capítulo Medindo a Progressividade das Transferências



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Transcrição:

capítulo 20 Medindo a Progressividade das Transferências Rodolfo Hoffmann* 1 INTRODUÇÃO A discussão sobre a melhor forma de cobrar imposto foi um tema básico dos economistas clássicos. John Stuart Mill, por exemplo, em obra publicada em 1848 discute extensamente a tributação progressiva que, conforme suas palavras, consiste em cobrar uma percentagem maior sobre uma quantia maior. Se o imposto t for uma função da renda inicial x, ele será estritamente progressivo se, para todo x, (1) e (fracamente) progressivo se 1 * Professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (IE/Unicamp), com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O autor agradece a colaboração de Fernando Gaiger Silveira e de Rodrigo Octávio Orair. 1 Essa apresentação dos conceitos e das medidas de progressividade de um tributo ou de um benefício baseia-se em Lambert (2001).. (2) Indiquemos a renda final como. (3) Seja a ordenada da curva de Lorenz da distribuição de x, e o respectivo índice de Gini. Analogamente, sejam e as ordenadas das curvas de concentração de t e z, obedecendo à ordenação conforme valores crescentes de x, e sejam e as respectivas razões de concentração. Como, a curva de Lorenz ( ) ocupa uma posição entre as curvas de concentração de z e t. Desigualdade de Renda no Brasil: uma análise da queda recente 179

O efeito de um imposto estritamente progressivo pode ser decomposto em duas etapas: a) cobrança de um imposto proporcional ( t/x constante) que gere a mesma arrecadação total; b) transferências progressivas (tirando-se mais dos ricos e transferindo para pessoas relativamente pobres). A etapa (a) não altera a posição da curva de Lorenz, e a (b) produz o caráter progressivo do resultado final fazendo que se tenha e. O índice de progressividade de Kakwani é. (4) O índice de progressividade de Reynolds-Smolensky (Lambert, 2001, p. 207) é. (5) Lambert (2001) apresenta várias outras medidas de progressividade. Consideraremos aqui apenas o índice de Suits (1977), que pode ser definido como com p indicando a abscissa da curva de Lorenz. (6) Considerando-se t como uma função contínua da renda inicial (x), se o imposto marginal (dt/dx) permanecer entre 0 e 1 a ordenação de x, t e z será a mesma, e, conseqüentemente, as razões de concentração coincidirão com os índices de Gini da respectiva variável; isto é: C T =G T e C Z =G Z. Nesse caso, o índice de progressividade de Kakwani mostra em quanto o índice de Gini do imposto supera o índice de Gini da renda inicial, e o índice de Reynolds-Smolensky mostra a redução do índice de Gini quando se passa da renda inicial para a renda final. As regras de um imposto tipicamente progressivo como o imposto sobre a renda são feitas de maneira que a ordenação das rendas finais (z) seja igual à ordenação das rendas iniciais (x). Talvez isso explique o fato de a literatura sobre medidas de progressividade de tributos ter dado pouca atenção à questão da possível reordenação das rendas, isto é, à possibilidade de a ordenação das rendas finais ser diferente da ordenação das rendas iniciais. 2 A tradição de se considerar sempre a ordenação conforme a renda inicial parece ter sido incorporada 2 Somente depois de ter enviado esse capítulo aos organizadores do livro tomei conhecimento de trabalhos de Lerman e Yitzhaki (1985 e 1995), que discutem os efeitos da reordenação antecipando as principais questões metodológicas abordadas adiante. 180 Medindo a Progressividade das Transferências

à análise do caráter progressivo, ou regressivo, de um benefício (uma transferência do governo para as pessoas). Mas as aposentadorias causam uma enorme reordenação das rendas, o que torna importante discutir melhor qual ordenação deve ser adotada ao se calcular uma medida de progressividade. Na próxima seção deste estudo será revisto, sumariamente, o conceito de razão de concentração, assim como a correspondente decomposição do índice de Gini de uma distribuição. Na terceira seção proporemos uma modificação do índice de progressividade de Kakwani, de maneira que respeite a ordenação da renda final, e não a ordenação da renda inicial. Na quarta seção serão analisadas as medidas de progressividade de um benefício, as quais serão aplicadas, na quinta seção, aos dados sobre as aposentadorias e as pensões oficiais no Brasil. A sexta seção destina-se às considerações finais. 2 A DECOMPOSIÇÃO DO ÍNDICE DE GINI CONFORME PARCELAS DA RENDA Consideremos que a renda final está ordenada de maneira que. (7) O índice de Gini dessa distribuição pode ser calculado por meio da expressão ou com. Admitamos que a renda z i seja formada por k parcelas:. (10) (8) (9) Desigualdade de Renda no Brasil: uma análise da queda recente 181

A média da h-ésima parcela é (11) e a respectiva participação na renda total é. (12) Substituindo (10) em (9) obtemos ou. (13) Por analogia com (9), podemos definir a razão de concentração da h-ésima parcela como. (14) Em o asterisco destina-se a lembrar que essas razões de concentração são definidas com base na ordenação conforme a renda final, ao passo que as razões de concentração usadas na seção anterior são definidas considerando-se a ordenação da renda inicial (antes de subtrair o imposto). De (13) e de (14), segue-se que. (15) A última expressão em (14) mostra que a razão de concentração é proporcional à co-variância entre as posições de ordem i e as rendas relativas. Isso demonstra que a razão de concentração não é afetada pela troca de sinal da parcela, uma vez que as rendas relativas permanecerão as mesmas (dada a troca simultânea de sinal do numerador e do denominador). Pode-se verificar que. (16) 182 Medindo a Progressividade das Transferências

3 UMA MODIFICAÇÃO DO ÍNDICE DE PROGRESSIVIDADE DE KAKWANI Relembremos a simbologia usada na primeira seção, em que x é a renda inicial; t o imposto pago; e z = x t a renda final. Então, considerando-se a ordenação conforme valores de x, de acordo com (15) temos (17) com g indicando a relação entre o total do imposto e o total de x, isto é,. (18) De (17), segue-se que. (19) Subtraindo dos dois membros obtemos. (20) Subtraindo G Z dos dois membros, e lembrando a definição do índice de progressividade de Kakwani, conforme a expressão (4) teremos 3 Posição já defendida por Lerman e Yitzhaki (1995).. (21) Essa expressão mostra como a mudança no índice de Gini decorrente do imposto pode ser decomposta em uma parcela proporcional ao índice de progressividade de Kakwani e um efeito da reordenação. Se não houver reordenação das rendas em razão do imposto, C Z = G Z e a mudança no índice de Gini se reduz à primeira parcela. Se o objetivo da análise é compreender o que determina a desigualdade da renda disponível (ou renda final) z = x t, devemos iniciar o procedimento algébrico com uma expressão para G Z, o que significa priorizar a ordenação conforme os valores de z, e não conforme valores de x. 3 Desigualdade de Renda no Brasil: uma análise da queda recente 183

A partir de (18) é fácil verificar que (22) e. (23) Usando o símbolo para indicar as razões de concentração baseadas na ordenação conforme valores da renda final z, aplicando (15) à soma algébrica z = x t, e lembrando (22) e (23), obtemos (24) ou. (25) Trocando o sinal dessa expressão e somando G X aos dois membros obtemos Definimos o índice de Kakwani modificado como De (26) e (27) segue-se que. (26). (27). (28) Da mesma maneira que (21), essa expressão mostra como a mudança no índice de Gini é composta por um termo associado a uma medida de progressividade do imposto e um efeito puro de reordenação. Considerando a substituição da ordenação conforme x pela ordenação conforme z, a partir de (5) podemos definir, analogamente, o índice de Reynolds-Smolensky modificado como. (29) Sendo a ordenada da curva de Lorenz de z, e a ordenada da curva de concentração de t, considerando-se a ordenação 184 Medindo a Progressividade das Transferências

conforme valores de z o índice de Suits modificado é. (30) 4 PROGRESSIVIDADE DE UM BENEFÍCIO Lambert (2001) considera um componente da renda (como t) progressivo se sua razão média (t/x) cresce com x, e regressivo em caso contrário. Dessa maneira, um benefício (ou transferência do governo) b é regressivo se para todo x. Entretanto, lembrando que um benefício corresponde a um imposto negativo, é razoável, por analogia com (2), considerar que um benefício é progressivo se ou para todo x. (31) Um benefício progressivo contribui para reduzir a desigualdade, 4 por ser proporcionalmente maior para os relativamente pobres. Dados a renda inicial x e um benefício b, a renda final será z= x +b. Então x = z b. (32) 4 Para Lambert (2001), um benefício regressivo é que contribui para reduzir a desigualdade. Esse autor reconhece que a terminologia por ele adotada enfrenta resistência em razão da longa tradição dos estudos sobre tributos, nos quais a redução da desigualdade é associada à progressividade do imposto. É necessário lembrar, também, que os termos progressivo e regressivo estão diretamente associados à idéia de menor e de maior desigualdade, respectivamente, quando usamos os conceitos de transferência regressiva ou progressiva de renda para enunciar a condição de Pigou-Dalton. Indiquemos por da renda inicial, isto é, Segue-se que a relação entre o total de benefícios e o total. (33). (34) De (15) e (32), lembrando (33) e (34) obtemos. (35) Cabe ressaltar que estamos utilizando razões de concentração calculadas com base na ordenação conforme o valor da renda inicial x. Desigualdade de Renda no Brasil: uma análise da queda recente 185

De (35) segue-se que. Adicionando aos dois membros, obtemos. (36) O índice de progressividade de um benefício de Kakwani é definido como 5 (Lambert, 2001, p. 270):. (37) Substituindo (37) em (36), e subtraindo G Z dos dois membros, obtemos. (38) Essa expressão mostra como a mudança no índice de Gini decorrente do recebimento da transferência b depende do índice de progressividade de Kakwani e de um efeito de reordenação. Limitamo-nos a apresentar duas outras medidas de progressividade de um benefício: 6 o índice de Reynolds-Smolensky, e o índice de Suits, (39) (40) com representando a ordenada da curva de concentração do benefício b, respeitada a ordenação conforme os valores da renda inicial x. Assim como no caso dos tributos, se o objetivo é compreender a desigualdade da distribuição da renda final (z = x + b) devemos obter, logo no início, uma expressão para G Z ; o que significa priorizar a ordenação conforme os valores de z (e não conforme valores de x). Lembremos que as razões de concentração baseadas na ordenação conforme a renda final são representadas por. 5 Conforme Lambert (2001, p. 270), substituindo regressividade por progressividade. 6 Conforme Lambert (2001, p. 270-272), mas substituindo regressividade por progressividade. 186 Medindo a Progressividade das Transferências

De (33) obtemos (41) e. (42) Como z = x + b, utilizando (15) e lembrando (41) e (42) obtemos ou (43). (44) Trocando o sinal, e somando G X aos dois termos, obtemos. (45) Para um benefício, definimos o índice de progressividade de Kakwani modificado como. (46) De (45) e (46) segue-se que. (47) Essa expressão mostra, mais uma vez, como a mudança no índice de Gini decorrente do benefício é composta por uma parcela proporcional a um índice de progressividade do benefício e um efeito de reordenação. Analogamente, podemos definir o índice de progressividade de um benefício de Reynolds-Smolensky modificado como e o índice de progressividade de Suits modificado como (48) (49) com representando a ordenada da curva de concentração do benefício b, considerando a ordenação conforme os valores da renda final z. Desigualdade de Renda no Brasil: uma análise da queda recente 187

É interessante notar que há, em todos os casos analisados, uma relação de proporcionalidade entre o índice de Reynolds-Smolensky e o índice de Kakwani. Para as medidas de progressividade de um tributo, de (5) e (21) obtemos. (50) Para as medidas de progressividade de um tributo modificadas, de (28) e (29) obtemos. (51) Para as medidas de progressividade de um benefício, de (38) e (39) obtemos. (52) Para as medidas de progressividade de um benefício modificadas, de (47) e (48) obtemos. (53) Mostraremos, em seguida, que os índices de progressividade e são proporcionais à intensidade da variação do índice de Gini decorrente de um aumento proporcional arbitrariamente pequeno no valor do benefício. Inicialmente, de acordo com (43) o índice de Gini da renda final é. (54) O novo valor dos benefícios é (55) com, em que é positivo e arbitrariamente pequeno. Admitamos que o pequeno acréscimo nos valores do benefício não cause reordenação das rendas finais, de maneira que as razões de concentração e continuem as mesmas. É claro que, havendo alguma reordenação, os resultados a seguir são apenas aproximadamente válidos. De (33) e (54) segue-se que o novo valor de é. (56) 188 Medindo a Progressividade das Transferências

Então o novo valor do índice de Gini da renda final é e, lembrando (54), a variação de é. (57) Após alguma manipulação algébrica obtemos. (58) A intensidade da variação do índice de Gini decorrente do aumento proporcional do benefício pode ser definida como (59) ou, lembrando (46), (60) e, lembrando (53),. (61) Tais resultados mostram que os índices e são instrumentos adequados para avaliar o efeito, sobre o índice de Gini, de um pequeno aumento proporcional no valor do benefício ou transferência do governo. O efeito é proporcional a esses índices de progressividade, com sinal contrário. É interessante considerar uma visão abrangente dos resultados analisados anteriormente. Vimos que, quando a renda final zi é formada por k parcelas ver expressão (10), o índice de Gini pode ser decomposto em k parcelas, conforme a expressão (15), a qual pode ser colocada na seguinte forma:. (62) Desigualdade de Renda no Brasil: uma análise da queda recente 189

Analogamente a (59), pode-se verificar que a intensidade da variação de G Z decorrente de um pequeno aumento proporcional na parcela z h é dada por, que indica a capacidade de essa parcela contribuir para aumentar ou reduzir a desigualdade. 7 Note-se que é proporcional às medidas de progressividade modificadas,, e, bastando, para isso, considerar o imposto como uma parcela negativa da renda final. A expressão (62) mostra que a capacidade redutora de desigualdade (ou medida modificada de progressividade) é, em geral, positiva para algumas parcelas e negativa para outras, de maneira que a soma seja nula. É claro que essa análise pode ser facilmente estendida para os índices de Mehran e de Piesch, para os quais são válidas expressões semelhantes a (62) ver Hoffmann (2004). 5 NO BRASIL, APOSENTADORIAS E PENSÕES CONTRIBUEM PARA REDUZIR A DESIGUALDADE? Nesta seção utilizaremos dados da Pesquisa Nacional por Amostras Domiciliares (Pnad) de 2004 e de 2005 para analisar a progressividade das aposentadorias e das pensões pagas pelo governo ou por instituto de previdência pública. Essa variável, indicada por AP1, é uma parcela do Rendimento Domiciliar per Capita (RDPC). Para permitir a comparação com resultados de outros anos, exclui-se a área rural da antiga Região Norte. A variável AP1 será analisada como um benefício ou uma transferência do governo, desconsiderando-se, para tanto, a associação dela com contribuições previamente feitas pelos beneficiados (por parte deles, pelo menos). De acordo com a simbologia utilizada nas seções anteriores, a renda inicial é ; o benefício b = AP1; e a renda final z = RDPC. A tabela 1 mostra que os valores dos índices de Gini, razões de concentração e medidas de progressividade de AP1 são muito semelhantes em 2004 e em 2005. Assim, limitar-nos-emos, aqui, a discutir mais pormenorizadamente apenas os resultados de 2005. Verifica-se que o índice de Gini da renda inicial (excluindo-se AP1) é substancialmente maior que o índice de Gini da renda final:. 7 Resultado já deduzido por Lerman e Yitzhaki (1985). 190 Medindo a Progressividade das Transferências

De acordo com (38), respeitando-se a ordenação das rendas iniciais essa mudança no índice de Gini pode ser decomposta em duas partes: uma delas associada à progressividade de AP1, e, a outra, à reordenação,,. TABELA 1 Algumas características da distribuição do Rendimento Domiciliar per Capita (RDPC) e indicadores da concentração e da progressividade das aposentadorias e pensões oficiais (AP1) Brasil 1 2004 e 2005 Estatística 2004 2005 Número de domicílios (1.000) 49.740 51.308 Número de pessoas (1.000) 173.454 176.995 Média do RDPC (R$ correntes) 394,42 440,58 Média da renda inicial (R$ correntes) 322,93 360,55 Média de AP1 (R$ correntes) 71,49 80,03 AP1 como fração do RDPC [β (1+β )] 0,1813 0,1816 AP1 como fração da renda inicial (β) 0,2214 0,2220 G Z (índice de Gini da renda final) 0,5687 0,5661 G X (índice de Gini da renda inicial) 0,6062 0,6062 G B (índice de Gini de AP1) 0,8752 0,8679 Razões de concentração com ordenação conforme renda inicial C Z 0,4746 0,4764 C B 0,1199 0,1083 (índice de Kakwani) 0,7261 0,7145 RS (índice de Reynolds-Smolensky) 0,1316 0,1298 S (índice de Suits) 0,5759 0,5704 Razões de concentração com ordenação conforme RDPC C X * 0,5626 0,5619 C B * 0,5964 0,5850 (índice de Kakwani modificado) 0,0276 0,0190 RS (índice de Reynolds-Smolensky modificado) 0,0061 0,0042 S (índice de Suits modificado) 0,0214 0,0026 Nota: 1 Exclusive área rural da antiga Região Norte. Todos esses resultados dependem de um índice de Gini (G X ) e de razões de concentração (C B e C Z ) calculados em se considerando uma ordenação hipotética. A ordenação efetivamente observada, baseada na renda final, é muito diferente. Consideremos, por exemplo, um Desigualdade de Renda no Brasil: uma análise da queda recente 191

domicílio com um único morador, cujo único rendimento é uma aposentadoria, ou uma pensão do INSS, no valor de um salário mínimo (R$ 300,00 em setembro de 2005). De acordo com os dados da Pnad, o RDPC dessa pessoa está bem acima do mediano, que é de R$ 240,00, e o valor da correspondente renda inicial (sem AP1) é igual a zero. 8 É claro que sem a aposentadoria essa pessoa não poderia estar morando isoladamente, sem nenhum outro rendimento. Se utilizarmos a expressão (47), a diferença G X G Z = 0,0401 pode, novamente, ser decomposta tanto em uma parte associada à progressividade de AP1:, como em uma outra associada à reordenação;. Cabe ressaltar que a primeira parcela é calculada em se considerando sempre a ordenação conforme a renda final, mostrando, apropriadamente, que AP1 está contribuindo para aumentar a desigualdade. De acordo com (60) temos mostrando que um pequeno aumento proporcional em AP1 causaria um ligeiro acréscimo no índice de Gini da renda final. 9 O efeito de AP1 no sentido de promover maior desigualdade certamente está superestimado, pois, em razão da natureza desse tipo de rendimento, seu grau de subdeclaração na Pnad é menor do que o das demais parcelas do RDPC. É claro que a mudança de resultados em virtude do uso de diferentes ordenações (alterando-se até o sinal do índice de progressividade) é grande, no caso de AP1, por tratar-se de uma parcela importante da renda com um valor mínimo substancial. Consideremos, como outro exemplo, o valor do rendimento de juros, de dividendos e de outros rendimentos, os quais incluem transferências como o do Programa Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Essa parcela, que denominamos JUR, representa 1,77% da renda total em 2005. O índice de Gini excluindo JUR é 0,5737, de maneira que a sua inclusão reduz o índice em. 8 Nada menos do que 3,27% das pessoas têm RDPC igual a R$ 300,00, de acordo com a Pnad de 2005. Com a RDPC em ordem crescente, os valores são iguais a R$ 300,00 desde o ponto em que a proporção acumulada da população é igual a 57,32%, até o ponto em que essa proporção é de 60,58%. 9 Usando os dados individuais da Pnad, e simulando um acréscimo proporcional arbitrariamente pequeno em AP1, obtivemos um efeito em G Z de intensidade 0,0040. A diferença em relação ao resultado obtido com a expressão (60) deve-se a reordenações. Simulando-se uma pequena redução proporcional, e um pequeno aumento proporcional em AP1, a intensidade média do efeito no índice de Gini (G Z ) é 0,0035. 192 Medindo a Progressividade das Transferências

Para essa parcela obtivemos e, ambos positivos. Na decomposição da mudança do índice de Gini de acordo com (38), os dois termos no segundo membro são e e, de acordo com (47), e. Nesse caso, as parcelas associadas à reordenação são bem menores que aquelas associadas à progressividade de JUR, as quais são ambas positivas. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS As medidas usuais de progressividade de um imposto ou de um benefício são baseadas na ordenação conforme a renda inicial. Se a inclusão, ou não, da parcela analisada causa grande reordenação das rendas, a ordenação inicial será fictícia. Propomos o uso de medidas de progressividade que respeitem a ordenação conforme a renda final, que é a efetivamente observada. Mostramos que a medida de progressividade que respeita a ordenação conforme a renda final é proporcional à intensidade da redução do índice de Gini decorrente de um aumento proporcional arbitrariamente pequeno no valor do benefício. As aposentadorias e pensões oficiais no Brasil constituem um exemplo típico de parcela do rendimento domiciliar per capita cuja exclusão causa mudanças drásticas na ordenação das pessoas conforme sua renda. Dependendo da ordenação que é respeitada, até mesmo o sinal dos índices de progressividade muda. Embora tenha sido desenvolvida em se considerando sempre o índice de Gini, a análise se aplica, também, aos índices de Mehran e de Piesch. A discussão sobre as medidas de progressividade desenvolvida neste trabalho está relacionada com as divergências na avaliação da contribuição das aposentadorias e das pensões para a desigualdade no Desigualdade de Renda no Brasil: uma análise da queda recente 193

Brasil por meio da metodologia de decomposição do índice de Gini conforme parcelas do rendimento, ou por meio da metodologia de simulações contrafactuais (ver Ipea, 2006, particularmente as seções 5.1 e 5.3; e Hoffmann (capítulo18 deste volume). Ressaltamos a importância das reordenações associadas à inclusão, ou à exclusão, das aposentadorias e das pensões. É claro que o esclarecimento da questão exige uma comparação pormenorizada das duas metodologias, a qual não foi feita neste estudo. 194 Medindo a Progressividade das Transferências

7 REFERÊNCIAS HOFFMANN, R. Decomposition of Mehran and Piesch inequality measures by factor components and their application to the distribution of per capita household income in Brazil. Brazilian Review of Econometrics, v. 24, n. 1. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Econometria (SBE), p. 149-171, May 2004.. Transferências de renda e a redução da desigualdade no Brasil e em cinco regiões, entre 1997 e 2005. (Artigo publicado neste volume). INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Sobre a recente queda da desigualdade de renda no Brasil. Brasília: Ipea, ago. 2006. (Nota Técnica). Disponível em: <http://www. ipea.gov.br>. Acesso em: nov. 2006. LAMBERT, P. J. The distribution and redistribution of income. 3. ed. Manchester: Manchester University Press, 2001. LERMAN, R. I.; YITZHAKI, S. Income inequality effects by income source: a new approach and applications to the United States. The Review of Economics and Statistics, v. 67, n. 1, p. 151-156, Feb. 1985.. Changing ranks and the inequality impacts of taxes and transfers. National Tax Journal, v. 48, n. 1, p. 45-59, Mar. 1995. SUITS, D. B. Measurement of tax progressivity. American Economic Review, v. 67, n. 4, p. 747-752, Sept. 1977. Desigualdade de Renda no Brasil: uma análise da queda recente 195