A trajetória feminina entre os Séculos XIX e XX na obra Missa do Galo: variações sobre o mesmo tema
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- Luiz Henrique Esteves Canário
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1 Fazendo Gênero G 8 - Corpo, Violência e Poder Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008 A trajetória feminina entre os Séculos XIX e XX na obra Missa do Galo: variações sobre o mesmo tema Regina Chicoski (UNICENTRO) 1 Palavras-chave: Missa do Galo; Trajetória feminina; Sedução. ST 66 Construindo novas relações de gênero: a presença feminina nos territórios do saber. Este artigo discute a trajetória feminina entre os Séculos XIX e XX na obra Missa do Galo: variações sobre o mesmo tema, organizada pelo escritor Osman Lins e publicada no ano de Contando com a participação de cinco renomados escritores brasileiros contemporâneos: Antonio Callado, Autran Dourado, Julieta de Godoy Ladeira, Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon e com a sua própria produção, Osman Lins organiza a obra, uma coletânea de contos em que todos os autores recriam, cada um a seu modo, ora se aproximando, ora se distanciando, uma das grandes obras-primas da literatura brasileira, o conto Missa do Galo de Machado de Assis, publicado no ano de 1889 no livro Páginas Recolhidas. A produção literária, bem como a forma de ver e considerar a literatura, vem ao longo do tempo passando por inúmeras transformações. A literatura que no passado apegava-se a aspectos estruturais, à linearidade do texto, à presença harmônica entre narrador, personagens, tempo e espaço, contemporaneamente rompe com tais padrões e embarca nos costumes e formas de vida da sociedade moderna ou melhor pós-moderna. Nesse novo universo, os textos apresentam linguagem interativa, decorrentes da intertextualidade, da imitação e da paródia, que cada vez mais ganham espaço e estão presentes nas produções literárias. A idéia de escrever uma nova versão do conto de Machado de Assis surgiu no ano de 1964 quando Osman Lins, juntamente com Julieta de Godoy Ladeira, considerando a grandeza literária do conto Missa do Galo, combinaram reescrevê-lo. O organizador almejava que cada escritor recriasse a seu modo, no seu estilo, o texto de Machado de Assis, porém numa perspectiva pré-sugerida, a fim de evitar repetições. No conto Missa do Galo escrito por Machado de Assis, a narrativa se desenvolve a partir do enlevo e da sedução que se dá entre as personagens Nogueira um adolescente e Conceição uma jovem senhora. Produzido em meados do século XIX, o conto deixa explícitas as características do contexto histórico-social no qual está inserido, afinal trabalha com a figura feminina mostrando-a sob a
2 2 perspectiva do comodismo, do preconceito e da submissão em relação ao homem. O enredo se refere a história da personagem Nogueira, um jovem de 17 anos que vai morar no Rio de Janeiro a fim de terminar seus estudos. Hospeda-se na casa do escrivão Menezes, que fora casado com uma de suas primas e agora vive com Conceição, sua segunda mulher, e dona Inácia sua sogra. Conceição, muito bondosa e passiva, facilmente suporta os esquecimentos do marido. Menezes, por sua vez, tem outra mulher e, um dia na semana, com a desculpa de ir ao teatro, dorme fora de casa. Em cada recriação do conto original, percebe-se, de forma incisiva e enfática, a representação da figura feminina. Nesse sentido, o enfoque das discussões está centrado na mulher e suas relações sociais ao longo do tempo, a fim de evidenciar, por meio das divergências observadas em cada texto, a trajetória feminina entre os séculos XIX e XX e o poder de sedução da mulher. Sempre que se discutem questões relacionadas à mulher e ao seu comportamento, seja na literatura ou em quaisquer segmentos sociais, é bastante comum vê-la tratada, ao longo da história, como objeto de dominação masculina relegada à submissão e a inferioridade perante o poder do homem. É, portanto, como reprimida e obediente que a mulher é caracterizada, especialmente até o final do século XIX e início do século XX, quando surge o pensamento feminista e, conseqüentemente, uma lenta e gradativa mudança na maneira de se ver e considerar a mulher socialmente. Para discutir tais questões toma-se por base a obra Da Sedução (1991) do sociólogo francês Jean Baudrillard. Segundo o autor, o feminino, embora visto por muitos como o sexo frágil, na verdade representa uma grande força perante o masculino devido ao poder que exerce e lhe é próprio: o poder da sedução. Desta forma, ao passo que a sexualidade é considerada fundamentalmente masculina, a sedução pode ser dita feminina por convenção (BAUDRILLARD, 1991, p. 12), ou seja, a arte de seduzir é, por excelência, algo próprio e está arraigado ao universo feminino. A sedução representa, portanto, o domínio do universo simbólico (BAUDRILLARD, 1991, 13), isto é, a mulher seduz a partir de símbolos, a partir de um constante jogo de aparências no qual o corpo é sempre o seu grande e principal trunfo. Nesse sentido, a sedução se configura como uma arma feminina, afinal é o que dá poder à mulher. Assim, o feminino deixa de ser considerado o lado frágil e dominado passando a ser visto como o ser dominante. Embora, em tempos passados, vivesse sob o domínio de uma sociedade demasiada machista e excludente, a mulher sempre teve seu poder, próprio da sua arte de seduzir. Essa idéia é defendida por Jean Baudrillard. Segundo o autor: A mulher tradicional não era nem recalcada, nem proibida de gozar; ela estava inteiramente dentro de seu estatuto, de nenhum modo vencida, de nenhum modo
3 passiva. [...] Sempre teve sua própria estratégia, incessante e vitoriosa estratégia de desafio (cuja forma maior é a sedução) (BAUDRILLARD, 1991, p. 25). A sedução diretamente ligada ao feminino supera o sexo, fundamentalmente masculino, porque o sexo é uma função: sexo e desejo são considerados naturais. A sedução, por sua vez, pertence à ordem do ritual é um jogo no qual prevalecem aparências, estratégias, símbolos e truques e, por ser um jogo, é totalmente reversível. Sendo assim, o feminino é já não o que se opõe ao masculino, mas o que seduz o masculino (BAUDRILLARD, 1991, p. 12). Para Baudrillard, portanto, o feminino nunca foi dominado, sempre foi dominante (BAUDRILLARD, 1991, p. 21). Enquanto isso, o masculino, aparentemente superior, foi apenas residual, uma formação secundária e frágil que é preciso defender à força de supressões, de instituições e de artifícios. [...] Vive apenas na finalidade do sexo que se esgota na reprodução ou no gozo (BAUDRILLARD, 1991, p. 21). Enquanto a mulher usa suas artimanhas e estratégias para conseguir tudo aquilo que quer, o homem se satisfaz simplesmente pelo sexo, pelo prazer e pela sensação de potência. É, portanto, sob esse viés de observação e vendo a sedução como uma arma feminina de transformação e de conquista, que serão analisadas as atitudes e comportamentos da personagem Conceição em cada um dos contos presentes na obra Missa do Galo: variações sobre o mesmo tema. Observando as várias recriações do conto Missa do Galo, de Machado de Assis, é facilmente perceptível a recorrência que todos os autores fazem à sedução como algo que dá poder à mulher e, a partir disso, a caracterização da figura feminina, ora mostrada sob a perspectiva da submissão gerada pelo patriarcado, ora mostrada num estágio de transformação psíquica e social ou ainda apresentada num momento de auto-afirmação e conquista de direitos e valores perante a sociedade da qual faz parte. Ao começar pelo texto de Machado de Assis, aquele que serviu de inspiração para a criação desta nova obra, é preciso fazer uma viagem no tempo, voltando à realidade do século XIX, mais precisamente 1889, ano em que foi publicado o livro Páginas Recolhidas em que está o conto Missa do Galo. Como nessa época ainda reinava um profundo preconceito social que abrangia várias classes e grupos de pessoas, não resta dúvida que a classe feminina também enfrentava muito preconceito, embora já se principiasse, com o feminismo, a formação de um pensamento diferenciado sobre a mulher. Deste modo, no texto de Machado de Assis a mulher representada pela personagem Conceição é colocada sob a perspectiva da submissão e do comodismo. Embora a narrativa não se aprofunde na 3
4 4 descrição das situações de preconceitos enfrentadas por ela, alguns aspectos no início do texto já deixam tal idéia subentendida. Conceição sabia, por exemplo, que o marido tinha uma amante, mas fingia não saber; achava a traição por parte do homem natural e preferia manter as aparências de um casamento feliz. A fragilidade da personagem, fruto de uma sociedade machista e autoritária, a deixam sem reação ativa diante do marido. É certo, porém, que no decorrer do texto Conceição mostra-se um pouco mais ousada, arrisca-se a manter um diálogo cheio de emoções e desejos com o hóspede da casa, mas tudo às escondidas como se, diante de tanta opressão, para ela bastasse simplesmente a sensação de, ao menos em pensamento, trair o marido e se vingar mesmo que ele jamais tomasse conhecimento do fato. O texto de Nélida Piñon dá destaque para o estereótipo negativo construído em torno da mulher. Nesse conto, a situação é ainda mais agravante, porque a história é narrada por Menezes o que traz à tona o discurso machista e preconceituoso de muitos homens em relação ao sexo oposto. A personagem, à medida que narra suas aventuras amorosas fora de casa, deixa explícito a total obediência que a esposa lhe dedica como se fosse sua obrigação e entre eles houvesse uma relação de poder em que ele - o homem - ditava as normas e ela - a mulher - cumpria-as sem contestações. Esse é o texto que apresenta de forma mais acentuada os preconceitos enfrentados pela classe feminina ao longo dos tempos. Embora a obra tenha sido publicada no ano de 1977, Nélida Piñon não aborda aspectos contemporâneos acerca das lutas empreendidas pela mulher e das inúmeras conquistas sociais provenientes da sua garra e determinação, mas opta por apresentar enfaticamente a degradante realidade feminina, a exemplo do que Machado de Assis faz em seu texto, revelando com isso que essa situação ainda persiste. Já sob o enfoque de Osman Lins, diferentemente do que ocorre nos textos anteriores, está presente uma perspectiva em torno da mulher mais moderna e nos moldes da realidade contemporânea. A personagem caracteriza-se, em especial, pela determinação. Além de suas atitudes que são mais ousadas e provocantes está presente no texto também a referência aos aspectos físicos da personagem os seios e as pernas num explícito culto à forma, como se o corpo fosse o trunfo da mulher para conquistar aquilo que quer argumento ou ponto de vista que freqüentemente se faz presente nos textos e tendências atuais e que, incansavelmente, se propaga por meio do discurso presente na mídia. Como pode se perceber nesse exemplo: Entrevejo no roupão entreaberto, a branda formação de carne que anuncia os seios (1977, p. 50). Observando a figura feminina apresentada por Julieta de Godoy Ladeira, nota-se o destaque dado à determinação e à autonomia buscada pela personagem. Trata-se do único texto da obra que
5 5 coloca a narrativa na voz de Conceição. Ao fazer isso possibilita a percepção do que se passa na mente da personagem e o que a leva a agir da forma como age. Ao contrário dos textos que apresentavam um estereótipo feminino fundamentado no preconceito e na submissão, esse mostra uma mulher indignada com a opressão e as humilhações vividas e, por isso, decidida a reverter o jogo e se vingar do marido, usando o poder da sedução para alcançar o seu ideal. O aspecto mais interessante deste texto é que Conceição se configura como a porta-voz da classe feminina. (...) todas as mulheres andavam em meus passos, sentindo-se atraentes e nuas quando atravessei a sala indo para a poltrona como se não o visse (p. 61). O desejo de vingança é mostrado explicitamente e sem meias palavras. O que em Osman Lins é percebido a partir do desenvolvimento das ações, aqui se revela no próprio discurso da personagem que queria o Menezes ali atrás das cortinas (p. 61) vendo o que ela seria capaz e sentindo na pele os reflexos do seu novo modo de pensar e agir. Já o texto de Antonio Callado representa uma das formas mais diferenciadas e inovadoras de reescrita do conto. A narrativa colocada na voz de D. Inácia, a mãe de Conceição, distancia os protagonistas da história do seu público leitor. Desta forma, a figura feminina, na pele da personagem Conceição, é apresentada sob o olhar repreensivo da mãe que em meio às lembranças e recordações do seu passado faz, por vezes, referência ao comportamento ousado da filha. O autor reescreve o conto de Machado de Assis de uma posição totalmente diferente em relação aos demais, mas mantém uma estrutura que permite perceber, mesmo que de forma implícita, a mulher enquanto representação da luta por seus ideais. Embora haja escassez de informações em relação às atitudes de Conceição, pode-se estabelecer um paralelo comparando o comportamento de D. Inácia em relação à sua filha. Mesmo sem aprofundar o olhar crítico, essa relação já denota uma transformação de pensamento oriunda de diferentes gerações. Isso é perceptível ao observar as ações da mãe e da filha: a mulher que no passado, a exemplo de D. Inácia, simbolizava a submissão, hoje, em Conceição, representa a autonomia e a autoconfiança perante a sociedade. O comportamento feminino que até agora apareceu ora alienado, ora em fase de transição ou, por vezes, marcado por um discurso timidamente ousado, fruto em alguns casos de insinuações e meias palavras, alcança no texto de Autran Dourado o auge no que diz respeito à superação dos preconceitos femininos e à consolidação da mulher em relação à sua independência social ou financeira, a exemplo do que pode ser observado atualmente. Esse texto se configura como o rompimento de toda e qualquer atitude preconceituosa acerca da mulher. Ao apresentar um narrador onisciente, é por meio da voz do outro que vem à tona o desenvolvimento da história, em que a personagem Conceição com todo o atrevimento e a ousadia da
6 6 mulher atual se revela. Nesse texto a transformação feminina ao longo do tempo é visível. Conceição, quando estava casada com Menezes, era submissa e obediente às suas vontades. Com a passagem do tempo e a morte do marido, casa-se novamente, mas dá um basta a qualquer forma de alienação. Tornase dona de si, impõe o seu ponto de vista e age unicamente de acordo com suas vontades. Além disso, faz questão de mostrar que é capaz de dominar e ter o marido em suas mãos. O texto de Lygia Fagundes Telles apresenta certo grau de distanciamento dos demais pelo fato de ser narrado em 3ª pessoa e apresentar simultaneamente o que ocorre com todos os personagens. A observação da mulher centralizada na personagem Conceição, embora de forma atenuada, revela a ousadia da personagem que conduz a cena tomando as iniciativas e investindo no jogo sensual estabelecido entre ela e Nogueira. Atitudes que a revelam não do ponto de vista da alienação, mas colocam-na numa posição de destaque para empreender lutas em favor das conquistas femininas enquanto classe social vítima de preconceito ao longo dos tempos. Trata-se de um texto que comporta uma ou outra informação de cada um dos textos anteriores. Reunidas, tais informações remetem à discussão presente desde o princípio da análise: a mulher, o preconceito social enfrentado por ela e a sua inserção na sociedade perante a formação de um novo pensamento referente às diferenças de gêneros. Desta forma, tem-se em cada um dos contos da obra Missa do Galo: variações sobre o mesmo tema, uma abordagem à mulher e a sua representatividade social, cujo elo está na sedução. As várias Conceições apresentadas no decorrer da obra têm algo em comum: em maior ou menor grau acabam sempre ousando e seduzindo independente do contexto de época e da situação que assumem perante ao marido, o que deixa evidente em todos os textos a imagem da mulher sedutora como a mulher poderosa. Se a sedução pode ser dita feminina por convenção (BAUDRILLARD, 1991, p. 12), seduzir é algo próprio do universo feminino, é o poder da mulher e somente ela seduz. Por isso, em todos os textos analisados é unicamente pela sedução que a mulher na pele da personagem Conceição evolui, cresce e conquista seu espaço. Por meio do caráter dialógico de assimilação e transformação da escrita do outro, Missa do Galo: variações sobre o mesmo tema traz à tona com igual maestria a representação da mulher na sociedade em várias épocas, mostrada sob diversos enfoques narrativos, ao mesmo tempo em que mostra a sedução como algo que dá poder à mulher. Tal fato enriquece a obra que aborda a trajetória da mulher na sociedade entre os séculos XIX e XX, permitindo ao leitor conhecer e refletir a respeito das gritantes desigualdades de gêneros existentes no meio social ao longo dos tempos, bem como, as
7 7 transformações de pensamentos referentes à mulher e a posição de destaque que, atualmente, ela exerce na sociedade de um modo geral. Adentrar o mundo da literatura é constantemente se deparar com novas formas de escrever, de argumentar e de expressar pensamentos num contínuo diálogo com o passado que se configura no presente e tende a manter-se vivo até o futuro, atravessando gerações. Referências bibliográficas BAUDRILLARD, Jean. Da Sedução. São Paulo: Papirus, LINS, Osman (org.). Missa do galo: variações sobre o mesmo tema. São Paulo: Summus, Essa pesquisa contou com a participação de Adrieli Pontarolo, na modalidade Iniciação Científica Voluntária da UNICENTRO.
Machado de Assis Nélida Piñon Osman Lins Julieta de Godoy Ladeira Antonio Callado Autran Dourado Lygia Fagundes Telles
sumário Apresentação 7 Machado de Assis 13 Nélida Piñon 25 Osman Lins 43 Julieta de Godoy Ladeira 53 Antonio Callado 65 Autran Dourado 77 Lygia Fagundes Telles 95 apresentação Em 1964, eu e Julieta de
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