POESIA E MÚSICA: DIÁLOGOS SOBRE A INFÂNCIA

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1 POESIA E MÚSICA: DIÁLOGOS SOBRE A INFÂNCIA Cíntia Pires de Lemos Ramires (PG/GP- UENP/Jac.) ramirescintia@hotmail.com Hiudéa T. R. Boberg (Orientadora UENP/Jac.) A poesia é considerada um gênero tão sublime que às vezes parece ser inacessível ao leitor. Com experiências acumuladas em várias escolas e traçando considerações importantes sobre a abordagem de poemas, Hélder Pinheiro, em seu livro Poesia na sala de aula, leva ao professor um novo olhar sobre este gênero literário para que o trabalho com os alunos possa tornar-se mais prazeroso e eficaz. Servindo-se de seus estudos, este artigo oferecerá ao professor uma proposta de trabalho com poesia e música, resgatando os momentos de infância nos textos líricos de Casimiro de Abreu e Chico Buarque. É intrínseco ao homem apreciar diferentes tipos de artes: literatura, música, pintura, entre outras. Mas há aquela que exige de seu admirador uma atenção especial para que seja apreciada esteticamente da forma como é. A poesia é uma dessas manifestações artísticas apresentada de forma escolarizada ao aluno, não sendo apenas apreciada pelo prazer que a leitura evoca, mas também acompanhada de um contexto em que estão inseridas informações sobre seu autor, escola literária a que ele pertence, sua linguagem e outras características. Devido, talvez, a uma abordagem sem o zelo necessário para se considerar o conjunto de fatores mencionados que circunda esse gênero literário é que se distancia a poesia de seus leitores. Estimando as possibilidades de trabalho com a poesia, nos perguntamos como abordá-la se de um lado temos uma manifestação lírica e

2 de outro uma estética que deve ser explorada em seu tema, estilo e composição. O que devemos primeiro fazer é conquistar nossos leitores por meio de uma seleção de textos, um poema que os sensibilizem a ponto de acompanharem com interesse o trabalho com o texto literário. Encontramos essa ideia nas palavras de José Hélder Pinheiro Alves (2007), quando destaca a função social da poesia: trata-se de uma experiência íntima que muitas vezes captamos pelo brilho do olhar de nosso aluno na hora de uma leitura, pelo sorriso, pela conversa no corredor. (PINHEIRO, 2007, p. 23) Em Poesia na sala de aula (2007), o autor defende o poder da leitura desse gênero, mencionando o discurso do poeta e crítico português Adolfo Casais Monteiro: É certo que tal como a linguagem da razão, a poesia também procura uma verdade. Mas é uma verdade daquela dimensão humana em que dois mais dois não é igual a quatro. Nem por isso é uma linguagem do absurdo, muito menos do irreal. O mais estranho poder da poesia é que torna o mundo mais verdadeiro, exatamente porque, nela, as palavras não funcionam como sinais, ou como rótulos, mas como substitutos de alguma coisa que permanece por traz delas. (apud PINHEIRO, p.102) O professor Pinheiro Alves (2006) ressalta ainda que a convivência cotidiana com a poesia pode nos levar a esta percepção do mundo mais verdadeiro de que nos fala o poeta. Com base nessas orientações, nosso artigo, que é fruto dos estudos empreendidos no Grupo de Pesquisa Literatura e Ensino da UENP 1, tem o propósito de apresentar algumas considerações sobre como abordar a poesia em turmas de 9º ano do Ensino Fundamental até ao 2º ano do Ensino Médio. Antes de exibir a proposta, vale resgatar as condições para um bom trabalho com a poesia, elaboradas por Pinheiro Alves (2007). Em 1 Universidade Estadual do Norte do Paraná Centro de Letras, Comunicação e Artes/ Jacarezinho/PR.

3 primeiro lugar, considera indispensável que o professor seja um leitor, de modo que suas experiências e saberes adquiridos possam cativar seus alunos. Outra condição é o professor ter conhecimento dos interesses dos alunos, quanto ao tema que gostam de discutir e aqueles que os sensibilizam, como amor, solidão, perdas, medo, aventuras, entre outros. Por último, pondera que o ambiente onde se realizará a leitura da poesia e as condições para que isso ocorra são elementos de extrema importância quando se pretende criar um atmosfera agradável para a experiência poética. Também não devemos nos esquecer de que todo trabalho com a poesia pode explorar os cinco níveis de que o gênero é composto: lexical, semântico, sintático, gráfico e sonoro. Por economia de espaço, nosso trabalho se voltará para a aproximação do poema a uma música, por meio de um tema em comum, portanto, o passo seguinte é a abordagem dos recursos literários utilizados pelos autores dos textos selecionados. Após as considerações sobre o trabalho poético, seria interessante conhecer melhor o gênero literário com o qual iremos trabalhar. De acordo com Massaud Moisés, A poesia seria a comunicação, a expressão do eu. Como a palavra é o signo literário por excelência, teríamos que a poesia é a expressão do eu pela palavra, quer dizer, a expressão duma situação em que o eu se torna espectador e até ao mesmo tempo, ou por outra, sujeito e objeto simultaneamente. Assim a palavra exprimiria o esforço do próprio eu para comunicar-se como objeto. (1968, p. 32) A fim de explorar a subjetividade, o eu contido nas poesias em geral, escolhemos um poema cuja temática envolve a subjetividade de qualquer pessoa: a infância. É interessante planejar uma motivação inicial, precedente à leitura do poema, para que sejam criadas expectativas nos alunos. Assim, no dia anterior a esta aula, o professor poderá pedir aos alunos que tragam uma

4 foto que marcou a infância dos discentes. Com as fotos em mãos, os alunos irão partilhar a importância daquele registro e como ele representa um momento de suas infâncias. Logo que o professor perceba a exposição da subjetividade dos alunos, poderá passar à leitura do poema Meus oito anos, de Casimiro de Abreu (vide anexo). A subjetividade expressa no poema talvez possa parecer hiperbólica aos alunos. Para minimizar este fato, durante a leitura da poesia, o professor pode colocar uma música de fundo que marcou época naquele período da infância de seus alunos. Assim, a sensação de exagero poderá ser reduzida pela sensibilidade provocada nos alunos, aproximando a mensagem poética às suas vidas. Após a leitura com cuidado, respeitando a musicalidade dos versos e destacando a entonação, o professor poderá explorar as peculiaridades de estilo do poema, bem como fazer algumas referências à estética romântica, que no Brasil se estendeu entre 1836 e Coincide com um momento de busca da identidade nacional, por causa da independência que o Brasil conquistou em 1822, e por isso, a literatura refletiu aquele desejo do brasileiro que tentava se libertar dos modelos europeus e criar seu modo de ser. Aquele período compreende três gerações de escritores: a nacionalista, a ultra-romântica e a condoreira. O poema exibido pertence à segunda geração e tem como característica predominante o subjetivismo e a saudade da infância. Entretanto, há outras marcas da primeira geração que permanecem e remetem à formação da identidade brasileira, como o nacionalismo, que abrange a cor local, a fauna e o próprio habitante. No decorrer do poema, é perceptível a saudade que o eu-lírico demonstra sentir por sua infância. Mais perceptível ainda são os motivos pelos quais cultiva esta saudade. Aparenta-se que o sentimento não seria o mesmo sem os elementos elencados em todas as estrofes.

5 Na primeira estrofe, temos as palavras amor, sonhos e flores que também lembram as do Hino Nacional. Em seguida, encontramos bananeiras e laranjeiras, que exaltam a diversidade da flora brasileira. Na sexta estrofe há também referências às mangas e pitangas. Na segunda estrofe é destacada a natureza por meio da descrição do mar, do céu, do mundo e, em síntese, da vida. E na terceira estrofe, o poeta faz menção à noite, ao céu, terra, ondas e à lua, sempre de forma harmoniosa, revelando sua profunda afeição e apego por todos esses elementos que assinalaram a sua infância. No quinto verso da terceira estrofe temos a expressão Em vez das mágoas de agora, que ressalta ainda mais o momento de angústia e melancolia vivido pelo eu-lírico adulto. A sexta estrofe parece recuperar traços do indianismo, quando o eu-lírico se dizia livre filho das montanhas/ pés descalços, braços nus, correndo nas campinas; a roda das cachoeiras/.... Ainda na mesma estrofe, temos rezava às Aves-Marias, numa clara referência aos costumes religiosos integrados à cultura nacional. Percebe-se que o poema assume um caráter saudosista por meio da presença do pessimismo, do tédio e da desilusão com que o eu-lírico vê o momento presente. De acordo com Alfredo Bosi (2006, p. 116), as produções de Casimiro de Abreu possuem um ritmo cantante e expressão fácil; logo, podemos afirmar que tais características contribuem para ressaltar a musicalidade mais expressiva e notável. Como exemplo de uma subjetividade às avessas, em relação a esse poema, temos a música de Chico Buarque, Doze anos (vide anexo). A letra desta música está inserida no livro Cinco estrelas, da Coleção Literatura em Minha Casa. Com comentários importantes sobre os autores dos poemas que compõem o livro, Ana Maria Machado faz excelentes considerações sobre Chico Buarque como poeta:

6 Nem toda letra de música é um exemplo de poesia. Mas quase todas as de Chico Buarque podem ser consideradas excelentes poemas. Ele é um poeta de obra variada, com um lirismo muito característico e extremamente brasileiro. Mas a delicadeza dos sentimentos que é capaz de evocar em seus versos na exclui uma boa dose de humor [...]. (ANDRADE, 2001, 15) compositor: Busca, também, evidenciar a linguagem utilizada pelo Nesses poemas que escolhemos, pode-se apreciar o poder que Chico tem para usar uma linguagem quase cinematográfica, como se fosse uma sucessão de fotografias em movimento. Essa técnica pode servir para evocar, com ternura e saudade um pouco triste, algumas cenas que fazem parte das memórias da infância e adolescência [...]. Além disso, num processo muito característico da poesia contemporânea, Chico Buarque em seus poemas faz alusões a outras obras culturais filmes, contos de fadas e poemas como se sua obra estivesse conversando com as de outros artistas. (ANDRADE, 2001, 16) A música Doze anos pertence ao disco Ópera do Malandro, lançado em De acordo com o livro da coleção, Literatura em minha casa, quando a música foi composta, a repressão política promovida pela ditadura militar forçou o compositor a modificar a letra durante a gravação, substituindo a palavra piroca por pipoca, por causa da censura. Apesar de manter a rima, destrói-se o sentido do verso. Diferentemente do poema de Casimiro, Chico Buarque expõe um sujeito que recorda a transição de infância para a adolescência com malícia, em que considera as travessuras praticadas o grande motivo de sua saudade. Com uma linguagem chula, o compositor exibe sem pudor a personalidade de um adolescente, suas atitudes e seus pensamentos. A transição da infância para a adolescência se percebe porque as palavras-chave da primeira estrofe referem-se às atitudes de uma criança, como se divertir com lata, figurinha, matando passarinho,

7 colecionando minhoca, jogando botão e fazendo troca-troca. Já na segunda estrofe, o sujeito começa a mudar suas atitudes a partir do despertar do erotismo, próprio da puberdade. As ações que evidenciam essa mudança é pular muro, olhar fechadura, ver mulher nua e concurso de pipoca. No entanto, sua personalidade ainda não está formada, porque estas atitudes ainda se misturam a outras de molecagem, como as brincadeiras infantis e a fissura por doces. São evidentes as diferenças entre os dois textos apresentados. Enquanto o sujeito do primeiro poema brinca com os elementos da natureza, o sujeito da música brinca com lata, minhoca, pipa e outros divertimentos. Na relação interpessoal, o eu-lírico da poesia casimiriana prende-se à família, enquanto o sujeito da música é independente. Outros traços que se repelem nos dois textos são: o sentimentalismo do bom moço no primeiro texto versus o malandro de Doze anos. Apesar de alguns estudos apontarem haver crítica de Chico Buarque ao poema casimiriano, podemos entender que ela não acontece propositalmente. O compositor utiliza-se da produção romântica para recompor e atualizar a essência do moleque do século XX. Depois de todas essas considerações sobre a poesia e a música abordadas, o professor poderá instigar os alunos a comentarem as relações existentes entre os dois textos e o mundo do aluno. Uma sugestão para que essa discussão se inicie pode ser a idealização da infância presente no primeiro poema versus a realidade das atitudes praticadas pelas crianças e adolescentes inseridas na música. A proposta de abordagem com estes diferentes gêneros, na estrutura e suporte, embora comuns na temática e subjetividade, podem levar nossos alunos a apreciarem a poesia por um novo olhar, já que foram expostos os motivos da composição em ambos e as ideias defendidas por seus autores. O contraponto entre as três realidades a do poeta, do compositor e a do leitor confere mais autenticidade à matéria lida,

8 tornando-as mais próximas em termos de reconhecimento das atitudes humanas em qualquer tempo e lugar, desmitificando o literário como algo de sentido inalcansável. Espera-se que esta proposta possa minimizar a distância que nossos alunos mantêm da poesia e, por conseguinte, aproximá-los da prática da leitura literária, que ao mesmo tempo abrange de maneira cíclica os sentimentos do eu e do outro. REFERÊNCIAS ABREU, Casimiro de. Meus oito anos. Disponível em: < Acesso em 15/08/09. ANDRADE, Carlos Drummond et al. Cinco estrelas. Col. Literatura em minha casa, v.1. Rio de Janeiro: Objetiva, BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43 ed. São Paulo: Cultrix, MOISÉS, Massaud. A criação literária. 2 ed. São Paulo: Melhoramentos, PINHEIRO, Hélder. Poesia na sala de aula. 3 ed. rev. e ampl. Campina Grande: Bagagem, 2007.

9 Anexos Meus oito anos Casimiro de Abreu Oh! que saudades que tenho Da aurora da minha vida, Da minha infância querida Que os anos não trazem mais! Que amor, que sonhos, que flores, Naquelas tardes fagueiras À sombra das bananeiras, Debaixo dos laranjais! Como são belos os dias Do despontar da existência! - Respira a alma inocência Como perfumes a flor; O mar - é lago sereno, O céu - um manto azulado, O mundo - um sonho dourado, A vida - um hino d'amor! Que aurora, que sol, que vida, Que noites de melodia Naquela doce alegria, Naquele ingênuo folgar! O céu bordado d'estrelas, A terra de aromas cheia As ondas beijando a areia E a lua beijando o mar! Oh! dias da minha infância! Oh! meu céu de primavera! Que doce a vida não era Nessa risonha manhã! Em vez das mágoas de agora, Eu tinha nessas delícias De minha mãe as carícias E beijos de minha irmã! Livre filho das montanhas, Eu ia bem satisfeito, Da camisa aberta o peito, - Pés descalços, braços nus - Correndo pelas campinas A roda das cachoeiras, Atrás das asas ligeiras Das borboletas azuis! Naqueles tempos ditosos Ia colher as pitangas, Trepava a tirar as mangas, Brincava à beira do mar; Rezava às Ave-Marias, Achava o céu sempre lindo. Adormecia sorrindo E despertava a cantar! Oh! que saudades que tenho Da aurora da minha vida, Da minha infância querida Que os anos não trazem mais! - Que amor, que sonhos, que flores, Naquelas tardes fagueiras A sombra das bananeiras Debaixo dos laranjais! Doze anos Chico Buarque Ai, que saudade que eu tenho Dos meus doze anos Que saudade ingrata Dar banda por aí Fazendo grandes planos E chutando lata Trocando figurinha Matando passarinho Colecionado minhoca Jogando muito botão Rodopiando pião Fazendo troca-troca Ai, que saudade que eu tenho Duma travessura O futebol de rua Sair pulando muro Olhando fechadura E vendo mulher nua Comendo fruta do pé Chupando picolé Pé-de-moleque, paçoca E disputando troféu Guerra de pipa no céu Concurso de pipoca