AS RELAÇÕES ENTRE FAMÍLIAS E PROFESSORAS DE PRIMEIRO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL: a avaliação em foco na EMEF Edson Luis Chaves



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Transcrição:

AS RELAÇÕES ENTRE FAMÍLIAS E PROFESSORAS DE PRIMEIRO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL: a avaliação em foco na EMEF Edson Luis Chaves Mayara Carrijo Ferreira Faculdade de Psicologia Centro de Ciências da Vida mayarinha_cf@yahoo.com.br Maria Silvia P. de M. Librandi da Rocha Grupo de Pesquisa Qualidade de Ensino Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas silrocha@uol.com.br Resumo: Em 2006-2007, a segunda autora desenvolveu pesquisa em escolas municipais cujos resultados mostraram dificuldades para construção do currículo do novo Ensino Fundamental (EF), evidenciando-se escassez de investimentos para atividades lúdicas, no cotidiano escolar. Algumas causas das dificuldades foram (i) avaliações das famílias sobre o currículo, valorizando positivamente atividades de alfabetização e cálculo e negativamente atividades lúdicas e (ii) dificuldades das professoras para explicarem a importância do brincar no novo EF. Fomos, então, pesquisar como as professoras apresentam o novo currículo aos pais de alunos do primeiro ano, após dois anos de experiência neste novo modelo. Como explicam que a alfabetização não é o único objetivo no primeiro ano? Explicam a importância do brincar? Quais argumentos utilizados? Provocam mudanças nas avaliações dos pais sobre o desenvolvimento escolar de seus filhos? Acompanhamos uma turma de primeiro ano de escola municipal do interior de São Paulo. Os procedimentos metodológicos foram: observações do cotidiano escolar, análises das avaliações formais e informais feitas pela professora, análise documental de diversos materiais da escola e participação nas reuniões de Pais e Mestres. Nesta apresentação, focalizaremos os resultados obtidos a partir do acompanhamento de uma reunião de Pais e Mestres. O conteúdo desta reunião foi analisado qualitativamente, identificando (i) estrutura geral da reunião, (ii) abordagem da atividade lúdica pela professora, (iii) manifestações das mães. A pesquisa mostrou que a professora desta turma não brinca com seus alunos e não os incentiva a brincar e investe, prioritariamente, em atividades de alfabetização; justifica sua posição apontando que o governo não provê condições necessárias para implantação do novo currículo. As mães mostram-se essencialmente interessadas na alfabetização das crianças. Sendo assim, concluímos que esta professora não apresenta argumentos para explicar a importância das brincadeiras e não provoca mudanças na forma mais típica como os pais avaliam o desenvolvimento escolar de seus filhos. Palavras-chave: Ensino Fundamental de Nove Anos; Atividade lúdica; Relação Família Escola Área do Conhecimento: Grande Área do Conhecimento : Educação. Sub-Área do Conhecimento: Planejamento e Avaliação Educacional. Modalidade Iniciação FAPIC/Reitoria. 1. INTRODUÇÃO Este artigo tem como tema de interesse a implementação do Ensino Fundamental de 9 anos no Brasil. O ano de 2006 pode ser considerado um marco na história das políticas públicas educacionais no nosso país, porque nesta data o governo federal promulgou a lei 11.274, através da qual determinou oficialmente que o ensino obrigatório brasileiro passaria a ter 9 anos de duração e que as crianças deveriam ser matriculadas aos 6 anos nas escolas. Definiu, também, que os diferentes sistemas de ensino (estadual, municipal e particular) teriam até o ano de 2010 para implantá-lo. A análise de documentos oficiais [2, 3, 4, 5, 6] que apresentam a nova forma de conceber o Ensino Fundamental permite identificar que, com as decisões tomadas, pretende-se: (i) uniformizar o sistema de educação básica no país, em que coexistem escolas que oferecem ensino com duração de oito ou nove anos; (ii) equiparar o sistema educacional brasileiro ao de outros países do Mercosul; (iii) equiparar as oportunidades educacionais entre crianças pobres e as mais favorecidas; (iv) oportunizar um salto na qualidade da educação, incluindo a diminuição de vulnerabilidade das crianças a situações de risco, por

aumentar o tempo de permanência na escola e o sucesso no aprendizado; (v) assegurar que, ingressando mais cedo no sistema de ensino, as crianças prossigam estudando por mais tempo, alcançando maior nível de escolaridade, além, de (vi) contribuir para mudanças na estrutura e na cultura escolar através da construção de um novo currículo, principalmente para os anos iniciais de escolarização. Ou seja, não se pretende que a novidade do sistema de ensino se limite a atos burocráticos de matrículas de crianças mais novas nas escolas. A implementação do Ensino Fundamental de 9 anos exigirá grandes esforços para garantir esta construção de um novo currículo, principalmente porque pretende-se que ele inclua atividades que não são nada comuns nas escolas. Dentre estas atividades, as brincadeiras são destacadas nos documentos, como importantes para garantir um bom desenvolvimento, em seus aspectos físico, cognitivo, afetivo e social. De nosso ponto de vista, os excertos a seguir são suficientemente ilustrativos das diretrizes postas pelo governo para o novo Ensino Fundamental: Com base em pesquisas e experiências práticas, construiu-se uma representação envolvendo algumas das características das crianças de 6 anos que as distinguem de outras faixas etárias, sobretudo pela imaginação, a curiosidade, o movimento e o desejo de aprender aliados à sua forma privilegiada de conhecer o mundo por meio do brincar [...] Esse desenvolvimento possibilita a ela participar de jogos que envolvem regras e se apropriar de conhecimentos, valores e práticas sociais construídos na cultura. [4] [...] Nessa idade, em contato com diferentes formas de representação e sendo desafiada a delas fazer uso, a criança vai descobrindo e, progressivamente aprendendo a usar as múltiplas linguagens: gestual, corporal, plástica, oral, escrita, musical e, sobretudo aquela que lhe é mais peculiar e específica, a linguagem do faz-de-conta, ou seja, do brincar. [4] A atividade lúdica é considerada como uma atividade fundamental para o desenvolvimento infantil por teóricos como Vygotsky, Leontiev e Elkonin. Estes autores mostram que o desenvolvimento humano é resultado das relações [...] determinadas pelas condições históricas concretas, sociais, nas quais o homem se desenvolve e também pela maneira como a sua vida se forma nessas condições e como ele se apropria das objetivações já produzidas e transmitidas por intermédio da educação [8]. Para estes autores, a atividade lúdica e, de modo especial, os jogos de faz-de-conta, constituem uma destas objetivações, e sua apropriação por parte das crianças, através da educação, provoca transformações radicais nas possibilidades de desenvolvimento psicológico humano. Vygotsky [14] considera as brincadeiras de faz-de-conta como atividades fundamentais para criação de zonas de desenvolvimento proximal, destacando que através deste tipo de prática desenvolvem-se processos psicológicos de extrema importância na humanização do homem, enfatizando a capacidade de operar no plano simbólico, a apropriação de formas culturais de relações e ações sobre o mundo, a linguagem e a imaginação. Leontiev [9,10] nomeia esta modalidade de brincadeira como atividade principal da criança pré-escolar. Por atividade principal, o autor entende aquela em torno da qual se organizam as mais poderosas mudanças psicológicas ao longo da vida de cada sujeito. Colaborador próximo de Vygotsky, Elkonin [7] acrescenta contribuições importantes para a compreensão da constituição e desenvolvimento do brincar, especialmente por fazer exames minuciosos sobre a importância da participação dos adultos/mediadores mais experientes nesta atividade. Elkonin nos permite compreender que para as crianças brincarem e para desenvolverem suas capacidades nesta esfera de atividade humana é necessário muito mais do que tempo e espaço em sua agenda de atividades diárias, mostrando a importância de os educadores participarem das brincadeiras, com objetivos de desenvolvê-las. Desta maneira, as preocupações apresentadas nos documentos ganham sustentação e relevância quando são consideradas sob a fundamentação da abordagem Histórico-cultural sobre a infância. O desenvolvimento de uma pesquisa mais ampla, iniciada em 2006 e realizada em 8 turmas de 5 escolas municipais nos apresentou uma realidade bem diferente do que foi prescrito nos documentos como ideal para o cotidiano escolar das crianças de 6 anos. As dificuldades e os limites para garantir a presença e enriquecimento do brincar no cotidiano escolar foram analisadas em outros trabalhos por Rocha [11, 12]. Um recorte destes resultados, feito a partir das entrevistas com professoras, pais, mães, avós ou algum representante das famílias dos alunos de primeiros anos mostra que uma fonte das dificuldades foram as avaliações foram as avaliações das famílias sobre o currículo, valorizando positivamente atividades de alfabetização e cálculo e negativamente atividades lúdicas. O seguinte trecho de uma entrevista com 1 mãe é um bom exemplo destas avaliações:

Gisele: O primeiro dia que ele chegou da escola, eu perguntei: Cristian, o que que você fez hoje? Nada, mãe, eu brinquei. Como assim, eu brinquei? O que você fez no caderno?. Mãe, lá não tem caderno. Como que não tem caderno?. Ficou só brincando? Não está certo. Este trecho esclarece que em 2006 as professoras enfrentaram diretrizes e exigências que as deixava em conflito. Por um lado, os documentos oficiais (especialmente os do âmbito federal, mas também os escritos pelo Departamento Pedagógico da Secretaria de Educação do município) exigindo mudanças na cultura escolar, ao definir que o primeiro ano não se construa como uma mera antecipação da antiga 1ª série. Por outro lado, as famílias exigindo exatamente o contrário: que o primeiro ano fosse correspondente à primeira série, com todas as representações sobre o trabalho pedagógico, classicamente ligadas a ela (priorização de atividades de leitura, escrita e cálculo, investimentos sistemáticos em produções nos cadernos escolares, envio regular de tarefas para casa, avaliações da aprendizagem formalizadas em boletins, etc.). Thin [13] nomeia esse fenômeno como a lógica da eficácia, segundo a qual as famílias de classes populares vêem qualquer outra atividade que não sejam as específicas de trabalho escolar, como desnecessárias e inadequadas e, por isso, exercem pressões sobre o trabalho dos professores para que se ajustem às suas expectativas e demandas. Outras atividades - como as brincadeiras, por exemplo - não são consideradas, em geral, como potencializadoras de desenvolvimento e aprendizagem necessários. O sentido da escolarização para famílias de baixa renda está, fundamentalmente, nas possibilidades que a escola pode oferecer de aprendizagens específicas. As dúvidas sobre o que deveriam fazer com as crianças acompanhou as professoras ao longo de todo o ano de 2006, tendo dificuldades para explicarem a importância do brincar no novo EF. Entretanto, estes resultados referiam-se aos primeiros esforços de implementação do novo Ensino Fundamental e consideramos necessário prosseguir com o estudo para identificar se estas dificuldades foram superadas ou, pelo contrário, permaneceram como problemas e desafios para as escolas e para as professoras. Fomos, então, pesquisar como as professoras apresentam o novo currículo aos pais de alunos do primeiro ano, após dois anos de experiência neste novo modelo. Como explicam que a alfabetização não é o único objetivo no primeiro ano? Explicam a importância do brincar? Quais argumentos utilizados? Provocam mudanças nas avaliações dos pais sobre o desenvolvimento escolar de seus filhos? O presente artigo trata da pesquisa que, dentre outros objetivos, procurou produzir material que nos ajudasse a responder a estas perguntas. 2. MÉTODO A pesquisa foi desenvolvida por um conjunto de procedimentos: observações participantes do cotidiano escolar, análises das avaliações formais e informais realizadas pelas professoras sobre o desempenho escolar e as aprendizagens dos alunos, participação nas reuniões de pais e mestres e análise documental de diversos materiais da escola em foco (circulares enviadas às famílias, bilhetes nos cadernos de comunicação entre escola e famílias, e análise do Projeto Político-Pedagógico). Seguimos a perspectiva etnográfica de Beaud & Weber [1]. Destacaremos os resultados obtidos pelo acompanhamento de uma das reuniões de Pais e Mestres. Com o consentimento de todos os participantes da reunião, acompanhamos os trabalhos desenvolvidos. O registro foi feito no diário de campo, em função de a professora ter solicitado que não utilizássemos o gravador. Posteriormente, os registros foram digitados e analisados qualitativamente. identificando (i) estrutura geral da reunião, (ii) abordagem da atividade lúdica pela professora, (iii) manifestações das mães. 3. RESULTADOS A reunião de Pais e Mestres foi realizada na própria sala de aula. A estrutura geral deste encontro foi bastante formal. Do total de 28 alunos, à reunião compareceram 9 mãe dentre estas havia uma avó. A elas, foram designadas as carteiras usadas no dia-a-dia pelos alunos para se sentarem e a professora ocupou o lugar principal neste cenário. Durante toda a reunião ficou em pé, à frente das mães. Somente os adultos têm permissão para acompanhar o encontro. Uma mãe que levou seu filho (porque - alegou - não tinha com quem deixá-lo) solicitou permissão da professora para que a criança permanecesse na sala, mas isto não foi permitido. A professora iniciou a reunião escrevendo a pauta na lousa, colocando, em lista, as palavras: Administrativa, Uniforme, Horário, Entrada dos pais na escola, Higiene, Festa da família. No que se refere à abordagem da atividade lúdica, embora este tema não aparecesse na lista de

tópicos escritos na lousa, nem houvesse qualquer evidência de que se incluísse neles, talvez mobilizada pela presença da pesquisadora, a professora falou sobre o lugar que as brincadeiras ocupam no cotidiano escolar de sua turma. Destacamos alguns trechos, do que diz a professora, pela sua relevância. Professora Zélia: Escola de nove anos... O que é isso? São crianças de seis anos que estariam nas escolas de Educação Infantil e vieram para a escola de Ensino Fundamental. Eu não vi ninguém da Secretaria da Educação [vir aqui] para ver se a escola tinha estrutura. Na creche tem brinquedo, parque... Aqui não temos. Simplesmente, a partir de seis anos: no Ensino Fundamental. [...] Os professores devem brincar... Onde? Aqui, se eu for brincar, atrapalho oito salas. O dia da Educação Física e Artística eles brincam. Deixo para essas professoras brincarem. Na sala de aula, eu faço lição. Tem brinquedo, mas eu não coloco as crianças lá [refere-se à uma área externa, ao fundo da escola]. Tem pregos saindo para fora, tudo quebrado. Se acontecer algo a culpa é minha, vocês não vão reclamar para a Prefeitura... É para mim. Brincar aonde? Aqui na sala? Só com os brinquedos. De vez em quando! Olhem o espaço! Só quando afasto as carteiras. Olha o pátio! Aqui nessa escola o que mais tem são anjos guardando as crianças, porque: olha as colunas! As crianças brincam aí! Quando eu vejo, me dá até um frio na barriga. A professora fala, a seguir sobre características de sua personalidade e sobre como isto se manifesta na condução de seu trabalho pedagógico (rigidez quanto ao cumprimento das regras, censura de certas práticas familiares, etc). Depois, volta à atividade lúdica: Professora Zélia: Quando iniciou: [me perguntei] vou brincar onde? Então, vou ensinar a ler e escrever. Eles conheciam o alfabeto, então eu pensei: estou no lugar certo. Comecei com as famílias silábicas. [...]. Eu tenho que aproveitar. Eu tenho criança lendo para que? Eu vou parar e brincar? Vou para onde? [...]. Vou brincar onde? Não brinco, gosto de ensinar. Brincar é na Arte e Educação Física. [...] Se vocês ouvirem: crianças de 6 anos tem que brincar e eu não estou [brincando]... Porque não tem lugar para isso. Vocês devem cobrar do sistema [referindo-se à Secretaria Municipal de Educação]. Quando vocês vieram aqui conhecer a escola, conheceram o espaço físico? Ou foram direto para a secretaria? Então, agora temos que lutar, não podemos só reclamar. A professora finaliza: Professora Zélia: Se alguém está contra meu trabalho, vai cobrar da direção por que eu não brinco. E se vocês querem, lutem. Eu não vou ficar brava, porque não faço. Vocês têm que lutar para conseguir. Se ouvem do governo, [vão] cobrar: cadê o parque? Cadê os brinquedos? O destaque para a atividade lúdica ocupa, aproximadamente, 6 minutos, numa reunião com duração de 1 hora. Quanto às manifestações das mães, durante toda a fala da professora, apenas algumas fazem quatro intervenções. Três delas, demonstrando concordância com a professora (quanto à necessidade de se manter regras rígidas com as crianças, quanto à necessidade de as mães estarem atentas à higiene das crianças e quando a professora refere-se ao ritmo que imprime às produções das crianças). Apenas uma mãe pede uma orientação pedagógica sobre como deve proceder quando a filha não quer escrever o cabeçalho (tarefa de casa freqüente para as crianças desta turma. Nenhuma mãe se opôs à posição da professora quanto à atividade lúdica no contexto escolar. 4. DISCUSSÃO O acompanhamento da reunião nos permitiu perceber, que a experiência maior com o novo Ensino Fundamental não foi suficiente para que esta professora encontrasse bons argumentos para explicar às mães presentes a importância de outras atividades que não só as de alfabetização, as atividades lúdicas. A professora Zélia assume, claramente, que, embora reconheça a existência do discurso oficial sobre a importância das brincadeiras no Ensino Fundamental, não brinca com os alunos e não os incentiva a brincar. Duas linhas de argumentação são apresentadas por ela para justificar sua posição. A primeira, diz respeito aos limites das condições materiais para isso: ausência de espaço adequado (externo e dentro da sala de aula), ausência de brinquedos e jogos, precariedade e insegurança dos equipamentos de parque disponíveis, necessidade de respeito ao silêncio para o funcionamento das oito classes vizinhas da pequena área livre da escola, à frente das salas. A segunda linha de argumentação, menos explícita - mas nem por isso menos importante -, diz respeito ao que a professora assume como seu compromisso com a turma: ensinar a ler e a escrever. A professora Zélia diz Não brinco, gosto de ensinar e parece tranqüilizar-se em relação à sua opção quando

considera as habilidades cognitivas dos alunos, que ajudam-na a justificar-se: Quando iniciou: vou brincar onde? Então, vou ensinar a ler e escrever. Eles conheciam o alfabeto, então eu pensei: estou no lugar certo. De seu ponto de vista, o contexto adequado para Brincar é na Arte e Educação Física. A professora trata o assunto quase como uma questão da esfera jurídica e indica para os pais os espaços que, de seu ponto de vista, devem ser buscados, se quiserem fazer queixas ou denúncias: a Secretaria da Educação (também nomeada como sistema e como governo ), cujos representantes, segundo ela, não foram à escola para ver se a escola tinha estrutura. São, portanto, omissos, de seu ponto de vista. Mas, a professora também defende sua opção lembrando que os próprios pais talvez não tenham direito a reclamações já que, eles próprios Quando [...] vieram aqui conhecer a escola, conheceram o espaço físico? Ou foram direto para a Secretaria? o que, podemos supor, indica que para a professora Zélia os pais são co-responsáveis pela quase impossibilidade de oferecer para as crianças a oportunidade de outras atividades que não as propriamente escolares. Apesar da contundência do que fala, é importante destacar que a professora Zélia não parece completamente confortável em relação àquilo que, a partir de 2006, o governo o determinou para a vida das crianças de 6 anos. As formas pelas quais define o novo sistema de ensino dão pistas de que faz críticas às decisões oficiais: Escola de nove anos... O que é isso? São crianças de seis anos que estariam nas escolas de Educação Infantil e vieram para a escola de Ensino Fundamental. [...] Na creche tem brinquedo, parque... Aqui não temos. Simplesmente, a partir de seis anos: no Ensino Fundamental. Há, nestes trechos, importantes indicações de que a professora não tem uma posição radical de que as brincadeiras não sejam importantes para as crianças. O problema é que, tendo o governo definido que as crianças não estariam mais na Educação Infantil (onde, dá a impressão que da perspectiva da professora era onde deveriam estar os alunos menores) e não tendo o governo cuidado de criar as condições para que as práticas deste segmento educacional pudessem ser incorporadas ao Ensino Fundamental, a professora Zélia só vê como opção trabalhar conteúdos de primeira série no currículo desenvolvido em sua turma. É o que, para ela, lhe resta a fazer. Cabe destacar que o tema das brincadeiras ocupou um tempo bastante pequeno no desenrolar da reunião: aproximadamente 6 minutos. A professora dedicou o encontro com os pais muito mais para abordar outras questões: (i) referentes a atividades instrucionais e (ii) referentes a normas e regras da escola e das professoras. De nossa perspectiva, este fato é mais um elemento que contribui talvez de forma decisiva para que as expectativas dos pais permaneçam intactas em relação ao trabalho pedagógico a ser desenvolvido no primeiro ano letivo de seus filhos. A pesquisa mostrou,portanto, que a professora desta turma não brinca com seus alunos e não os incentiva a brincar e investe, prioritariamente, em atividades de alfabetização; justifica sua posição apontando que o governo não provê condições necessárias para implantação do novo currículo. As mães mostram-se essencialmente interessadas na alfabetização das crianças. Sendo assim, concluímos que esta professora não apresenta argumentos para explicar a importância das brincadeiras e não provoca mudanças na forma mais típica como os pais avaliam o desenvolvimento escolar de seus filhos. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para finalizar este trabalho, queremos salientar que sabemos que as análises sobre as reuniões de pais não são o único procedimento que nos permitirá apreender todas as situações em que a questão da construção do currículo é tematizada nas relações entre famílias e professoras de primeiro ano do Ensino Fundamental. Conforme indicamos, temos considerado também produtivo analisar a materialização destas relações através de observações participantes no cotidiano escolar e de análise documental (dos documentos indicados). O trabalho realizado sobre estas outras fontes de material empírico, articulado com o que foi possível compreender a partir das reuniões de Pais e Mestres, nos permite compor um quadro mais abrangente sobre o tema. Os resultados mostram que há uma valorização por parte da professora em avaliar as aprendizagens de leitura, escrita e comportamento. Para manter a organização e o domínio sobre a sala a professora passa a avaliar as brincadeiras de forma negativa, pois estas interrompem e atrapalham o desenvolvimento das atividades, desvalorizando e descartando as outras formas de aprendizagem que são possíveis quando a criança está inserida em uma atividade lúdica, tais como: a capacidade simbolizar, a apropriar-se do meio social em que está inserida e das relações e ações sociais, a linguagem e a imaginação. Os pais também compreendem a brincadeira como irrelevante valorizando a alfabetização. Esse fato causa-nos extrema preocupação, pois as professoras contribuem para a manutenção do pensar dos pais e responsáveis sobre as

brincadeiras infantis, cristalizando o pensamento da lógica da eficácia e ignorando a importância e as contribuições da atividade lúdica para os processos psicológicos no desenvolvimento infantil. Há que se pensar nas novas configurações do ensino brasileiro, no trabalho pedagógico realizado com estas crianças, principalmente no que se refere ao desenvolvimento infantil. REFERÊNCIAS [1] BEAUD, S.; WEBER, F.Guia para Pesquisa de Campo produzir e analisar dados etnográficos. Editora Vozes. Petrópolis. 2007. [2] BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Básica. Política Nacional de Educação Infantil: o direito das crianças de zero a seis anos à Educação. Brasília. 2003. [3] BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Ampliação do Ensino Fundamental para Nove Anos. Relatório do Programa. Brasília. 2004a. [4] BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Ampliação do Ensino Fundamental para Nove Anos. Relatório do Programa. Brasília. 2004b. [5] BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Ensino Fundamental de Nove Anos: orientações para a Inclusão da Criança de Seis Anos de Idade. Brasília. 2006a. [6] BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Ensino Fundamental de Nove Anos: orientações para a Inclusão da Criança de Seis Anos de Idade. Brasília. 2006b. [7] ELKONIN, D. B. Psicologia do Jogo. Martins Fontes: São Paulo. 1998. [8] FACCI, M. G. D. A periodização do desenvolvimento psicológico individual na perspectiva de Leontiev, Elkonin e Vigostski. Cadernos Cedes, Campinas, v. 24, pp.64-81. Disponível em: <http://www.scielo.br> Acessado em 16 de ago. 2009 [9] LEONTIEV, A. N. O Desenvolvimento do Psiquismo na Criança. In: Leontiev, A. N. O Desenvolvimento do Psiquismo. Lisboa: Horizonte Universitário. P.285-313. 1978. [10] LEONTIEV, A.N. Os Princípios Psicológicos da Brincadeira Pré-escolar. Vigotskii, L. S.; A.R. Luria; Leontiev, A.N. Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. São Paulo: Ícone. P.119-142. 1988. [11] ROCHA, M. S. P. M.L. O Ensino de Psicologia e a Educação Infantil: a nova política pública para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental e suas possíveis repercussões para o desenvolvimento psicológico infantil. ETD Educação Temática Digital, Campinas, v. 8, pp. 266-277,jun.2007. Disponível em: <http://143.106.58.55/revista/viewissue.php?id=2 3#,b.Dossiês,/b>. Acessado em 17 de ago. 2009. [12] ROCHA, M. S. P. M.L. A Atividade Lúdica, a Criança de 6 anos e o Ensino Fundamental. Artigo submetido para a Revista Psicologia Educacional e Escolar. Aguardando parecer. 2009. [13] THIN, D. Para uma análise das relações entre famílias populares e escola: confrontação entre lógicas socializadoras. Revista Brasileira de Educação. 32 (11). 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo>acessado em 14 de fev. 2009. [14] VYGOTSKY, L.S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes. 1994.