Superior Tribunal de Justiça

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1 HABEAS CORPUS Nº RS (2013/ ) RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ IMPETRANTE : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL ADVOGADO : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PACIENTE : JOSE LUCIMAR FLORES SIMÕES RELATÓRIO O EXMO. SR. MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ: JOSE LUCIMAR FLORES SIMÕES, paciente neste habeas corpus, estaria sofrendo coação ilegal em seu direito de locomoção, em face de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que denegou o HC n Depreende-se dos autos que o paciente foi denunciado pela suposta prática das contravenções penais descritas nos artigos 21 e 65 da Lei n /1941, com incidência da Lei Maria da Penha, porque teria praticado vias de fato contra sua ex-companheira, bem como, de forma proposital, teria perturbado a sua tranquilidade (Processo n. 017/ ). A impetrante sustenta a ocorrência de constrangimento ilegal, ao argumento de que deveria ser oferecida transação penal em favor do paciente, visto que o artigo 41 da Lei n /2006 veda a incidência da Lei n /1995 apenas aos crimes, e não às contravenções penais. Considera, portanto, que não pode ser aplicado o artigo 41 da Lei Maria da Penha às contravenções penais, sob pena de se dar interpretação extensiva em desfavor do acusado. Requer, liminarmente, seja suspenso o trâmite da ação penal, até o julgamento final deste writ. No mérito, pugna pela extinção da punibilidade do paciente ou, subsidiariamente, pela declaração de nulidade do processo, com o oferecimento de transação penal em favor do paciente. A liminar foi indeferida. Documento: RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 1 de 9

2 Informações prestadas. ordem. O Ministério Público Federal manifestou-se pela denegação da Em consulta processual realizada na página eletrônica do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, verifico que ainda não sobreveio a prolação de sentença nos autos da ação penal objeto deste writ. Documento: RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 2 de 9

3 HABEAS CORPUS Nº RS (2013/ ) EMENTA HABEAS CORPUS. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. LEI MARIA DA PENHA. CONTRAVENÇÃO PENAL. TRANSAÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. MANIFESTO CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. O Superior Tribunal de Justiça, alinhando-se à nova jurisprudência da Corte Suprema, também passou a restringir as hipóteses de cabimento do habeas corpus, não admitindo que o remédio constitucional seja utilizado em substituição ao recurso ou ação cabível, ressalvadas as situações em que, à vista da flagrante ilegalidade do ato apontado como coator, em prejuízo da liberdade do(a) paciente, seja cogente a concessão, de ofício, da ordem de habeas corpus. 2. Uma interpretação literal do do disposto no artigo 41 da Lei n /2006 viabilizaria, em apressado olhar, a conclusão de que os institutos despenalizadores da Lei n /1995, entre eles a transação penal, seriam aplicáveis às contravenções penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher. 3. À luz da finalidade última da norma e do enfoque da ordem jurídico-constitucional, tem-se que, considerados os fins sociais a que a lei se destina, o artigo 41 da Lei n /2006 afasta a incidência da Lei n /1995, de forma categórica, tanto aos crimes quanto às contravenções penais praticados contra mulheres no âmbito doméstico e familiar. Vale dizer, a mens legis do disposto no referido preceito não poderia ser outra, senão a de alcançar também as contravenções penais. 4. Uma vez que o paciente está sendo acusado da prática, em tese, de vias de fato e de perturbação da tranquilidade de sua ex-companheira, com quem manteve vínculo afetivo por cerca de oito anos, não há nenhuma ilegalidade manifesta no ponto em que se entendeu que não seria aplicável o benefício da transação penal em seu favor. 5. Habeas corpus não conhecido. VOTO O EXMO. SR. MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ (RELATOR): Documento: RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 3 de 9

4 Dos documentos trazidos à colação, verifico que o paciente foi denunciado pela suposta prática das contravenções penais descritas nos artigos 21 e 65 da Lei n /1941, com incidência da Lei Maria da Penha, porque teria praticado vias de fato contra sua ex-companheira, com quem manteve vínculo afetivo por cerca de oito anos, bem como, de forma proposital, teria perturbado a sua tranquilidade. O Ministério Público assim narrou os fatos em sua inicial acusatória (fls. 7/8): 1º FATO: No dia 14 de janeiro de 2012, em horário incerto (...), o denunciado, prevalecendo-se das relações afetivas que manteve com a vítima e fazendo uso de força física, praticou vias de fato contra sua ex-companheria (...), com quem manteve um vínculo afetivo por cerca de oito anos, restando um filho do relacionamento. Na ocasião, o denunciado achava-se em frente à residência da vítima e exigia que Maria o deixasse entrar. Diante da negativa, o denunciado empregou dois empurrões contra a vítima. 2º FATO: Entre o período de 14 de abril de 2012 até o dia 18 de agosto de 2012, por diversos horários, em locais incertos na cidade de Lajeado/RS, o denunciado, por acinte, perturbou a tranquilidade de sua ex-companheira (...) Nas oportunidades, o denunciado perturbou a vítima efetuando diversas ligações e enviando torpedos para seu celular. Esses inconvenientes ocorreram em diversos horários, inclusive durante a madrugada, período de repouso da vítima, obrigando-a a desligar seu aparelho telefônico. As mensagens enviadas pelo denunciado traziam teor pejorativo, com palavras como "safada" e "mentirosa", assim como alusões a práticas sexuais (...). As importunações ocorrem pelo fato de o denunciado não aceitar a separação com sua ex-companheira. Em , o Juiz singular recebeu a denúncia. Quando da audiência de instrução e julgamento, a defesa se Documento: RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 4 de 9

5 insurgiu contra o não oferecimento da proposta de transação penal em favor do paciente, tendo o pleito sido indeferido, em decisão assim fundamentada (fls. 39/40): Com efeito, a Lei Maria da Penha tem como objetivo a proteção integral à mulher contra qualquer tipo de violência, seja física ou psicológica. Dessa forma, não há que se falar em inaplicabilidade do art. 41 da Lei /06 às contravenções penais, porquanto estar-se-ia indo de encontro ao objetivo central do referido diploma legal. (...) Isso posto, INDEFIRO o pedido formulado pela defesa. Inconformada com a ausência de proposta do referido benefício, a defesa ingressou com remédio constitucional no Tribunal de Justiça estadual, tendo a ordem sido denegada, pelos seguintes fundamentos (fls. 60/61): Reproduzo, por oportuno, a decisão que indeferiu o pedido de liminar em favor da paciente: [...] O presente habeas corpus cinge-se a atacar a decisão que entendeu aplicável o artigo 41 da Lei nº /06 também às contravenções penais. No caso dos autos, é imputada ao acusado a prática de vias de fato e perturbação da tranquilidade, contravenções penais previstas nos artigos 21 e 65 do Decreto-Lei nº 3.688/41, com incidência da Lei nº /06, vez que figura como vítima sua ex-companheira. A interpretação literal do artigo 41 da Lei nº /06, como pretende o impetrante, contraria a ratio essendi da cognominada Lei Maria da Penha que, especificamente, afasta a possibilidade do deferimento dos beneplácitos legais da Lei nº 9.099/95, na busca por tornar mais efetivas as punições pela violência de gênero praticada contra a mulher, materializando o disposto no 8º do artigo 226 da Constituição Federal. Deste modo, o referido dispositivo, em interpretação teleológica e conforme a Constituição, deve ser observado de forma ampla, abarcando os crimes e as contravenções penais. Não é outro, aliás, o entendimento do Supremo Tribunal Federal: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ARTIGO 41 DA LEI Nº /06 ALCANCE. O preceito do artigo 41 da Lei nº /06 alcança toda e qualquer prática delituosa contra a mulher, até Documento: RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 5 de 9

6 mesmo quando consubstancia contravenção penal, como é a relativa a vias de fato. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ARTIGO 41 DA LEI Nº /06 AFASTAMENTO DA LEI Nº 9.099/95 CONSTITUCIONALIDADE. Ante a opção político-normativa prevista no artigo 98, inciso I, e a proteção versada no artigo 226, 8º, ambos da Constituição Federal, surge harmônico com esta última o afastamento peremptório da Lei nº 9.099/95 mediante o artigo 41 da Lei nº /06 no processo-crime a revelar violência contra a mulher. (HC , Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 24/03/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-112 DIVULG PUBLIC RTJ VOL PP RT v. 100, n. 910, 2011, p ) Pelo exposto, indefiro a liminar pleiteada. Com as informações nenhum elemento novo foi agregado aos autos, de modo que concluo pela denegação da ordem. Portanto, tratando-se de processo que revela violência contra a mulher, afastada está a possibilidade do deferimento dos beneplácitos legais da Lei nº 9.099/95. Assim, voto pela denegação da ordem. O cerne da controvérsia cinge-se a saber se é possível a aplicação de transação penal às contravenções penais praticadas contra a mulher no âmbito doméstico e familiar. Segundo o disposto no artigo 41 da Lei n /2006 (Lei Maria da Penha), "Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n o 9.099, de 26 de setembro de 1995." Isso significa que, independentemente da gravidade da infração penal, não é possível a aplicação do procedimento sumaríssimo, a fixação da competência dos Juizados Especiais Criminais, a concessão dos benefícios da transação penal e da suspensão condicional do processo, bem como de todos os demais institutos previstos na Lei n /1990, aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Ocorre que, como o artigo 41 da Lei Maria da Penha faz referência apenas a "crimes", e não a contravenções penais, defende a impetrante que seria possível o oferecimento da proposta de transação penal ao paciente. Documento: RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 6 de 9

7 Quando do julgamento do HC n /MS (DJe 31/5/2013), de relatoria do Ministro Og Fernandes, a Sexta Turma deste Superior Tribunal afirmou "serem inaplicáveis aos crimes e às contravenções penais regulados pela Lei Maria da Penha, os institutos despenalizadores da Lei n /95, por expressa vedação legal". Vale dizer, este Superior Tribunal firmou a orientação no sentido de que os institutos despenalizadores da Lei n /1995, entre eles a transação penal, não se aplicam a nenhuma prática delituosa contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, ainda que configure contravenção penal. Esse também foi o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do HC n /MS (DJ 13/6/2011), de relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que se adotou o posicionamento no sentido de que o artigo 41 seria aplicado aos crimes e às contravenções penais praticadas no âmbito de violência doméstica e familiar: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ARTIGO 41 DA LEI Nº /06 ALCANCE. O preceito do artigo 41 da Lei nº /06 alcança toda e qualquer prática delituosa contra a mulher, até mesmo quando consubstancia contravenção penal, como é a relativa a vias de fato. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ARTIGO 41 DA LEI Nº /06 AFASTAMENTO DA LEI Nº 9.099/95 CONSTITUCIONALIDADE. Ante a opção político-normativa prevista no artigo 98, inciso I, e a proteção versada no artigo 226, 8º, ambos da Constituição Federal, surge harmônico com esta última o afastamento peremptório da Lei nº 9.099/95 mediante o artigo 41 da Lei nº /06 no processo-crime a revelar violência contra a mulher. Isso porque, segundo o disposto no artigo 226, 8º, da Constituição Federal, "O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações." Assim, atento às disposições previstas no Capítulo VII do Título VIII da Constituição Federal, no sentido de que a família, base da sociedade, merece especial proteção do Estado, o legislador ordinário editou, em , Documento: RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 7 de 9

8 a Lei n /2006, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do 8º do artigo 226 da Constituição da República, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. O artigo 1º da Lei n /2006 prescreve, de maneira clara, o objetivo da Lei Maria da Penha, que foi, precipuamente, o de criar mecanismos capazes de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher: Art. 1 o Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do 8 o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Deu-se, portanto, concretude ao texto constitucional e aos tratados e convenções internacionais de erradicação de todas as formas de violência contra a mulher, com a finalidade de mitigar, tanto quanto possível, a violência doméstica e familiar contra a mulher (não só a violência física, mas também a psicológica, a sexual, a patrimonial, a social, a moral). Essa é a verdadeira essência do princípio da igualdade: tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. De fato, uma interpretação literal do dispositivo mencionado viabilizaria, em apressado olhar, a conclusão de que os institutos despenalizadores da Lei n /1995, entre eles a transação penal, seriam aplicáveis às contravenções penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher. Entretanto, à luz da finalidade última da norma e do enfoque da ordem jurídico-constitucional, tenho que, considerados os fins sociais a que a lei se destina, o preceito afasta a Lei n /1995, de forma categórica, tanto aos crimes quanto às contravenções penais praticados contra mulheres no âmbito doméstico e familiar. Documento: RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 8 de 9

9 Vale dizer, a mens legis do dispositivo citado não poderia ser outra, senão a de alcançar também as contravenções penais. Aliás, o próprio disposto no artigo 4º reafirma a necessidade de se observar os fins sociais a que se destina essa lei, em especial as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. A propósito, confira-se: Art. 4º Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Assim, uma vez que o paciente está sendo acusado da prática, em tese, de vias de fato e de perturbação da tranquilidade de sua ex-companheira, com quem manteve vínculo afetivo por cerca de oito anos, não vislumbro nenhuma ilegalidade manifesta no ponto em que se entendeu que não seria aplicável o benefício da transação penal em seu favor. À vista do exposto, não conheço do habeas corpus e, examinando seu conteúdo, não identifico constrangimento ilegal que pudesse me levar a, ex officio, conceder a ordem postulada. Documento: RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 9 de 9