão ambiental em terras privadas implica na imposição de limitações administrativas ao direito de propriedade. Deste modo restringe o exercício de determinadas atividades e impõe algumas obrigações a quem detém a posse da terra, por tratar-se de ação para a conservação de bens coletivos em domínios da propriedade privada. A desapropriação configura uma profunda intervenção estatal na ordem econômica. Sendo assim, a política territorial com vistas à conservação/preservação de recursos adquire nova dinâmica, com a possibilidade de coexistência entre áreas de domínio público e outras em posse de particulares. Todavia manifesta-se, mais uma vez, a ação centralizadora do Estado, incidindo diretamente sobre as formas de ordenamento territorial bem como sobre a disponibilidade patrimonial. As alterações verificadas a partir dos anos 80 não configuram mudança substancial nas políticas federal e estadual de conservação da natureza, a não ser pelo fato de que há uma relativa descentralização do processo de criação e gerenciamento das unidades. A constituição de UC s permanece apoiada no princípio do uso restritivo do espaço, apesar das mudanças possibilitadas pela nova lei. O SNUC sugere diretrizes que compreendem um maior manejo humano da natureza, devendo: assegurar a participação efetiva das populações locais na criação, implantação e gestão das UC s; incentivar as populações locais e as organizações privadas a estabelecerem e administrarem unidades dentro do sistema nacional; considerar as condições e necessidades das populações locais no desenvolvimento e adaptação de métodos e técnicas de uso sustentável dos recursos naturais; garantir às populações tradicionais, cuja subsistência dependa da utilização de recursos existentes no interior das unidades, meios de subsistência www.marceloacha.eng.br Página 4

alternativos ou a justa indenização pelos recursos perdidos. No caso específico da RESEC Juatinga, os caiçaras têm direito somente ao uso real das terras ocupadas, conforme determinado na Lei nº 2.393/95, que dispõe sobre a permanência de populações nativas residentes em unidades de conservação do estado do Rio de Janeiro. Tal direito pode ser transferível apenas aos descendentes diretos somente se os mesmos também dependerem direta e prioritariamente destas mesmas áreas, vedadas a locação ou sublocação a outros interessados. Embora tratada como unidade de uso sustentável, por comportar uma comunidade tradicional em seu interior, é administrada como área de proteção integral. Esta categoria de manejo não é contemplada pela Lei nº 9.985/2000, tendo uma gestão nos moldes das Reservas Biológicas (REBIO s). A permanência de um modelo baseado no uso restritivo dos recursos dificulta a relação entre a comunidade e o meio. Seus moradores estão inseridos em uma unidade cuja categoria não mais existe, fenômeno capaz de gerar diversos problemas de gestão. Estes são instados a abdicar de seus métodos tradicionais de subsistência, sofrendo sérias restrições aos processos de manejo e uso dos recursos disponíveis. 4. Políticas de gestão ambiental no estado do Rio de Janeiro A sanção do Decreto Lei nº 134/75, que dispõe sobre a formulação da Política Estadual de Controle Ambiental, pode ser considerada o marco inicial da estruturação de um sistema de gestão ambiental para o estado do Rio de Janeiro. Surgiram, assim, as bases para a política ambiental, com vistas à consolidação da gestão do território. A partir da legislação federal, fixou um conjunto de normas ambientais de caráter restritivo, e não participativo. Somente a partir das determinações da PNMA o poder público estadual começou a demonstrar sua preocupação com os princípios que norteiam o desenvolvimento sustentável. Entretanto, de forma também semelhante a PNMA, também aqui foi adotado o princípio da utilização de UC s como um dos principais instrumentos de gestão ambiental, com a constituição preferencial de unidades de uso indireto. Apenas a partir da Lei nº 1.681/90, que dispõe sobre a elaboração do Plano Diretor das APA s criadas no estado, inicia-se o processo de gestão participativa nos destinos das unidades de conservação. Posteriormente, há que se destacar a Lei Estadual nº 1.859/91, que criou a RESEC Juatinga e deve ser tomada como marco na política ambiental do estado, pois não apenas criou uma UC que deveria ser administrada sob os princípios da gestão participativa, mas também por estabelecer meios de preservação de uma cultura tradicional. Todavia, há que se lembrar, nenhuma outra unidade surgiu nos mesmos moldes desta, embora seja tomada como modelo para a política www.marceloacha.eng.br Página 5

ambiental estadual. Podemos notar o desenvolvimento dos instrumentos de gestão ambiental com vistas à articulação dos diversos agentes que irão interagir no estado do Rio de Janeiro. A política ambiental promovida pelas sucessivas administrações estaduais passa a contemplar a participação de grupos sociais que, até então, eram objetos e não sujeitos em um processo de ocupação/exploração do espaço, em consonância com as especificidades do meio ambiente e as necessidades de subsistência do homem. Infelizmente nenhuma unidade semelhante foi criada após a RESEC em tela, somente áreas de uso indireto e APA s. Ainda assim, as mudanças ocorridas na política de gestão ambiental em âmbito nacional, a partir dos anos 80, refletiram-se na política estadual para o setor. A limitação orçamentária, que restringia o processo de criação de unidades de conservação da natureza ao demandar altos custos com a desapropriação de terras e com o gerenciamento direto das UC s, impôs às sucessivas administrações estaduais a adoção de uma política de estímulo à criação de APA s. 5. Relações sociedade-natureza nas unidades em estudo 5.1. Reserva Ecológica da Juatinga O litoral sul fluminense apresenta ainda hoje traços de uma relação entre sociedade e natureza que se iniciou no século XVII, com a fundação da vila de Nossa Senhora dos Remédios de Paraty, em 1667. A implantação da rodovia BR-101 no início dos anos 70 trouxe, por um lado, a revitalização da economia da região, por meio do aproveitamento turístico do litoral, mas, por outro, promoveu profundas alterações sociais e ambientais, algumas irreversíveis. A especulação imobiliária deflagrou uma corrida pela posse de terras e pela devastação da mata atlântica, principalmente pela construção de condomínios de alto luxo. A expansão imobiliária significa um paradoxo, qual seja: utiliza-se da imagem da mata atlântica, exuberante, para a venda de imóveis de alto padrão; ao mesmo tempo, devasta a cobertura vegetal para a construção dos empreendimentos. De acordo com o ato de sua criação, a RESEC Juatinga é uma área non edificandi, sendo entretanto preservadas as áreas tradicionalmente ocupadas pelas comunidades caiçaras. Tem o objetivo de manter uma comunidade tradicional em um local onde pudessem ser preservadas as suas características culturais ancestrais. Para os moradores da unidade, o direito de uso das terras constitui problema delicado, tendo em vista as diversas limitações impostas pela legislação às atividades de subsistência. Conforme relato dos próprios caiçaras, as leis de defeso da pesca e de proteção da mata não os deixam desempenhar satisfatoriamente atividades agrícolas, de extrativismo e de criação de animais. www.marceloacha.eng.br Página 6

Embora entendam ser necessária a conservação dos recursos, questionam o rigor da lei, argumentando que já praticam a conservação há muito, e que, se não o fizessem, não haveria mais recurso algum ainda a ser consumido. No entender dos moradores da reserva, a pressão sobre os recursos não é provocada por eles, mas pelas demandas urbanas. A área também tem funções recreacionais e culturais que geralmente não são valoradas economicamente pelos que tomam decisões que podem alterar o ecossistema, muitas vezes de forma irreversível. No sentido de orientar o poder público, foi elaborado, com a participação da comunidade, um Plano de Gestão Ambiental que terá como resultado uma série de recomendações para o desenvolvimento sustentável, bem como o zoneamento e regulamentação do uso do seu território. O estudo é baseado em levantamentos sobre capacidade de suporte ambiental e de infra-estrutura, população, meio físico, cobertura vegetal, fauna e ambientes marinhos. A regulamentação e o zoneamento do uso do solo deverão ser transformados em decreto estadual, devendo ainda fazer parte do Plano Diretor de Paraty, após aprovação da Câmara Municipal. Marcovaldi (1999) aponta o envolvimento comunitário como fator de sucesso para os programas de conservação da natureza, visto que o resultado das políticas ambientais ultrapassa o conhecimento e a capacidade técnico-científicos. Deve-se considerar que, para estas comunidades, os recursos naturais correspondem à maior parcela de sua fonte de renda. 5.2. Parque Estadual do Desengano Ao norte do Estado, a ocupação do espaço a partir do século XVI acarretou, conforme os estudos de Drummond (1997), uma intensificação do uso dos recursos naturais locais e a tentativa de utilização de indígenas na lógica mercantil colonial. Assim, iniciam as pressões sobre o meio no norte fluminense. Em fins do século XVI, as fazendas de cana-de-açúcar marcavam radicalmente a paisagem local, forjando um novo padrão de uso dos recursos. A escolha da região deve-se a uma conjugação de fatores. Topografia plana ou levemente ondulada, médias térmicas elevadas, alta pluviosidade e solos aluvionares são algumas das características que destacaram os Campos dos Goitacazes como área de grande potencial agrícola. Os lucros auferidos pela atividade agrícola, impulsionada por mão-de-obra escrava, permitiu a ampliação das terras cultivadas em direção ao interior. A criação extensiva de gado bovino também demanda abertura de novas terras para a preparação dos pastos. Desta forma, uma das áreas de menor densidade demográfica do estado apresenta alto nível de degradação ambiental devido a atividades agropastoris de cunho extensivo, o que levou a um processo de invasão e degradação das áreas protegidas e seus recursos. Para mitigar tais processos predatórios, o Instituto Pró-Natura desenvolveu o PRODESUDE, um www.marceloacha.eng.br Página 7

programa de desenvolvimento sustentado para a área de entorno do parque. Com o patrocínio da Companhia White Martins e apoio do IEF-RJ, o PRODESUDE busca agir numa zona de amortecimento, de aproximadamente 58.000ha. Seu objetivo consiste na adesão dos proprietários rurais do entorno do parque através da cessão de 1ha de terra para reflorestamento em troca de assistência técnica para as atividades agropastoris. 6. Conclusão Existem atualmente cerca de 90 unidades de conservação no estado do Rio de Janeiro, entre parques, reservas e áreas naturais, não sendo consideradas aqui as RPPN s. Apesar de sua importância e da legislação protetora, este rico patrimônio ambiental está praticamente abandonado. Não existem fiscalização, planos diretores, regularização fundiária e programas de educação ambiental adequados. A observação das UC s em estudo nos leva a perceber que as mesmas se destacam do conjunto de áreas protegidas sob a guarda do estado do Rio de Janeiro. A RESEC Juatinga, com habitantes em seu interior e que estabelecem um modelo próprio de gerenciamento do uso dos recursos naturais ali existentes, manteve suas características, apesar da crescente especulação imobiliária. Por outro lado, o PE Desengano apresenta uma grande pressão sobre suas terras mesmo em uma região onde as densidades demográficas são comumente baixas. A compatibilização entre o uso dos recursos naturais, a ocupação do espaço territorial e a conservação ambiental é possível, portanto, desde que as políticas ambientais consigam estabelecer modelos de gestão ambiental econômico e socialmente equilibrados, com a disciplinarização do uso da terra, através da elaboração de um plano de gestão e zoneamento sócio-ambiental. Para tanto, faz-se necessária a elaboração de um PGA para o estado do Rio de Janeiro como um todo, e não somente para as unidades de conservação. Os PGA s deverão contemplar a melhoria da qualidade de vida, a conservação da natureza e da cultura local para a totalidade do estado, considerando as necessidades das comunidades e as limitações das instituições envolvidas na sua gestão. Por outro lado, uma nova estratégia de ordenamento da paisagem sugere maior participação daqueles envolvidos na dinâmica territorial. Sendo espaços territoriais destinados à exploração auto-sustentável e à conservação dos recursos naturais renováveis existentes, as UC s não restritivas devem ser vistas não apenas como áreas de interesse ecológico, mas também social, nas quais a exploração sustentável pode ocorrer sem prejuízos à conservação. As relações sociedade-natureza devem ser percebidas segundo um sistema em que as questões ambientais implicam nova dinâmica social, novos paradigmas produtivos e novas configurações www.marceloacha.eng.br Página 8

territoriais. Ao desconsiderar as características dos ecossistemas envolvidos e os interesses dos segmentos sociais locais, construímos uma visão mítica de que avanços científicos e tecnológicos são, necessariamente, portadores de progresso e bem estar social. Não há um único paradigma de desenvolvimento, o que deve nos fazer pensar vários tipos de sociedade sustentáveis. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, Antônio Herman (coordenador). Direito ambiental das áreas protegidas. O regime jurídico das unidades de conservação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, 547p. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 24ª ed., 2003, 307p. DIEGUES, Antonio Carlos Sant Ana. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: EDUSP, 1994, 163p. DRUMMOND, José Augusto. Devastação e preservação ambiental no Rio de Janeiro. Niterói: EDUFF, 1997, 306p. FUNDAÇÃO ESTADUAL DE ENGENHARIA DO MEIO AMBIENTE (FEEMA). Atlas de conservação ambiental do estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FEEMA, 2001, cd-rom. FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA. Plano de gestão ambiental da APA de Cairuçu e Reserva Ecológica da Juatinga. Planejamento participativo e zoneamento. São Paulo: Fundação SOS Mata Atlântica, versão preliminar, 2002, cd-rom. INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS (IBAMA). Roteiro metodológico para o planejamento de unidades de conservação de uso indireto. Brasília, DF: IBAMA, 1996, 110p. INSTITUTO BRASILEIRO DE PESQUISAS E ESTUDOS AMBIENTAIS. Balanço do programa de desenvolvimento sustentado do Parque Estadual do Desengano (PRODESUDE). Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Pesquisas e Estudos Ambientais, 2001, 9p. (versão eletrônica). MARCOVALDI, Maria Ângela. Um programa de conservação só pode dar certo com o envolvimento comunitário. Debates socioambientais. São Paulo: ACIMA, ano V, nº 13, p. 18-19, jul-out, 1999. MILANO, Miguel Serediuk. Unidades de Conservação: conceitos básicos e princípios gerais de planejamento, manejo e administração. In: Manejo de áreas naturais protegidas. Curitiba: Universidade Livre do Meio Ambiente, 1997, 127p. MORAES, Antonio Carlos Robert. Notas sobre a formação territorial e políticas ambientais no Brasil. Território. Rio de Janeiro: EDUFRJ, v. 4, n. 7, p. 43-50, jul./dez 1999. MORSELLO, Carla. Áreas protegidas públicas e privadas: seleção e manejo. São Paulo: Annablume, 2003, 344p. www.marceloacha.eng.br Página 9