Falando com as coisas (Autismo)
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- Ângelo de Almeida das Neves
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1 Falando com as coisas (Autismo) Edson Saggese Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psiquiatria. Doutor em Ciências da Saúde pelo IPUB/UFRJ, psiquiatra, psicanalista, professor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ. A mãe de Fred, 14 anos, diz que nunca percebeu problemas em seu filho quando bebê. Conta que ele balbuciou as primeiras palavras com um ano e meio. Ao entrar para a escola, com dois anos e meio, a professora começou a perceber que Fred não se entrosava com as outras crianças, ficava andando em círculos e batendo as mãos. Diante deste comportamento, que se repetia também em casa, a mãe procurou atendimento psicológico. Após um percurso por vários profissionais, foi encaminhado ao CARIM, Instituto de Psiquiatria da UFRJ, onde ficou em atendimento ambulatorial por cerca de dois anos. Fred conseguiu frequentar a escola e terminou a 5ª série. Seu comportamento evoluiu com muitos movimentos estranhos e repetitivos (girar objetos, andar aos pulos), com uma linguagem bem articulada, mas marcada por uma entonação peculiar e por um padrão repetitivo de fala, além das dificuldades de interação interpessoal. Fred, na adolescência, continuou necessitando de cuidados especializados, pois continuava muito isolado, sem amigos e com sérias dificuldades escolares, tanto no aspecto de aprendizado quanto no disciplinar. A mãe relata que o pai de Fred era muito agressivo e que se separaram quando o filho era muito pequeno. Desde então Fred e a mãe pas- Da Clínica à Reabilitação Psicossocial - Manual de Saúde Mental de crianças e Adolescentes 43
2 saram a viver sozinhos, sendo seus principais contatos externos os parentes da mãe, e tendo pouco contato com o pai. As dificuldades escolares culminam no afastamento da escola o que diminui ainda mais as possibilidades de interação interpessoal da criança. Percurso Optou-se por inserir Fred nas atividades do Centro de Atenção Psicossocial (CARIM), privilegiando a necessidade de que o adolescente estabelecesse algum tipo de vínculo social extrafamiliar. Fred foi, inicialmente, conhecendo estas atividades, mas mostrava grande dificuldade de ficar nos grupos. Circulava pelo espaço externo às salas de atendimento, por vezes entrava, sentando-se por alguns minutos, mas logo saía. Nos primeiros dias, passava algumas vezes, direto pelas pessoas parecendo não vê-las. Certa ocasião, ao entrar numa das salas, dirigiu-se diretamente a uma prateleira onde estavam diversos objetos como cafeteira, vidros etc.; permaneceu junto aos objetos por alguns minutos e começou a se retirar passando novamente pelas pessoas sem parecer prestar atenção a elas. Um dos presentes perguntou por que ele foi e voltou do fundo da sala e Fred respondeu que falava com as coisas. Posteriormente, começou a buscar se comunicar com os demais, fazendo-lhes sempre as mesmas perguntas, para as quais sempre sabia as respostas. Mostrouse inteligente e com bom humor gostando, entretanto, de contar as mesmas piadas, repetidas vezes. Sua chegada ao CARIM era sempre um momento bem difícil, já que ficava agitado, aumentando seus maneirismos motores, chegando, por vezes à autoagressão. Relacionamos este comportamento ao fato de separar-se de sua mãe, que o deixa pela manhã, só voltando à tarde para buscá-lo. Muitas vezes essa angústia era verbalizada por ele com um eu vou desmaiar e a seguir sentava-se ao chão, balançando o corpo, com seus movimentos estereotipados. Porém, ao longo do dia, Fred ia melhorando e conseguia ficar no Centro. À medida que sua interação grupal foi sendo mais solicitada, tanto pelos técnicos como pelos outros adolescentes, vimos em Fred algumas surpreendentes mudanças comportamentais. Percebemos que começou a ter várias atitudes provocativas e agressivas com os demais. Sujavaos com tintas usadas nas oficinas, jogava sujeira nos copos de refresco durante o lanche coletivo, provocava alguns outros até que o ameaçassem de agressão. Tamanho foi o incômodo dos demais adolescentes que, numa dinâmica de grupo realizada durante uma das oficinas terapêuticas, Fred foi escolhido por vários colegas para ser deixado numa ilha deserta. Pos- 44 Parte II: Falando com as coisas (Autismo)
3 teriormente, durante sua permanência no Centro, começou a se utilizar da fantasia de uma personagem de um programa de televisão - a feiticeira. Solicitava que o ajudássemos a confeccionar a fantasia e não aceitava ficar no CARIM sem ela. Recebia a zombaria dos demais com aparente indiferença e não retirava a fantasia. Paulatinamente, Fred foi necessitando menos do recurso da personagem até abandoná-lo. Atualmente consegue ficar mais tempo nas atividades e tem melhorado sua interação com o grupo, embora ainda mantenha seus comportamentos em menor intensidade. Inicialmente, vimos em seu comportamento a confusão entre seres inanimados e seres de linguagem, como no episódio em que falava com as coisas. No decorrer do processo, Fred passou a perceber mais as pessoas e aceitou estar com o grupo, embora este contato se mantivesse para ele como situação de angústia. Mostrava querer estar com o grupo, mas não conseguia relacionar-se bem com ele. Por seus comportamentos antissociais sua mãe achava que ele estava piorando e se preocupava com a fantasia de feiticeira que Fred usava. Porém, pudemos verificar que Fred mostrava estar reagindo aos efeitos da relação com o Outro. As crianças autistas às vezes agem como se fossem perseguidas pela presença do Outro e esta perseguição está relacionada ao imprevisível do desejo manifestado pelos outros. Elas necessitam que nada se mova, a presença de um estranho pode ser sentida como intrusiva ou imprevisível. Numa tentativa de garantia de previsibilidade, Fred fazia perguntas para as quais já tinha as respostas e, desta forma, tentava deixar o outro numa posição fixa, estável, sem surpresas. Acontece que o outro escapa a previsibilidade, pode zombar de suas perguntas, não querer respondê-las ou não lhe dar as respostas esperadas. Isto desestabiliza sua rigidez e as necessidades de controle. Seus comportamentos provocativos evocam a atitude perversa e o que está em jogo é uma reação de controle à presença perturbadora do Outro. A piora de Fred pode ser uma reação às mudanças a qual ele respondia com as atitudes agressivas e antissociais. Tudo que multiplica as demandas sobre ele, tudo que se mostra mutável tem sobre Fred uma forte incidência, como se sua própria estabilidade dependesse de que o Outro- representado por qualquer pessoa com quem interaja- permaneça imóvel, previsível. Porém, mesmo reagindo à presença do Outro, por toda a característica de invasão que essa presença tem para ele, Fred não recusou, terminantemente, essa presença, vindo ao CARIM todos os dias por vontade própria. Paralelamente ao atendimento Da Clínica à Reabilitação Psicossocial - Manual de Saúde Mental de crianças e Adolescentes 45
4 de Fred, sua mãe também foi acolhida pelo Serviço. Frequenta o grupo de familiares e participa de entrevistas conjuntas, periódicas com o filho. Trabalha-se a dificuldade de separação entre eles o que leva a alguns impasses: situações de agressividade do adolescente; boicote da mãe ao trabalho de reinserção escolar do filho; interferência da mãe nas atividades durante a estadia de Fred no CARIM. O trabalho terapêutico inclui a necessidade de auxiliar os pais a lidar com a ansiedade de ter um filho autista, os possíveis sentimentos de culpa e a insegurança sobre o desenvolvimento da criança. Saber que podem contar com pessoas para ajudálos é essencial. Devem-se aproveitar todas as potencialidades da criança; evitar que viva isolada, sem, contudo, forçar uma aproximação que ela não suporte; verificar se pode participar de alguma forma de escolarização; avaliar se necessita de alguma medicação- que apesar de não modificar fundamentalmente o quadro autista, pode, por exemplo, diminuir a agitação ou a autoagressão. No caso, o adolescente foi medicado com risperidona, entre 2 e 4 mg/dia. Diagnóstico Fred recebeu o diagnóstico de Autismo. A denominação Autismo foi criada por Leo Kanner, em 1943 e serve para definir a forma clássica do problema. Como existem várias formas interligadas de autismo denomina-se o conjunto Transtornos Globais do Desenvolvimento. Eles aparecem em cerca de 4 a 5 crianças em cada 10 mil (prevalência) e são mais comuns em meninos que em meninas numa proporção de 4:1. No caso de Fred é possível discutir se seu diagnóstico não seria mais provavelmente a chamada Síndrome de Asperger, um subtipo de Transtorno Global do Desenvolvimento considerado como um autismo de melhor funcionamento, com preservação da linguagem e evolução mais favorável. O autismo surge, em geral, no primeiro ou segundo ano de vida, mas só costuma ser diagnosticado e tratado muito mais tarde. A falta de atendimento mais precoce acentua os prejuízos ao desenvolvimento da comunicação, do comportamento e da aprendizagem. Os principais sintomas são: a criança pode demonstrar indiferença aos cuidados maternos, falta de contato visual com a mãe, resistência a qualquer mudança no seu ambiente, não brincar com outras crianças, fazer movimentos repetidos e estereotipados- balançar as mãos, girar objetos, balançar o corpo etc. A fala pode não surgir ou aparecer apenas de forma estranha- repetição de palavras, não usar o pronome pessoal na primeira pessoa: responder, por exemplo,fred quer comer, quando alguém pergunta Fred quer comer? Da Clínica à Reabilitação Psicossocial - Manual de Saúde Mental de crianças e Adolescentes 46
5 Apesar de não estar clara a sua origem, há uma tendência para identificar o autismo com causas neurobiológicas. Qualquer que sejam as causas, a dificuldade de interação social da criança pode agravar-se com o rechaço social e a falta de cuidados apropriados. Algumas poucas crianças autistas apresentam talentos extraordinários grande capacidade de memorização, habilidade musical precoce etc. a maioria, no entanto, tem dificuldades cognitivas, sendo algumas francamente retardadas. De qualquer modo, mesmo que se possa demonstrar uma base orgânica para o autismo, continua em jogo a questão de que resposta dará o sujeito para o problema que lhe é imposto pela alteração orgânica. Nesse sentido vale a pena explorar algumas questões apresentadas por Fred com sua maneira peculiar de colocar-se como sujeito. Sua história de relação extrema com a mãe e de dificuldades de outros vínculos interpessoais justificava sua angústia em ficar só, sem a mãe: a separação é vivida como desespero ativo, como se o corpo literalmente caísse, privado de energia, visto que a separação da mãe é vivida como a perda de parte de si mesmo. Talvez, por isto Fred quase desmaie quando do afastamento da mãe. Diagnósticos diferenciais a considerar Surdez Crianças surdas de nascença não falam e têm outras dificuldades de contato que podem ser confundidas com autismo. Muitas vezes um exame especializado deve ser feito. Mutismo eletivo (ou seletivo) Certas crianças apresentam capacidade de falar normalmente, mas não falam em ambientes fora de casa - escolas, por exemplo- são muito tímidas na presença de estranhos. Abandono Crianças que sofreram grave negligência podem apresentar um grau de retraimento e desinteresse que chega a ser confundido com autismo. Da Clínica à Reabilitação Psicossocial - Manual de Saúde Mental de crianças e Adolescentes 47
6 Para saber mais Lewis, M. - Tratado de psiquiatria da infância e adolescência. Artes Médicas, Porto Alegre, (Informações sobre etiologia, epidemiologia, clínica e tratamento do autismo.) Ansermet, F. - Autismo e a resposta do sujeito. In: Clínica da Origem- a criança entre a medicina e a psicanálise. Contra Capa, Rio de Janeiro, Mannoni, M.- A criança retardada e a mãe. Martins Fontes, São Paulo, Alberti, S. (org.) Autismo e esquizofrenia na clínica da esquize. Marca d Água, Rio de Janeiro, (artigos sobre psicose e sobre o autismo do ponto de vista da psicanálise lacaniana) Da Clínica à Reabilitação Psicossocial - Manual de Saúde Mental de crianças e Adolescentes 48
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