O DISCURSO DA CIÊNCIA E SUA RELAÇÃO COM O SUPEREU
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1 O DISCURSO DA CIÊNCIA E SUA RELAÇÃO COM O SUPEREU Fabiana Mendes Pinheiro de Souza Psicóloga/UNESA Mestranda do Programa de pós-graduação em teoria psicanalítica/ufrj fabmps@gmail.com Resumo: Em 1920, Freud teorizou a 2ª. tópica do aparelho psíquico face ao paradoxo da compulsão à repetição. Trabalharei o conceito de superego pela incidência da pulsão de morte sobre o ego, via pela qual ele se presentifica na relação com o objeto enquanto exigência de gozo. Dizer que o sujeito sobre o qual a psicanálise opera não pode ser senão o sujeito da ciência (LACAN, 1998, p.873) implica entender que o sujeito da ciência nada quer saber do Nome-do-Pai porque a invenção da ciência tende a instalar-se como uma nova tradição e a promover o esquecimento do arbitrário, do acaso, do começo, da novidade, da origem (COELHO DOS SANTOS. 2005). O advento da ciência moderna é tributário do corte que propicia a passagem do mundo antigo ao moderno e dá lugar ao sujeito da ciência a partir da perda de Deus. Pensar o superego como imperativo de gozo e sua relação com a pulsão de morte requer considerar que há um comprometimento do progresso da ciência com o gozo em excesso e não apenas com a renúncia ao gozo, matriz do recalque. Palavras-chave: supereu, pulsão de morte, ciência moderna, das Ding, gozo, psicanálise. Por que o discurso da ciência tem relação com o supereu como imperativo de gozo e conseqüentemente com a pulsão de morte? O aparelho psíquico engendrado por Freud em 1895 foi estruturado sobre uma tendência primordial à repetição que é, simultaneamente constituinte da própria subjetividade. O aparelho psíquico freudiano (1895) é concebido segundo princípios
2 2 econômicos relativos à regulação das quantidades de energia e que se estrutura por uma tendência à repetição. Essa tendência se caracteriza inicialmente pela livre circulação de energia, de uma representação para outra, através dos mecanismos da condensação e do deslocamento, que Freud denominou de processo primário. Freud, no Entwurf, coloca no primeiro plano o funcionamento do processo primário, Bahnung, trilhamento (LACAN, / 1997, p.50). De 1895, quando o caminho da repetição se mostrava criado pelas facilitações, até 1920, quando o conceito de repetição passa a caracterizar universalmente as pulsões, Freud não faz outra coisa senão demonstrar o estatuto pulsional da repetição enquanto dominante no aparelho. Na virada dos anos 20, Freud repensou sua metapsicologia e apresentou a segunda tópica do aparelho psíquico. Em Mais Além do Princípio do Prazer (1920) anuncia sua perplexidade face ao paradoxo da compulsão à repetição. A compulsão à repetição será então o fenômeno que apontará para um aspecto da vida psíquica, desde logo identificado como da ordem do pulsional, que passa ao largo da referência ao prazer ou ao desprazer, mostrando-se indiferente ao princípio do prazer (COELHO DOS SANTOS, 1991). A pulsão é por excelência, no segundo dualismo pulsional, pulsão de morte. O panorama que se apresenta para o ego após a inferência da pulsão de morte passa a ser melhor configurado na segunda tópica. O aparelho psíquico será regido fundamentalmente pelo que é da ordem do mais pulsional, ressaltando o aspecto econômico da metapsicologia como o mais relevante, submetendo a ele o aspecto tópico e o dinâmico. Em Sobre o narcisismo: uma introdução (1914) Freud define que para o ego, a formação de um ideal seria o fator condicionante da repressão. Neste texto, o investimento pulsional do narcisismo dava origem ao ideal do ego, que por sua vez, era articulado com os ideais de perfeição da cultura, produzindo com isto um núcleo de moralidade dentro do ego, um guardião da moral externa. Ainda nesse texto, Freud nos ensina que: o desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narcisismo primário e dá margem a uma vigorosa tentativa de recuperação desse estado. Esse afastamento é ocasionado pelo deslocamento da libido em direção à um ideal do ego, imposto de fora (FREUD, 1914, 106).[...] O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal (IBID, p.101).
3 3 É necessário compreender o antagonismo estrutural que a pulsão de morte impõe à teoria do narcisismo e compará-lo com a problemática do complexo de Édipo e de castração. Pensar o superego somente a partir do desfecho do complexo de Édipo torna obscura a elucidação de sua incidência. Tal concepção implica pensá-lo como uma identificação com a instância legiferante, uma identificação com o pai como lugar da lei ou da interdição que, por razões obscuras, torna-se pulsional. É ao ideal do ego que podemos aplicar tal raciocínio, pois é através de sua incidência que a lei externa é investida e vem se representar no psiquismo. É importante esclarecer que Freud fornece duas origens para o superego. Uma que remonta à identificação primordial do ego e a outra derivada do complexo de Édipo e da castração. Quanto à primeira, Freud nos mostra que o ego deriva da plasticidade da libido, na medida em que ele pode se impor como objeto de amor. O movimento narcísico do ego de retirar libido dos objetos e transformá-la em libido narcísica, resultará no que Freud denomina como uma libido dessexualizada, numa dessexualização (1923, p. 43). O superego surge em relação à problemática narcísica enquanto definida como uma dessexualização da libido. O paradoxo intrínseco à formação do ego diz respeito ao fato de que o narcisismo, em sua tentativa de unidade e coerência, produz em última instância o superego como reduto da incidência da pulsão de morte. O superego é o representante da pulsão de morte na exata medida de uma identificação inflexível do ego com o objeto, e numa identificação que consista na dessexualização do investimento do objeto. O superego como cultura pura da pulsão de morte (IBID, p. 66) é encontrado com referência à melancolia, que tem como principal característica a remodelação do ego pela via da identificação com o objeto perdido. A melancolia, que revelou a Freud a estrutura do ego, é aqui novamente usada para elucidar a natureza última do superego, cuja radicalidade pode inclusive levar à morte. Há um privilégio por parte de Freud em falar do superego como herdeiro do complexo de Édipo, mas foi-lhe necessário postular também uma origem mais arcaica. Essa origem mais arcaica é a que nos permite entender melhor o aspecto pulsional do superego que, de alguma forma, fica obscurecido pelo papel de lei ou proibição internalizada que ele vem a representar no desfecho do complexo de Édipo. De acordo com Freud, em O ego e o id (1923) o superego retém o caráter do pai. Quanto mais poderoso o complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão,
4 4 mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência ou de um sentimento inconsciente de culpa. Freud ensinou que o desejo de matar o pai tem efeitos de constrangimento psíquico muito poderoso. Ele reforça a consciência de culpa, o supereu, a moralidade. Segundo Freud, o pai morto torna-se muito mais poderoso que vivo. Através do mito edípico, Freud formula que o fundamento do sujeito é a lei do desejo paterno. Logo, o sujeito deseja o objeto do desejo do pai, isto é, a mãe. Por causa disso, todo desejo nasce incestuoso e todo desejo se constitui como proibido ao sujeito. Para Lacan ( / 1997, p.87-8) o que encontramos na lei do incesto situa-se como tal no nível da relação inconsciente com das Ding, a Coisa. O desejo pela mãe não poderia ser satisfeito pois ele é o fim, o término, a abolição do mundo inteiro da demanda, que é o que estrutura mais profundamente o inconsciente do homem. É na própria medida em que a função do princípio do prazer é fazer com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reencontrar, mas não poderá atingir, que nesse ponto reside o essencial, essa relação que se chama a lei da interdição do incesto. O passo dado por Freud, no nível do princípio do prazer, é o de mostrar-nos que não há Bem Supremo, que o Bem Supremo, que é das Ding, a mãe, o objeto do incesto, é um bem proibido e que não há outro bem. Esse objeto, trata-se de o reencontrar e é qualificado, por Lacan ( / 1997) como objeto perdido. Reencontramo-lo no máximo como saudade (IBID, p. 69). A organização psíquica regula o campo pulsional graças aos efeitos do complexo de Édipo e do complexo de castração. A satisfação decorrente de um princípio para além do princípio do prazer, submete-se, em parte, ao princípio do prazer. O supereu que Freud privilegia se constitui a partir dos traços identificatórios oriundos das relações do sujeito com o pai. Ele é o herdeiro do complexo de Édipo (FREUD, 1923, p.48). Portanto, implica o destino da identificação ao pai, que, na vida adulta se torna o suporte da crença em Deus. Quanto ao gozo, Lacan ( , p. 225) o definiu como um mal que, em Freud, tem o nome de além do princípio do prazer. A satisfação pulsional também observada nas fixações pulsionais têm o estatuto auto-erótico. A pulsão nasce nas zonas erógenas do corpo, onde o gozo ainda não está submetido à lógica fálica ou às identificações sexuadas que surgirão após o complexo paterno. Por essa via, o inconsciente é ato, é compulsão à repetição, é a pura presença de uma intensidade que dá testemunho de um
5 5 gozo referido ao mais pulsional da pulsão, limite do inconsciente interpretável (COELHO DOS SANTOS, 2002). Dizer que a pulsão de morte introduz o supereu como um paradoxo significa entender que o conceito de gozo é tributário do mais além do princípio do prazer (1920). Freud descobre que o sujeito não aparelha a sua relação com o mundo à serviço de sua própria existência. A pulsão de morte, o mais além do princípio do prazer, indica que o ser humano busca algo que não se reduz ao princípio do prazer. O objeto impossível de ser coordenado, nas relações do princípio do prazer, rege uma busca além do princípio do prazer, que preside a busca de um gozo, e não as condições à serviço da homeostase, da vida. O progresso da ciência, pensada sob a perspectiva da pulsão de morte, que introduz o supereu como um paradoxo, incita ao gozo e não mais à renúncia. O supereu oriundo da intervenção paterna, parceiro que regula a atividade pulsional além do princípio do prazer, dá lugar pouco a pouco a um outro imperativo, que passa ao largo do ideal da renúncia. Esse supereu incita ao gozo (LOPES, 2007, p. 151). A ciência moderna se situa no ponto da separação entre o mundo antigo e moderno a partir da perda de Deus como referente de tudo o que existe. Lacan, em A ciência e a verdade (1966, p. 873), declara que o sujeito sobre o qual a psicanálise opera não pode ser senão o sujeito da ciência e que a psicanálise reintroduz na consideração científica, o Nome-do-Pai. Se o sujeito da ciência nada quer saber do Nome-do-Pai é precisamente, porque a invenção da ciência tende a instalar-se como uma nova tradição, promovendo o esquecimento do arbitrário, do acaso, do começo, da novidade da origem. Lacan opõe a ciência no sentido forte, à tradição. A tradição é o esquecimento das origens (COELHO DOS SANTOS, 2005, p.1). Como afirma Coelho dos Santos (Ibid., p.2) se tomarmos o ponto de vista do mito, a repetição é interpretável, estamos sob o domínio da tradição, do Nome-do-Pai, como Outro que guarda um sentido. Se tomarmos a perspectiva da pulsão, não há nenhum Outro que lhe convenha, o Outro não existe, pois a origem é puro acaso e não tem sentido prévio, é um acontecimento sem nome.
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