A visão jurídica no contrato social de Rousseau

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1 A visão jurídica no contrato social de Rousseau Jean-Jacques Rousseau, suíço nascido em Genebra, um dos mentores do iluminismo, escreveu esta obra em Na sua biografia encontramos relato da tentativa de Rousseau em ser preceptor, ofício semelhante ao nosso pedagogo dos dias hodiernos. Provavelmente foi a sua primeira investida profissional em busca da sobrevivência. Em 1755, já mais maduro, consegue publicar dois importantes discursos de sua lavra: Sobre a Origem da Desigualdade e Sobre a Economia Política. Em 1762 veio à luz o seu grande tratado, razão maior para esta apresentação e suas considerações jurídicas acerca do Contrato Social. Após a publicação da obra supracitada, Rousseau precisou se exilar em Neuchâtel, pois começou a sofrer perseguições políticas, o que culminou com a condenação pública de seu trabalho. No período de exílio, J. J. Rousseau fez-se desabrochar seu lado jurista original e, assim, se dedicou a redação do projeto de Constituição de Córsega. Ultrapassado esse introito, teceremos comentários sobre alguns trechos selecionados do Contrato Social de Rousseau.

2 8 Jean-Jacques Rousseau Logo na gênese do seu trabalho, Rousseau assevera que o homem nasceu livre, e por toda a parte geme agrilhoado; o que julga ser senhor dos demais é de todos o maior escravo. Sem dúvidas, o que o douto suíço quis exclamar foi que é dado ao homem uma espécie de liberdade assistida, ou melhor, uma semiliberdade. O homem é livre, mas é preso pelas convenções, pelas regras e normas, pelo convívio cultural entre sociedade etc., fazendo com que, dessa forma, a liberdade que lhe é devida por natureza, não seja uma liberdade integral ou pura, e sim uma condição livre até certo modo, e esse certo modo pode vir de vários aspectos. Aquele que julga ser o maior de todos é na verdade o menor dentre os escravos. Foi esse pensamento que consegui extrair da segunda frase do filósofo. E o porquê disto, ele mesmo explica, trechos à frente: Nunca o mais forte o é tanto para ser sempre senhor, se não converte a força em direito, e em dever a obediência. Sabedoria pura. O jovem um dia ficará velho, assim quem é forte um dia fica fraco, e dependendo de como se comportou, assim será revertido em sua direção. O grande Machiavel chamava a atenção dos reis: Seja temido e amado, mas se preferir seja mais temido. Paradoxalmente, pensa Rousseau, e nós estamos nesta mesma esteira. O temor um dia passa, o amor não, o amor fica. Se temermos uma pessoa, no momento que conseguirmos vencer o temor, iremos à desforra com ela, mas se amarmos, não, se amarmos, iremos respeitar sempre.

3 Do Contrato Social Princípios do Direito Político 9 O temor contribuiu para as corrupções da carne, para as rebeliões do comandados, provocar temor é o mesmo que contar um dia a menos em seu reinado. A inteligência consiste em reverter toda a força que possui em normas e critérios, porque através delas, além de conseguir um maior raio de aplicação, conseguirás também a razão em qualquer lugar que prevaleça a racionalidade, a razoabilidade e a dignidade humana. Rousseau demonstra em todos os seus discursos que a liberdade é o maior direito que o homem goza, e a sua renúncia é algo nefasto e condenável. Ainda na trilha do primeiro capítulo, encontramos uma forte indignação do iluminista em relação à escravidão. Eis que o mesmo adverte: Só há o direito de matar o inimigo quando não se pode torná-lo escravo; logo, o direito de escravizá-lo não vem do direito de matá-lo; é pois uma troca iníqua fazer com que ele compre, à custa de sua liberdade, a vida a que não tem direito algum. Não há como não reconhecer a profundidade dessas palavras. Podemos perceber nesse desabafo de Rousseau, um retrato fidedigno da sociedade ao qual ele vivia e estava a séculos de distância intelectual e humana. Como pode um homem aceitar ser escravo para não morrer, quando a escravidão já é a morte por antecedência. Antes mesmo da revolução francesa e da resistência de Rousseau à escravidão, na Grécia antiga, Alcidamo de Eléia, nascido provavelmente no século IV a.c., foi

4 10 Jean-Jacques Rousseau o primeiro homem que a história narra ser contrário à escravidão. Em seus escritos, Alcidamo deixou a seguinte máxima: Deus criou livres todos os homens, a natureza não fez ninguém escravo. Rousseau parece ter lido as palavras de Alcidamo, quando escreveu as suas: O direito de escravidão é nulo, por ser ilegítimo, por ser absurdo e nada significar. As palavras escravidão e direito são contraditórias e mutuamente se excluem. Devemos louvar a sua consciência e coragem. As atitudes de Rousseau, naquela época, sem dúvida, são irreprocháveis e dignas de louvor. Só os impertérritos como Jean-Jacques Rousseau conseguem superar séculos e séculos de existência com a admiração perene de seus epígonos. No próximo trecho, Rousseau disserta sobre a importância do Direito como um facilitador da vida humana. Para nós, o que entendemos nessa redação é que normatizar traz consequências, e estas são realmente benéficas para a convivência social. Ele adverte: O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito sem limites a tudo que o tenta e pode atingir; ganha a liberdade civil e a propriedade de tudo que o possui. Não há como se falar em sociedade e não falar em leis, normas, regras de convivência etc., é uma necessidade imperiosa de organização social-familiar. Neste sentido, reforça a ilustre doutrinadora Maria Helena Diniz: Os etnólogos demonstram-nos que qual-

5 Do Contrato Social Princípios do Direito Político 11 quer grupo social, por mais rudimentar que seja seu estágio de desenvolvimento, possui, para regulamentar sua vida grupal, um conjunto de normas que rege o comportamento de seus membros, estabelecendo as bases de coexistência entre indivíduos. E, por fim, o grande jurista italiano, Enrico Ferri, leciona: Só obedecendo a Lei se conserva, firmemente, o fundamento da nossa vida social. Rousseau enxergou isso lá atrás, antes de qualquer embrião de formação jurídica como bússola norteadora de convivência humana com isonomia e equilíbrio. O seu mérito consiste nisto, saber enxergar em uma sociedade nublada, o brilho do sol acima das nuvens. Como tão bem canta o Pe. Fábio de Melo: Mesmo em sombras na Terra, o sol brilha no céu. O próximo trecho sem dúvidas afrontou diretamente os poderosos da época, talvez tenham sido esses verbetes o zênite da revolta burguesa contra Rousseau, o que favoreceu a condenação e proibição da leitura de suas obras e o seu exilamento em plagas distantes. No entanto, não encontramos em nenhuma parte do Contrato Social vocábulos que possuam tanta força abstrata e ao mesmo tempo tanta sabedoria para melhorar o mundo em que vivemos. Se todos nós aceitássemos essas palavras como um emblema que carregamos no peito, dificilmente escutaríamos cotidianamente as angústias sociais e até quem sabe a máxima de Ovídio ( cura pauperibus clausa est o tribunal está fechado para os pobres) seria totalmente riscada da história moderna mundial.

6 12 Jean-Jacques Rousseau Homens que podendo ser dessemelhantes na força, ou no engenho, tornam-se todos iguais por convenção e por Direito 1. Percebam o peso dessa sentença! Somos imperfeitos e por isso precisamos de um instrumento para auxiliar nos descaminhos e nas quezilas da vida, aí nasce a importância do Direito. Entretanto, Rousseau sempre adverte: nenhuma lei poderá ser contrária ao homem. Ele defende que nossa essência humana é boa e que, por isso, todas as leis são de acordo com o homem, mesmo quando ela atinge outros que por natureza não a cumprem. A lei não pode ser injusta, pois que ninguém é injusto para si; nem como somos livres, e submetidos às leis, não sendo elas senão o registro de nossas vontades. 2 Até porque, no seu entendimento, o legislador estuda para não errar e criar leis contrárias à espécie: Assim como o arquiteto, antes de erguer um grande edifício, observa e sonda o chão, e examina se pode sustentar o peso da construção, da mesma forma o sábio instituidor não começa a formar boas leis em si mesmas antes de ter observado se o povo a quem ele as destina é capaz de as suportar. Pensamento semelhante com o encontrado em epístolas Paulinas: Mas fiel é Deus, que não vos deixará 1 Artigo 5º, caput, Constituição Federal da República Federativa do Brasil de Ibid., 2007, p. 45.

7 Do Contrato Social Princípios do Direito Político 13 tentar acima do que podeis, antes com a tentação dará também o escape, para que a possais suportar. 3 Encerro, pois, com o seguinte trecho: É precisamente porque a força das coisas tende sempre a destruir a igualdade, que a força da legislação deve sempre tender a conservá-la. 4 Clamo a todos os operadores do Direito que exerçam diuturnamente este sacerdócio em busca das igualdades, das liberdades, da satisfação dos direitos prejudicados, que não deixemos nunca dormir este paladino da justiça que reside em nós. Como juristas, somos responsáveis pela pacificação da sociedade e por isso devemos ser vigilantes intransigentes da aplicação dos princípios maiores do sistema jurídico. Roberto Victor Pereira Ribeiro Advogado e escritor Assessor Jurídico do Procurador-Geral de Justiça CE Conselheiro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/CE Pres. do Conselho Editorial da Revista DireitoCE Doutrina 1 o Secretário da Academia Cearense de Letras Jurídicas robertoribeirojur@hotmail.com roberto.victor@mp.ce.gov.br 3 1 Coríntios 10:13. 4 Ibid., 2007, p. 56.