A CENTRALIDADE DA FAMÍLIA NAS POLÍTICAS SOCIAIS DE ATENÇÃO BÁSICA: qual projeto e direção do trabalho social com famílias?



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Transcrição:

A CENTRALIDADE DA FAMÍLIA NAS POLÍTICAS SOCIAIS DE ATENÇÃO BÁSICA: qual projeto e direção do trabalho social com famílias? Izabel Herika Gomes Matias Cronemberger 1 Solange Maria Teixeira 2 RESUMO O presente artigo visa problematizar a questão da centralidade da família no contexto das políticas sociais no Brasil, em especial na política de Saúde e de Assistência Social, desenvolvida na atenção básica, através do Programa Saúde da Família e Centros de Referencia da Assistência Social. As análises buscam identificar os projetos societários que orientam essa centralidade da família e as tendências do trabalho social com famílias conforme a prevalência desses projetos. Palavras chave: Família, Política Social, Trabalho Social. ABSTRACT This article intends to discuss the question of the centrality of family in the context of social policies in Brazil, especially in the politics of Health and Social Assistance, developed in primary care through the Family Health Program and Centers of Social Assistance Reference. The analysis sought to identify the underlying societal project that centrality of the family and the tendencies of social work with families as the prevalence of these projects. Keywords: Family, Social Policy, Social Work. I INTRODUÇÃO Historicamente, a família tem sido definida a partir de suas funções. Desde o Brasil Colonial a família exerce funções políticas, econômicas e de reprodução social, além da reprodução biológica e cultural até hoje a ela associadas, conforme destacam Freyre (1994) e Duarte (1996). 1 Estudante de Pós-graduação. Universidade Federal do Piauí (UFPI). izabel_herika@hotmail.com 2 Doutor. Universidade Federal do Piauí (UFPI). solangemteixeira@hotmail.com

Na contemporaneidade, a família passa a ser valorizada como importante espaço de proteção dos indivíduos, (re)emergindo como lócus privilegiado e adequado ao desenvolvimento humano e social, recaindo sobre ela um conjunto de atribuições num contexto de grave crise econômica, e fiscal do Estado e precarização dos serviços públicos, numa clara redução das responsabilidades do Estado. O reconhecimento legal da importância da família e a expectativa desta prover a proteção social de seus membros vão gerar a implantação de vários programas que apostam na centralidade das ações na família. Contudo, estudos (Mioto 2004, Fonseca, 2002) vêm mostrando que o reconhecimento legal e a implementação destes não significam rupturas com práticas assistencialistas, que ao longo de décadas, penalizaram e responsabilizaram a família pelos problemas vivenciados. Este debate vem sendo potencializado à medida que a família também passa a ocupar um lugar central enquanto destinatário das políticas públicas. Exemplo disso é a ênfase dada à família no âmbito da Política de Saúde, através do fortalecimento do Programa Saúde da Família PSF e da proposta de implantação do Sistema Único da Assistência Social SUAS. Nesta perspectiva, visamos analisar em que direção se dá essa centralidade da família nas políticas sociais, numa dimensão de responsabilização ou de proteção social destas com vista a garantir o direito à vida familiar, bem como as tendências possíveis do trabalho social com famílias caso prevaleça um desses projetos. II A FAMILIA NA PROTEÇAO SOCIAL BÁSICA A Política de Proteção Social no Brasil se consubstancia no formato de Seguridade Social a partir da Constituição Federal de 1988, o qual parte da fixação de um conjunto de necessidades que são considerados como básicos em uma sociedade. A Seguridade Social Brasileira compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à Saúde, à Previdência e à Assistência Social (BRASIL, 1988). A Saúde, conforme instituído na Carta Magna é um direito de todos e dever do Estado, que deve ser assegurado ao individuo mediante ações que visem reduzir os riscos de doença e seus agravos. A Assistência Social tem como objetivos a proteção à

família, maternidade, à infância, à adolescência e à velhice e compreende também que deve ser realizada de forma integrada às políticas setoriais, visando o enfrentamento da pobreza, à garantia dos mínimos sociais, ao provimento de condições para atender contingências sociais e à universalização dos direitos sociais (LOAS/ 1993). A Lei Orgânica da Assistência Social elege a família como um dos focos desta política pública. A proteção à família aparece, assim, como eixo importante a ser considerado pela política setorial da Assistência Social. No que se refere à Política da Saúde, a família aparece como categoria importante a partir do estabelecimento de estratégias de saúde preventiva com o PSF. Esse Programa reorienta o foco da saúde, que passa da doença de um indivíduo, em geral entendido fora de seu contexto social e econômico, para a família. Mioto (2004) destaca que a incorporação da família nas políticas públicas se faz de forma bastante tensionada entre propostas distintas, vinculadas a projetos também distintos em termos de proteção social e societário. Identifica duas grandes tendências nesse processo de incorporação: uma denominada familista e outra protetiva. A tendência familista traz a centralidade da família, com destaque para a capacidade de cuidado e proteção, denominada familista por Esping-Andersen (1999). Nessa as unidades familiares devem assumir a principal responsabilidade pelo bem-estar de seus membros, enquanto canal natural de proteção social, junto com o Estado, mercado e organizações da sociedade civil. Já a segunda, a tendência protetiva, defende que a capacidade de cuidados e proteção da família está diretamente relacionada à proteção que lhe é garantida através das políticas públicas, como instância a ser cuidada e protegida, enfatizando a responsabilidade pública. Resta-nos analisar em qual projeto societário se coloca a centralidade da família na política social brasileira, ou se é possível analisá-los de forma antagônica, no contexto atual do Estado brasileiro. Na contemporaneidade, a família é definida, conforme Mioto (1997, p.120), como um núcleo de pessoas que convivem em determinado lugar, durante um lapso de tempo mais ou menos longo e que se acham unidas, ou não, por laços consanguíneos, ou ainda, como destaca a mesma autora: estamos diante de uma família quando encontramos um espaço constituído de pessoas que se empenhem uma com as outras,

de modo contínuo, estável e não-casual [...] quando subsiste um empenho real entre as diversas gerações. (2004, p. 14-15). Trata-se de uma visão ampliada e atual de família, posto que as pessoas que convivem em uma ligação afetiva duradoura podem ser um homem e uma mulher e seus filhos biológicos, mas também um casal constituído por pessoas do mesmo sexo, ou apenas a mulher com seus filhos legítimos ou adotados, ou outra infinidade de arranjos. O que dá unidade a essa síntese de múltiplas determinações, que permite usar o termo família, apesar da diversidade que a comporta, da pluralidade de formas, experiências e significados, é o fato de ser o espaço privilegiado da história da humanidade, onde aprendemos a ser e a conviver (MIOTO, 2004). Para Kaloustian e Ferrari (2008) é a família um espaço privilegiado de socialização, de vivência das primeiras experiências, de busca coletiva de sobrevivência, de proteção aos filhos e demais membros, quem propicia os aportes afetivos, onde são absorvidos os valores éticos e humanitários, e se aprofundam os laços de solidariedade. Estes aportes conceituais sobre família têm orientado as atuais Políticas de Saúde e Assistência Social, na atenção básica. O que pode ser analisado como um avanço nestas políticas considerando as históricas concepções e visões estereotipadas de família que prevaleceram em épocas anteriores. Na Política de Saúde após décadas de privilégio à atenção hospitalar, herança da medicina previdenciária, em que a alocação de recursos federais em estados e municípios se dava com base principalmente na produção de serviços e na capacidade instalada, os esforços, programas e investimentos públicos passaram a se concentrar na atenção básica que: [...] caracteriza-se por um conjunto de ações que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde, [...] A Atenção Básica considera o sujeito em sua singularidade, na complexidade, na integralidade e na inserção sóciocultural e busca a promoção de sua saúde, a prevenção e tratamento de doenças e a redução de danos ou de sofrimentos que possam comprometer suas possibilidades de viver de modo saudável. A Atenção Básica tem a Saúde da Família como estratégia prioritária para sua organização de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde. (BRASIL, 1998). Como parte da Atenção Básica foi implantado no Brasil, em 1994, o PSF. Esse constituiu a primeira política específica de atenção básica de abrangência nacional

formulada no país. Desde a época de seu lançamento foi creditado ao PSF a possibilidade de transformar o modelo assistencial anterior, hospitalocêntrico, de caráter exclusivamente centrado na doença, para o desenvolvimento de práticas gerenciais e sanitárias, democráticas e participativas, sob a forma de trabalho em equipes, dirigidas às populações, famílias, comunidades de territórios delimitados. Marques (2003) assevera que devido as suas características, o PSF constituiu-se como eixo estruturante da atenção básica tendo a responsabilidade de ser a porta de entrada para o Sistema Único de Saúde. No PSF a família deve ser entendida de forma integral e em seu espaço social, ou seja, a pessoa deve ser abordada em seu contexto socioeconômico e cultural, e reconhecida como sujeito social portadora de autonomia, reconhecendo que é na família que ocorrem interações e conflitos que influenciam diretamente na saúde das pessoas (BRASIL, 2001). Em 1999, o PSF deixou de ser entendido como um Programa e passou a ser considerado pelo Ministério da Saúde, como uma estratégia estruturante dos sistemas municipais de saúde, com vistas a reorientar o modelo assistencial e imprimir uma nova dinâmica na organização dos serviços e ações de saúde (SOUSA, 2002). A Estratégia de Saúde da Família ESF incorpora os princípios do SUS (integralidade, universalidade, eqüidade e participação social) e se aproxima dos pressupostos da atenção primária em saúde, dimensionados por Starfield (2002): primeiro contato, longitudinalidade, abrangência do cuidado, coordenação e orientação à família e às comunidades. Pelos elementos e princípios levantados do PSF visa à atenção integral a família, portanto, trata à família como um sujeito de direitos e proteção, todavia, como se dão as orientações à família, numa perspectiva de aumentar suas responsabilidades com a saúde de seus membros, inclusive do cuidado e trato da doença em casa, para evitar superlotação dos hospitais? Ou de fato, oferecendo serviços domiciliares de trato à saúde da família? Só a investigação poderá indicar essa direção, que propomos a realizar durante a pesquisa. Na Política de Assistência Social, assemelhando-se em parte à operacionalização da Política de Saúde, dentro da sistematização dos eixos estruturantes da gestão do SUAS, destacam-se: a matricialidade sócio-familiar e a territorialização. Em conformidade com esses eixos, a assistência social orienta-se pela primazia à atenção às famílias e seus membros, a partir do seu território de vivência, com prioridades àquelas com registro

de fragilidades, vulnerabilidades e presença de vitimização entre seus membros (NOB/SUAS, 2005, p.28). O principal programa de proteção social básica do SUAS é o Programa de Atenção Integral à Família PAIF, que é ofertado por meio dos serviços socioassistenciais, socioeducativos e de convivência, além de projetos de preparação para a inclusão produtiva voltados para as famílias, seus membros e indivíduos, conforme suas necessidades, identificadas no território. O PAIF é realizado exclusivamente pelo poder público nos CRAS, e tem por perspectiva o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, o direito à proteção social básica e ampliação da capacidade de proteção social e prevenção de risco no território de abrangência do CRAS (BRASIL, 2005, p. 15). O PAIF tem como pressuposto que a família é o núcleo básico de afetividade, acolhida, convívio, autonomia, sustentabilidade e referência no processo de desenvolvimento e reconhecimento do cidadão e, de outro, que o Estado tem o dever de prover proteção social respeitada a autonomia dos arranjos familiares (BRASIL, 2005, p.28). Portanto, reconhece o papel integrador da família, apostando nessa capacidade das famílias para maximizar a proteção oferecida, o que fica claro com as expectativas quanto às funções básicas da família: prover a proteção e a socialização dos seus membros, constituir-se como referências morais, de vínculos afetivos e sociais; de identidade grupal, além de mediadora das relações dos seus membros com outras instituições sociais e com o Estado (PNAS\2004, p.35). Nesta perspectiva, defendemos a hipótese que o projeto protetivo expresso na responsabilização do Estado pela proteção social, presente na Política de Saúde e de Assistência Social, convive e está entrelaçado com o projeto familista, à medida que a proteção oferecida busca sempre contrapartidas que aumentam as responsabilidades familiares, sobrecarregando as famílias vulneráveis. Portanto, estamos mais próximo do modelo de pluralismo de bem-estar, do mix público/privado na proteção social, do que do modelo de proteção estatal/pública. III. FAMILIA E O TRABALHO SOCIAL NA ATENÇÃO BÁSICA

No contexto da análise das transformações dos sistemas de proteção social, sob os efeitos das restrições econômico-financeira pós anos 1970, a sociedade civil, e, mais especificamente, a família, aparecem com renovado papel nesses sistemas de proteção. Sobre a família têm recaído expectativas diversas, inclusive que continue a ser elemento de integração social, de proteção aos seus membros, de socialização, educação e lugar dos cuidados. Assim, embora seja estratégico e econômico contar com a família para potencializar a proteção social oferecida, considerando sua tradicional e cultural função na reprodução social, há sinais de que a proteção familiar não pode ser estendida, sobrecarregada para além de sua capacidade (TEIXEIRA, 2010). A responsabilização da família é uma tendência que se expande com o avanço das reformas neoliberais, que apregoa a diminuição das demandas do Estado, repassando-as ou dividindo-as com a sociedade civil (GOLDANI, 1994). Mas também setores da esquerda, inclusive dos movimentos sociais e Organizações Não Governamentais (ONGs), demandam alterações nas relações Estado/sociedade que reforçam a cultura solidarista da sociedade civil na prestação de serviços sociais, bem como o retorno da solidariedade para o interior da sociedade, família e comunidades. O ressurgimento da família ou as expectativas em relação às suas funções de proteção social, inclusão e integração social se ampliam, nas últimas décadas, favorecidas pelo recuo do Estado no provimento social, pela defesa de um regime de bem-estar plural que envolve o mix público/privado na provisão social. Segundo Nogueira (2001), isso reforça as propostas neoliberais, que restringe a intervenção estatal às situações em que cessam as fontes naturais de proteção social, sejam as formais como mercado, terceiro setor, sejam as informais como família e comunidade. No novo modelo de proteção social esboçado, o processo de trabalho ganha contornos específicos. Nesse a qualificação e perfil dos profissionais envolvidos nas Políticas de Assistência Social e Saúde ganha relevo, uma vez que sua ação deve ser orientada tanto por procedimentos técnicos, quanto por processos de inter-relação equipe/comunidade/família e equipe/ equipe (NOB SUS, 1996; NOB SUAS, 2005). Na contemporaneidade, a ênfase no trabalho com e para a família assume centralidade nas Políticas de Assistência Social e de Saúde, com ações que se encaminham para uma verdadeira política familiar, como esboçado nos PSF e CRAS.

Com certeza, a prevalência de um dos projetos societários familista ou protetivo na direção da política social, terá condução diferente quanto ao trabalho social com as famílias. Na segunda perspectiva, o trabalho social com famílias orienta-se numa dimensão de totalidade social, que, segundo Mioto (2006), pressupõe que indivíduos e situações não podem ser interpretados de forma estanque no contexto familiar e social. Consequentemente, também os problemas e as soluções não podem ser pensados de forma isolada, relativos apenas a membros da família, contidos somente no espaço familiar, assim como os problemas de proteção social não estão restritos às famílias e, portanto, a solução deles extrapola as suas possibilidades individuais. Nessa perspectiva, o trabalho social visa promover autonomia e protagonismo social, ou seja, gerar autonomia dos sujeitos, oferecendo condições para que possam [...] comparar, valorar, intervir (avaliar), escolher, decidir, romper (com o estabelecido) (MANINI, 2005 apud OLIVEIRA, 2008, p. 3) e, principalmente, reconhecer-se como parte de um coletivo e a força social desse coletivo, de resistência, de solidariedade, de proposição, de busca de meios para sua efetivação. O trabalho social com as famílias, portanto, é entendido de forma muldimensional, compreendendo os problemas sociais e de saúde como resultado de elementos macrossociais, e não como responsabilidade exclusiva dos sujeitos. Nesse sentido, a compreensão acerca do trabalho social desenvolvido com famílias na atenção básica, configurado no projeto atual no âmbito da saúde e assistência social, requer a identificação e análise dos aspectos presentes nos programas em que ele vem sendo operado, especialmente em relação aos seus operadores (equipe interdisciplinar do PSF e CRAS). Alguns questionamentos nessa direção são: a centralidade da família nas políticas sociais se expressa em trabalho de cunho emancipatório ou reforçam suas clássicas funções sociais na proteção de seus membros? Quais as inovações no trabalho social com famílias numa lógica de prevenção dos problemas sociais e de saúde? No trabalho social com famílias foram superadas as orientações conservadoras que psicologizam e culpabilizam as famílias pelos seus problemas? Existem aproximações e/ou distinções entre as concepções de família que orienta o trabalho social dos profissionais do PSF e CRAS? Ou seja, qual é a direção do trabalho social com famílias nesses programas elencados?

III CONCLUSÃO Como se pode constatar, através da discussão realizada, o tema em pauta é complexo. As idéias trabalhadas ao longo do texto e a organização da discussão da centralidade da família nas políticas sociais, especificamente na saúde e assistência social, merecem ser aprofundada. Tal aprofundamento é necessário, não apenas por uma questão acadêmica, mas pelo impacto que as ações desenvolvidas pelos programas de apoio sócio-familiar têm na vida cotidiana das famílias. É necessário fortalecer a família como um sujeito de direitos, conforme já destacado por Mioto (2004), a família não é apenas um espaço de cuidados, mas também um espaço a ser cuidado. A família tem importante papel na estruturação da sociedade em seus aspectos políticos e econômicos, além da capacidade de produção de subjetividade. Assim a política social deve oferecer apoio à família, e não pressioná-la a assumir responsabilidades das quais não tem como arcar. A família não pode se constituir em uma estratégia do Estado na transferência de responsabilidades. A dimensão sóciofamiliar alçada como matriz de estruturação de políticas públicas, não deve reeditar a culpabilização da família pelo fracasso em cuidar e proteger seus dependentes. A ação estatal deve fortalecer as competências familiares através da garantia dos direitos. Este posicionamento torna-se um desafio tendo em vista o contexto social brasileiro. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.. Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Lei n 8.742, de 07 de dezembro de 1993.. Ministério da Saúde. Manual para a organização da atenção básica. Brasília: Ministério da Saúde; 1998.

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