ANAIS DO SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PRÁTICAS RELIGIOSAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

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1 ANAIS DO SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PRÁTICAS RELIGIOSAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO Laboratório de Estudos sobre Religiões e Religiosidades (LERR) Universidade Estadual de Londrina (UEL) 20 a 22 d e s et em bro 2016

2 O CASAL ARNOLFINI: ELEMENTOS RELIGIOSOS NO ESPAÇO PRIVADO Rodrigo Lourenço dos Santos (UEL-PG) 1 Resumo: Este artigo pretende apresentar aos leitores uma visão sobre alguns símbolos religiosos do século XV, a partir da interpretação da imagem do quadro O Casal Arnolfini de Jan van Eyck. Compreender alguns aspectos da vida e da carreira do pintor, analisar algumas características da pintura na Arte Gótica, estabelecer com o auxílio de algumas interpretações acerca da obra uma ponte entre essa manifestação artística e os costumes religiosos do período, são os pontos estipulados para se alcançar a visão citada acima. A metodologia empregada dialoga um pouco com a Nova História Cultural. Apesar de Jan van Eyck ter dado uma importância tão grande aos mínimos detalhes em suas composições, sua representação do real é mais assimilada se o espectador ter em mente o significado dos objetos retratados para a época, assim como, a forma como eles estão distribuídos no quadro. A manutenção de elementos religiosos no cotidiano das classes mais abastadas é um importante fator para se entender a mentalidade do século XV. 613 Palavras-chave: Arte. Gótico. Costume. INTRODUÇÃO Este trabalho tem por objetivo investigar como o espaço privado de uma família abastada do século XV pode nos dar pistas sobre alguns costumes religiosos do período com o auxílio de uma representação artística. Para esta investigação, será utilizado como fonte a imagem do quadro O Casal Arnolfini, que foi pintado em A escolha da obra O Casal Arnolfini de Jan van Eyck, apesar de suas inúmeras interpretações, está relacionada com o diálogo entre o cotidiano e a religião, tendo em vista que essa temática ainda pode estabelecer novas inquietações sobre essa relação no século XV. Segundo Coli (1995, p. 37) [...] o historiador da arte não consegue evitar inteiramente os critérios seletivos, pois o conjunto de objetos que estuda supõe uma escolha. Privilegiará um autor que pareça a seus olhos e aos de seus contemporâneos mais importante, consagrando-lhe um maior número de páginas, aprofundando mais a análise. A obra O Casal Arnolfini foi executada pelo pintor flamengo Jan van Eyck e desde de 1842, se encontra na National Gallery, Londres. A pintura foi realizada em um momento aonde as concepções artísticas herdadas da arte medieval foram sendo 1 Graduado em História/UEL (2015). Cursando Especialização em Religião e Religiosidades UEL. de contato: lourenco @hotmail.com

3 gradativamente abandonadas no tocante aos aspectos técnicos. Contudo, é necessário ressaltar que os artistas não abandonaram por completo as influências dos estilos medievais. Porém, algumas temáticas começaram a ganhar força ao longo do período como é o caso dos autorretratos e retratos. O Gótico é um estilo artístico que surgiu na França no século XII e se estendeu até o século XV na Europa, aonde a arte Renascentista começou a ocupar mais espaços. Para tentar alcançar o objetivo proposto, o trabalho está divido em três partes. A primeira parte traz um olhar acerca da vida do artista, mostrando algumas características relacionadas a sua vida particular e consequentemente a sua carreira. Já a segunda parte faz um pequeno mergulho na Arte Gótica, mostrando suas principais características. Haverá uma ênfase maior no campo da pintura, por este ser o campo aonde o artista atuou. Por fim, a terceira parte mostra algumas interpretações da obra e como pode ser estabelecida uma relação com os costumes religiosos do período. Além disso, é necessário mostrar que a definição de arte é muito plural para os dias atuais, por mais que alguns conceitos relacionados sobre ela, como os de Pierre Bourdieu, tenham alcançado diversos docentes nas mais variadas universidades do país. Proponho que pensemos a arte segundo as palavras de Coli (1995, p. 22) [...] a autoridade institucional do discurso competente é forte, mas inconstante e contraditória, e não nos permite segurança no interior do universo das artes. 614 Jan Van Eyck e a Realidade no Norte Jan van Eyck nasceu por volta de 1390, provavelmente na cidade de Maaseik (atualmente localizada na Bélgica) e faleceu em 1441 na cidade de Bruges (também atualmente localizada na Bélgica). Ele teria tido um irmão mais velho chamado Hubert van Eyck, com quem teria não só aprendido a pintar, como também, acabou finalizando uma obra iniciada por Hubert. Entretanto, pouco se sabe a respeito da vida de seu irmão. Jan van Eyck esteve relacionado com a corte dos duques de Borgonha, contudo, atuou principalmente na região dos Países Baixos (atual Bélgica). Ao longo de toda a sua carreira, teve uma vida dupla, atuando como diplomata em determinados momentos e como pintor em outros. A van Eyck é creditada de forma errônea o início da utilização da tinta a óleo, que como se sabe, já era utilizado por outros pintores anteriores a ele. O que de fato é praticamente um consenso entre os estudiosos da vida e das obras de van Eyck, é que ele teria criado a tinta à base de óleo com secagem rápida. Muito mais do que somente acrescentar

4 técnicas novas no processo de produção de um quadro, van Eyck estava preocupado em representar os mínimos detalhes, seja de uma paisagem, seja de um ambiente privado. Segundo Gombrich (1999, p. 240) Usando óleo em vez de ovo, podia trabalhar muito mais devagar e com maior exatidão. Podia fazer cores lustrosas, suscetíveis de serem aplicadas em camadas transparentes ou vidradas ; podia adicionar cintilantes detalhes em relevo com um pincel de ponto fina, e realizar todos aqueles milagres de precisão e minúcia que espantaram seus contemporâneos [...] Jan van Eyck foi um dos primeiros grandes expoentes da pintura minuciosa. Preocupado em retratar de forma detalhista a textura das roupas, as flores, as joias (só para citar algumas características) van Eyck se localiza distante, de certo modo, da tradição que tomou corpo com o Renascimento. Esta por sua vez, enfatizava contornos ousados em suas pinturas, além de uma preocupação especial com o corpo humano e uma busca por uma perspectiva cada vez mais clara. 615 Gótico Tardio ou Pré-Renascentista? A colocação de um artista em um determinado estilo artístico, traz consigo a ideia de que deve haver uma espécie de catalogação, não só de artistas como de obras, para se alcançar uma maior objetividade dentro da história da arte. Esse método talvez faça com que o estudioso se torne mais mecânico na sua interpretação, em detrimento de uma busca mais especulativa e imaginativa. Contudo, os tentáculos quase que metódicos da catalogação, na maioria das vezes, acabam vencendo essa disputa, como nos coloca Coli (1995, p ) Estamos diante de produtos que nos escapam, que se desenvolvem de modo tão inesperado, tão pouco previsível que, para os dominar, não resistimos à tentação fácil de os classificar. E essas classificações passam a ser mais importantes do que as obras. O termo gótico foi um estilo artístico estabelecido por estudiosos do século XVI. Essa arte era entendida como uma representação cultural dos godos, um dos povos responsáveis pelo fim do Império Romano no ocidente, uma vez que ela foi entendida no período como algo muito diferente do que até então havia sido estabelecido na Idade Média. Portanto, sua denominação inicial, está voltada a uma mentalidade posterior ao seu surgimento. A arte gótica começou a surgir em um momento aonde as cidades reapareceram como os principais centros comerciais e culturais em boa parte da Europa. Consequentemente,

5 a vida estritamente ligada ao campo, começou a ser gradativamente transformada. Essas transformações também acabaram influenciando o campo das representações artísticas. Na arquitetura: a horizontalidade começou a perder espaço para a verticalidade e as paredes que antes eram grossas, foram se tornando esbeltas. Na escultura: tanto o interior como o exterior das igrejas foram decorados. Já na pintura, que é o que mais nos interessa neste trabalho, os artistas buscaram um certo realismo em suas obras, com a preocupação de se estabelecer a perspectiva e a profundidade em boa parte das produções. Os temas mais explorados são o cotidiano e a Religião. Jan van Eyck foi um dos grandes expoentes do Gótico Tardio, que para alguns autores, lançaram algumas bases que foram exploradas posteriormente, pela arte Renascentista. Contudo, o Gótico Tardio não dialoga com os valores e a cultura grecoromana, logo, apesar de sua busca minuciosa pela representação dos detalhes, que também foi objeto de desejo dos pintores Renascentistas, a preocupação do Gótico Tardio está no que os olhos poderiam e estavam vendo e não em modelos da antiguidade. Para Gombrich (1999, p. 239) van Eyck Realizou a ilusão da natureza mediante a paciente adição de detalhe após detalhe, até que a totalidade da sua pintura se convertesse num espelho do mundo visível. O advento da retomada dos rigores científicos no campo das artes, foi infinitamente mais explorado pelos artistas renascentistas europeus. Com isso, podemos considerar que Jan van Eyck era essencialmente um artista do período Gótico Tardio. 616 Interpretando Elementos Secundários O objetivo que Jan van Eyck se propôs a alcançar em sua obra O Casal Arnolfini, foi um objeto de debate muito interessante no século XX, por autores de diversas áreas do conhecimento. A tentativa do pintor em mostrar uma cena privada extremamente detalhada, em que tudo que é representado, parece ter uma simbologia e consequentemente um direcionamento ao espectador (figura 1), trouxeram importantes questionamentos acerca da intencionalidade do artista com relação à sua obra. Segundo Ginzburg (1989, p.145) em se tratando de representações artísticas O conhecedor de arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis para a maioria.

6 Figura 1 O Casal Arnolfini, 1434, Jan van Eyck. Óleo sobre madeira, 81,8 x 59,7 cm. 617 Fonte: O contato com a imagem de uma obra de arte transforma nossas visões acerca de um determinado tempo e espaço, mas também pode suscitar novas inquietações sobre a ruptura e principalmente a permanência de determinadas práticas na contemporaneidade, modificando nossos olhares enquanto investigadores. Coli (1995, p. 109) enfatiza que A arte tem assim uma função que poderíamos chamar de conhecimento, de "aprendizagem". Seu domínio é o do não-racional, do indizível, da sensibilidade: domínio sem fronteiras nítidas, muito diferente do mundo da ciência, da lógica, da teoria. Domínio fecundo, pois nosso contato com a arte nos transforma. Porque o objeto artístico traz em si, habilmente organizados, os meios de despertar em nós, em nossas emoções e razão, reações culturalmente ricas, que aguçam os instrumentos dos quais nos servimos para apreender o mundo que nos rodeia. Mesmo em um período aonde a xilogravura já havia de certa forma sido difundida

7 (apesar de os temas praticamente terem ficado restritos ao campo das representações bíblicas) no século XV, os pintores se ocuparam de temáticas (ainda que ligadas ao universo religioso) em que o humano e o sagrado se misturam e podem revelar aspectos de transformação em diversos campos. A imagem do quadro O Casal Arnolfini pode ser um bom exemplo dessa postura. Esse retrato apresenta ao espectador um comerciante italiano, Giovanni Arnolfini, que estava nos Países Baixos em uma viagem de negócios, junto de sua noiva, Jeanne de Chenany. Os elementos religiosos estão dispostos por todo o quadro. A moldura do espelho ao fundo, mostra cenas da paixão de cristo. A única vela acesa no candelabro significaria a presença de Deus no quarto (figura 2). O terço além de ser um elemento religioso por si só, também foi entendido na obra, como um sinal de possíveis virtudes por parte da noiva. As laranjas perto das janelas dialogam com o estado de inocência de Adão e Eva antes de cometerem o pecado original (figura 3). Temos também a presença de Santa Margarida na cabeceira da cama ao fundo (figura 4). Gombrich (1999, p. 240) destaca que Um simples recanto do mundo real fora subitamente fixado num painel como que por mágica. [...]É como se pudéssemos fazer uma visita aos Arnolfini em sua residência. O próprio pintor acabou se retratando no espelho ao fundo juntamente com mais uma pessoa (figura 5). Esse detalhe torna a obra ainda mais singular em relação as pinturas que haviam sido feitas até então. 618 Figura 2 Vela - Detalhe da figura 1.

8 Figura 3 Laranjas - Detalhe da figura Figura 4 Santa Margarida - Detalhe da figura 1.

9 Figura 5 Espelho - Detalhe da figura CONCLUSÃO Como vimos ao longo deste trabalho, num primeiro momento foi realizado um sobrevoo na vida de Jan van Eyck, mostrando alguns detalhes de sua trajetória como artista e político. Já em um segundo momento, fizemos um pequeno mergulho nas características que definem o movimento da Arte Gótica, com ênfase no Gótico Tardio, estilo no qual o artista está inserido. Finalmente, em um terceiro momento, analisamos a imagem da obra O Casal Arnolfini, no que diz respeito às suas características físicas, artísticas e no diálogo com os símbolos religiosos. Segundo Santos (1996, p. 18) A Arte é um produto cultural que tem como objetivo a práxis histórico-social. Ela retrata a realidade da sua época. Contudo, muito mais do que somente retratar um casal burguês no século XV, Jan van Eyck nos brindou com uma preocupação intensa em detalhar o ambiente privado, mostrando assim, que as figuras humanas apesar de ainda ocuparem o centro das atenções do espectador no período, podem ser interpretadas a partir de elementos secundários e no caso

10 específico da obra O Casal Arnolfini esses elementos dialogam com valores religiosos. REFERÊNCIAS COLI, Jorge. O que é Arte. 15ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In:. Mitos, emblemas e sinais. Trad. Frederico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, GOMBRICH, Ernest Hans Josef. Revolução Permanente. In:. A História da Arte. Trad. Alvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, SANTOS, Yolanda Lhullier dos. A Produção Artística do Ponto de Vista Sociológico. ARTEunesp. São Paulo: UNESP, nº 12, * * * * * **