Bordejar o incapturável: A propósito do conceito de pulsão em Freud
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- Giovana Carmona Ximenes
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1 1 Bordejar o incapturável: A propósito do conceito de pulsão em Freud Maria Nadeje Pereira Barbosa É sabido que o conceito de pulsão apresenta uma fecunda elasticidade teoréticaclínica.contudo, isso não impede que emerjam certas dificuldades de entendimento. Em Os instintos e suas vicissitudes (1996c/1915), Freud define da seguinte maneira o conceito de pulsão: Se agora nos dedicarmos a considerar a vida mental de um ponto de vista biológico, um instinto [Trieb] nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental [Seelischem] e o somático [Somatischem], como um representante psíquico [psychischer Repräsentant] dos estímulos [Reize] que se originam dentro do organismo [Körperinnern stanmmenden] e alcançam a mente [Seelischen], como uma medida da exigência [Arbeitsanforderung] feita à mente [Seelischen] no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação [Zusammenhanges] com o corpo [Körperlichen] (1996c/1915, p. 127; colchetes da autora). Definição que introduz problemas epistemológicos de máxima importância, entre os quais, se é o conceito de pulsão o se é a pulsão propriamente dita que está no limite entre o anímico e o somático. Freud mesmo, reconhecia as dificuldades que apareciam quando pretendia dar uma versão cabal sobre a Teoria das Pulsões. Assim em Sobre o narcicismo: uma introdução (1996b/1914), lamenta a ausência total de qualquer teoria dos instintos [...] que nos ajude a encontrar nossa orientação (1996b/1914, p. 85; colchetes da autora). Dentro desta mesma orden de considerações, em Além do princípio de prazer (1996d/1920), definirá sua Teoria das Pulsões como o elemento mais importante e obscuro da pesquisa psicológica (1996d/1920, p. 34). Em Um estudo autobiográfico (1996e/1925) diz: Não há necessidade mais premente na psicologia do que uma teoria dos instintos [Trieblehre] firmemente alicerçada, sobre a qual talvez então fosse possível formular outros pontos. Contudo, nada disto existe, e a psicanálise é impelida a envidar esforços especulativos no sentido de tal teoria (1996e/1925, p. 60; colchetes da autora).
2 2 Referência que se perfila, antes de mais nada, como um convite de Freud para continuarmos a tarefa de eclarecer os aspectos obscuros da Teoria das Pulsões. Por certo, esta tarefa não foi somente brilhantemente introduzida por Freud, mas também desenvolvida por ele nos seus aspectos principais. De modo que não se trata meramente de assinalar o carácter inacabado da Teoria das Pulsões, mas de mostrar, em tais referências de Freud, que a psicanálise se perfila como uma teoria aberta e em continua expansão. Sobretudo, ao reconhecer que na obra de Freud não existe somente duas teorias da pulsão mas diferentes níveis de elaboração deste conceito em relação com os outros conceitos que compõem a teoria psicanalítica. Com efeito, essas questões revelam, nada menos, a fecundidade teorética-clínica da Teoria das Pulsões introduzida por Freud. Mas, também, mostram que o desenvolvimento propriamente dito da Teoria das Pulsões não é uma tarefa livre de obstáculos; seja os que Freud advertiu no decorrer da sua obra; seja os determinados posicionamentos ambíguos que subjacem na sua reflexão sobre as pulsões. Obstáculos que muitos autores buscaram tapar com novas definições e novos conceitos, em lugar de buscar saídas consequentes em relação com as ambiguidades existentes em matéria pulsional, e sem aterem-se à coêrencia desses em relação com o conjunto da obra. O resultado é um amálgama de novos conceitos que mais confundem que esclarecem. O que revela que, apesar da constante reflexão acerca do estatuto do conceito de pulsão, alguns autores se contentaram com uma teoria insufuciente das pulsões. Dentro desta mesma ordem de considerações, não se trata de sublinhar a dimensão pulsional em detrimento das relações de objeto ou, tampouco, em opor a pulsão ao objeto, mas de estabelecer vias de passagem entre eles, tal como propõe Green (1987). Daí que a tendência a antropomorfização das instancias que compõem a segunda tópica esteja totalmente vinculada com a problemática do objeto, em concreto, com a sua situação tópica. Pois bem, a metapsicologia, ou seja, a dimensão que busca discutir os processos psíquicos desde o ponto de vista tópico, econômico e dinâmico, introduzirá uma nova modalidade de leitura dos processos psíquicos, oposta aos paradigmas da ciência, mas também distinta das ideias abstratas do discurso metafísico. Contudo, mesmo sendo certo que o conceito de pulsão produz uma ruptura com o pensamento científico não se trata de uma operação acabada, mas do início de um processo de reconhecimento de outra cena que é o descobrimento do inconsciente.
3 3 É a partir do relato das suas pacientes histéricas sobre a coisa sexual descrita nos termos de apetência sexual, que Freud pôde ir dilucidando o conceito de pulsão, num processo que deve tanto à filosofia como à fisiologia. Pois bem, com o estabelecimento da hipótese estructural sobre o inconsciente, tais referenciais ficaram alterados, pois, nesse segundo momento já não se tratava simplesmente de importar ideias de outros campos de saber, mas de incorporar as primeiras elaborações sobre a pulsão na hipótese estabelecida: a da sexualidade inconsciente. Esta operação de trasmudação começava nos anos em que a neurologia constituía um dos seus referentes e culmina nos anos seguintes, concretamente nos Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1996a/1905). Operação não de todo lograda, já que apesar da ruptura do pensamento freudiano com o pensamento psiquiátrico do seu tempo tenha sido veemente, o conceito de pulsão permaneceu atado a pressupostos filogenéticos e evolucionistas. Daí sua concepção sobre a origem endógena da pulsão. Com a confirmação das suas hipóteses fundamentais sobre a sexualidade inconsciente a partir do estudo sobre as perversões, da sexualidade infantil e da sexualidade adulta, com o estabelecimento do primeiro dualismo pulsional e da posterior confirmação da sua insuficiência, particularmente com a introdução do conceito de narcisismo, chega o momento de reunir esses elementos que, apesar de estarem relativamente dispersos na sua teoria, constituirão a base do seu pensamento, assim como em deixar aberto a eventualidade de possíveis alterações. Em Os instintos e suas vicissitudes (1996c/1915) se delineará como um momento de síntese que lhe permite, além do mais, enfocar algumas características da pulsão e do instinto em outros domínios de saber, como na fisiologia, mas agora com uma estrutura conceitual mais ampla. Retomando a definição de pulsão dada por Freud, é possível vislumbrar que mesmo estando inserida num determinado momento temporal do pensamento freudiano, a saber, 1915, se perfila como referência a partir do qual se desenvolverá não somente a primeira tópica e o primeiro dualismo pulsional, mas também a segunda tópica e a segunda Teoria das Pulsões. Por certo, não se trata de uma definição livre de dificuldades de entendimento, uma das quais é a de imaginarizar estes dois âmbitos, (o psíquico e o somático) como espaços que mesmo encontrando-se diferenciados um do outro, são, em certo modo, correlativos; o mesmo ponto que os une, também os separa: a pulsão. Contudo, a pulsão mesmo não estando totalmente do lado do corporal (do qual provém) nem totalmente do lado do anímico, está em direção ao anímico, onde se converte em representante psíquico, exigindo que o anímico trabalhe (se coloque en
4 4 ato continuamente), e isso prescisamente como efeito da sua conexão com o corporal (que é a sua fonte). A partir da segunda tópica, a pulsão deixará de ser concebida como um dos pólos do conflito: proveniente do id será entendida como a energia característica do funcionamento de cada sistema, não somente do ego e estabelecerá uma série de articulações tanto desde o ponto de vista intersistêmico como desde o ponto de vista intrasistêmico. Este endurecimento da pulsão do lado do somático introduz a dificuldade propriamente dita de situar este conceito na fronteira entre o somático e o psíquico, assim como buscar deriva-lo a partir da dimensão simbólica. Um autor como Green (1987), que tratou sobre esta questão, assinala que são as caracteristicas mesmas do id -que apresenta elementos inatos (inconscientes) e adquiridos (convertidos em inconsciente) - as que transformam a energia somática em libidinal e converte a pulsão em representante psíquico. Assim, essa operação de transformação energética, em que a estrutura das pulsões mantém intercâmbios tanto com o somático como com o ego, termina por devolver a pulsão sua característica de conceito limite entre o anímico e o somático. Será o id, território do conflito entre pulsões de vida e pulsão de morte, a fronteira ou a ponte entre as funciones orgânicas e o ego. Enfim, não é possível pensar o anímico sem referir-se ao somático, nem o contrário. E é justamente essa mudança no modo de ter que pensar os dois âmbitos o que Freud introduziu a psicanálise. E, em concreto, o conceito de pulsão. Assim a introdução do conceito de pulsão na teoria psicanalítica, ao mesmo tempo que equivale a uma ruptura com o pensamento científico, dá inicio a um processo de transmudação de alguns dos seus termos, assim como as bases nas que se assenta este conceito. Contudo, tratase de uma ruptura relativa; Freud se manteve em muitos aspectos atado ao pensamento científico do seu tempo. Se, por um lado, este vínculo desembocou na originalidade das suas idéias, sobretudo no que se refere à importação de modelos tomados da biologia, por outro, reflete sua constante inquietude teórica em assentar definitivamente as bases da sua Teoria das Pulsões, não sem ter em conta que o movimento que lhe impelia realizar esses ajustes teóricos ia em pararelo com a intermitente influência das suas idéias nas mudanças estructurais de sua teoria. De todas as maneiras, desde a sua introdução no pensamento freudiano é possível vislumbrar a fecunda elasticidade que a expressão Trieb oferece desde o ponto de vista terminológico. Freud soube captar o valor da operação de transmudação que ele mesmo havia forjado sobre a pulsão.
5 5 Resumo O presente trabalho tem por objetivo rastrear o percurso do conceito de pulsão na obra de Freud. Parte-se do suposto segundo o qual o conceito de pulsão apresenta uma fecunda elasticidade conceitual, configurando-se como a base de toda reflexão psicanalítica. Num primeiro momento serão apresentadas e discutidas as primeiríssimas formulações de Freud sobre a pulsão, a saber, o marco clínico e o marco teórico da introdução da pulsão no pensamento freudiano, antes da formulação da hipótese sobre o inconsciente. A seguir serão apresentadas e discutidas a primeira formulação propriamente psicanalítica sobre a pulsão, o primeiro e o segundo dualismo pulsional. Buscar-se-á analisar detidamente que a elasticidade do conceito de pulsão não impediu que emergessem certas dificuldades de entendimento, sobretudo com a introdução do conceito de pulsão de morte. Para finalizar será esboçada uma discussão ampla e não menos detida acerca da repercussão da teoria das pulsões na terceira formulação sobre a teoria da angústia e sobre a dinâmica das instâncias que compõem a segunda tópica (ego, id e superego), com o objetivo de defender a ideia segundo a qual a dimensão pulsional estabelece vias de passagem com as relações de objeto. Referências Freud, S. (1996a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, (Vol. 7). Rio de Janeiro: Imago. Trabalho original publicado em (1996b). Sobre o narcisismo: uma introdução. In Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, (Vol. 14). Rio de Janeiro: Imago. Trabalho original publicado em (1996c). Os instintos e suas vicisitudes. In Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, (Vol. 14). Rio de Janeiro: Imago. Trabalho original publicado em (1996d). Além do princípio do prazer. In Obras Psicológicas Completas de Sigmund
6 6 Freud, (Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago. Trabalho original publicado em (1996e). Um estudo autobiográfico. In Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, (Vol. 20). Rio de Janeiro: Imago. Trabalho original publicado em Green, A. (1987). La pulsión en los escritos terminales de Freud. In J. Sandler (org.), Estudio sobre el Análisis terminable e interminable de Sigmund Freud (pp ). Madri: Tecnipublicaciones.
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