na era digital Um naturalista

Tamanho: px

Começar a partir da página:

Download "na era digital Um naturalista"

Carolina Terra Raminhos
7 Há anos
Visualizações:

1 Um naturalista na era digital Desenha há mais de 20 anos e, em 1996, deixou tudo para se tornar ilustrador científico profissional. A mais recente exposição que comissariou foi inaugurada nos Açores e tem por título Florestas: Refúgios de Biodiversidade

2 Gisela Gaio-Oliveira Longe vão os tempos de criança, em que se entretinha a copiar os desenhos dos seus livros preferidos. Na época dos dois canais de televisão, não perdia um documentário sobre a vida selvagem, e desde que se lembra que sempre gostou da natureza, de a observar e desenhar. Com o passar dos anos, o engenho aguçou-se, mas a paixão é a mesma. Nuno Farinha, biólogo e ilustrador científico, considera-se uma pessoa feliz. Consegue trabalhar em áreas científicas muito diferentes e sentese na pele de um naturalista do séc. XIX. Poucos se podem orgulhar de ter recusado um emprego num organismo público para ir em busca de um sonho. Mas foi este o caminho que Nuno Farinha traçou, quando decidiu assumir a sua paixão pela ilustração científica e fazer dela o seu modo de vida. Nunca se arrependeu. Nascido em Lisboa em 1971, numa família de origens humildes ligada ao trabalho no campo, Nuno Farinha foi o primeiro na sua família a licenciarse e o primeiro a interessar-se pelo desenho. No entanto, sente uma grande afinidade com o seu avô materno, que morreu quando Nuno Farinha tinha apenas dois anos de idade: "Identifico-me muito com o meu avô na enorme vontade que ele tinha de aprender e de tentar pensar pela sua própria cabeça", refere. "O meu avô interessava-se muito por questões filosóficas e, sempre que o trabalho no campo o permitia, fazia vários quilómetros para ir estudar latim numa paróquia vizinha, só para conseguir entender o que os padres diziam durante a missa." Quando chegou o momento de escolher a licenciatura, Nuno Farinha teve de optar pela área que mais o atraía. A Biologia saiu vencedora, ficando a Engenharia de Minas, reflexo do seu interesse pela espeleologia, num meritório segundo lugar. A licenciatura foi feita na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, onde não passou despercebido, como refere o seu amigo e ex-colega de curso Gabriel Martins: "O Farinha [como é conhecido entre os amigos] era um daqueles alunos excepcionais que se contam pelos dedos de uma mão. Era capaz de tirar, em tempo real, apontamentos das aulas que frequentemente rivalizavam os do próprio professor. Sempre com uma organização impecável e uma caligrafia invulgarmente perfeita". Até à licenciatura Nuno Farinha nunca tinha feito nenhum tipo de formação em desenho. Mas no último ano conheceu Pedro Salgado, que tinha começado a dar cursos de ilustração científica a preto e branco na antiga Escola Politécnica. "O Nuno distinguiu-se de imediato como um dos verdadeiros talentos, com perfil de ilustrador científico típico", refere Pedro Salgado. "Era conhecedor das ciências, curioso, observador paciente, perfeccionista, rigoroso, com a inteligência moldada para a comunicação visual e conceptual". Estas características eram já bem conhecidas dos seus colegas de curso, como refere Gabriel Martins: "Nas aulas de Biologia Animal, eranos pedido que desenhássemos várias criaturas vistas ao microscópio, e uma vez mais o Farinha era a salvação para muitos, com os seus rascunhos ilustrados perfeitos sempre disponíveis para partilhar". O curso de Pedro Salgado permitiu a Nuno Farinha aumentar o rendimento do resolvi processo do desenho: "Aprendi a ter método, mesmo ao nível da observação, a perder tempo a procurar referências para perceber melhor o objecto que tenho à frente, o que quero transmitir dele", refere. No final da licenciatura, foi convidado por Pedro Salgado para fazer um estágio de um mês nas Canárias, juntamente com outros dois ilustradores que se tinham destacado nos cursos de ilustração. Fernando Correia e Ana Guimarães Ferreira O desafio era participar num projecto sobre a fauna ibérica, para o museu de Madrid. "Na altura, eles não se conheciam, mas passaram a trabalhar juntos em Portugal", refere Pedro Salgado. "Em 1993, quando me foi impossível deslocar a Portugal para dar mais um curso, enviar-lhes o programa, material didáctico, livros e instruções detalhadas para que o curso pudesse ser realizado por eles. Tudo correu bem, e a partir daí também eles passaram a leccionar ilustração científica em diversas escolas e instituições". A parceria entre os três ilustradores não impediu que Nuno Farinha trabalhasse durante três anos no Instituto para a Conservação

3 da Natureza (ICN), na conservação da lontra em Portugal. Mas, em paralelo, começou a experimentar outras técnicas de ilustração, como a ilustração a cores. "Fui comprando livros e material de desenho com o dinheiro que ganhava no ICN", recorda. Em 1996, decidiu assumir a sua paixão e começou a trabalhar como profissional da ilustração científica a tempo inteiro. "O Nuno conseguia que houvesse uma harmonia bastante grande no dia-a-dia de trabalho, graças à sua capacidade de ouvir os outros, aceitar as opiniões alheias e procurar conciliá-las com as suas", refere a ilustradora Ana Guimarães Faria. "O Nuno é um óptimo parceiro de trabalho: rigoroso, sempre disponível para corrigir, desde que fique melhor, e humilde. O trabalho do Nuno inspira confiança e é sempre muito agradável trabalhar

4 com ele", diz a paleontóloga Liliana Póvoas, que colaborou com Nuno Farinha em vários projectos, incluindo a exposição A Aventura da Terra (no Museu Nacional de História Natural e da Ciência). Hugo Dolores, ilustrador que colabora frequentemente com Nuno Farinha, ao nível da concepção de cartoons, partilha da mesma opinião: "O Nuno é uma pessoa extremamente acessível, que consegue passar de forma clara as ideias que tem para cada trabalho, mas, apesar disso, dá-me sempre grande liberdade para ser criativo". Nuno Farinha apercebeu-se muito cedo na sua carreira do papel dos computadores para o processo de ilustração: "A revista Fórum Ambiente, já extinta, pediume em 1998 o desenho duma rã para o dia seguinte, mas eu só tinha o desenho a preto e branco, em ponteado. Digitalizei-o e trabalhei a cor em duas ou três horas, obtendo um resultado muito realista". O investimento do seu tempo de ilustrador passou então a ser ao nível das técnicas digitais e actualmente quase todas as suas ilustrações são feitas em computador. Com

5 Habitats de Morcegos do Alto Minho Site institucional da empresa Empreendimentos Eólicos Vento Minho, Ilustração Digital 2D e 3D a exposição A Aventura da Terra, subiu mais um nível na concepção digital das suas ilustrações: "Foi com este projecto que tive as primeiras oportunidades para fazer tudo de raiz a 3D, desenhando a Terra e os vários planetas, e os efeitos de luz nestes objectos", refere. Mas a transição para os métodos digitais não foi pacífica: "Quando H comecei a fazer ilustração digital, comecei a ter problemas com os puristas da ilustração científica, que consideravam que a ilustração é apenas o que é desenhado H à mão", recorda. "Foi r engraçado que nos congressos do tema, quando eu pedia a outras pessoas que já estavam a fazer o mesmo ' que eu para me explicarem o seu trabalho, acanhavamse e fugiam da resposta, como se estivessem a fazer qualquer coisa de mal, vergonhosa para a actividade em si". "Não há qualquer problema em se assumir o que se faz, até porque com o computador consegue-se trabalhar com maior detalhe, o que leva a que se tenha mais trabalho e se perca

6 mais tempo do que quando se faz um desenho à mão de raiz", explica Nuno Farinha, e realça a importância do resultado final: "Ilustração científica é qualquer composição visual para ilustrar um processo. Se é feito à mão, por fotografia, ou de outra forma qualquer, depende apenas da criatividade. O importante é comunicar informação científica de uma forma clara e acessível, adaptada ao público em questão". Antes de se sentar à frente do computador, Nuno Farinha tem normalmente muito trabalho pela frente: "Tenho que reunir todas as referências que encontro sobre o tema a ilustrar, incluindo textos, fotografias e mesmo vídeos", afirma. "Assim consigo apreender o que foi feito de bom e de mau. Vejo qual é, por exemplo, a melhor forma de desenhar uma espécie, em termos de posição e de características diagnosticantes". No processo de pré-ilustração, Nuno Farinha não está de costas voltadas para a natureza, que aborda através da fotografia. "Durante os tempos de faculdade interessámonos ambos por fotografia e fazíamos recorrentes saídas de campo, só pelo prazer de caçar fotos de bichos e paisagens", recorda Gabriel Martins. Actualmente, Nuno Farinha aproveita muitos passeios em família para recolher fotografias para projectos em curso ou futuros: "O tempo é tão escasso que tenho que juntar o útil ao agradável, sem tentar condicionar demasiado o itinerário familiar". "Vejo o trabalho que faço com um enorme gosto profissional, e por isso as férias, o tempo livre e o trabalho propriamente dito se conjugam de uma forma muito agradável", afirma Nuno Farinha. "Quando a minha mulher me pergunta se ao menos quando estou de férias não posso deixar de trabalhar, eu só consigo explicar-lhe que não estou a trabalhar, mas a divertir-me a fazer algo de que gosto muito".

Documentos relacionados

Apontar uma estratégia de comunicação ambiental de um projeto escolar de EAS

Apontar uma estratégia de comunicação ambiental de um projeto escolar de EAS Seminário Agentes de educação ambiental, contributos de participação e cidadania Lisboa 9 de Maio de 2014 Associação Nacional