Poder masculino e violência sexual infantil: uma trama de relações
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- André Belo Amaral
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1 Poder masculino e violência sexual infantil: uma trama de relações Talita Baldin DEPSI UNICENTRO Dr. Mario de Souza Martins DEHIS UNICENTRO RESUMO Trata-se de uma pesquisa de revisão bibliográfica acerca das relações de poder inerentes à violência sexual infantil doméstica. Após apontar dados do alto índice desse tipo de violência, foi caracterizado o poder enquanto relações de poder e a existência deste a partir dos conceitos de dominação e resistência, visto que a violência sexual infantil pode representar uma forma do adulto (agressor) tentar manter o domínio sobre a situação que estabelece com a criança (vítima). No entanto, conclui-se que esta tentativa não passa, na realidade, de uma das possibilidades de existência do poder, mas que não exclui seu caráter mutável, de inúmeras relações. Neste sentido, não se nega a existência do poder, mas se flexibiliza sua atuação perpassando espaços, tempos e indivíduos. Por seu caráter de revisão teórica, a produção aqui desenvolvida não dispensa a necessidade de outras pesquisas na área a fim de corroborar ou refutar as conclusões alcançadas, as quais podem contribuir ainda mais para a percepção de como procede a dominação exercida pela noção de masculinidade, a qual pode vir a ser entendida como um dos legitimadores da violência no contexto trabalhado na revisão de literatura. Palavras-chave: poder; masculinidade; repressão. Ao deparar com índices altíssimos de violência sexual se percebe a necessidade de estudar o fenômeno. No Brasil, de maio a abril de 2010 foram realizados mais de 2 milhões de atendimentos a vítimas da violência, sendo que a média anual de denúncias atingiu a marca de 73 denúncias/dia. Com relação ao tipo de violência sexual sofrida, os dados apontam que os casos de abuso registram 71%, ao lado de 0,63% de ocorrências de tráfico de crianças e adolescentes, 1,51% de pornografia e 38,15% de exploração sexual, cujas vítimas são mulheres em 62% dos casos. O estado brasileiro com maior índice de denúncias é o Distrito Federal, seguido por Mato Grosso do Sul, Maranhão e Rio Grande do Norte (BRASIL, 2010). Para melhor compreensão e estudo do fenômeno da violência, o Ministério da Saúde (BRASIL, 2001) o divide em quatro subgrupos, sendo eles: Violência física: quando alguém causa ou tenta causar dano, por meio de força física, de algum tipo de arma ou instrumento que possa causar lesões internas ou externas na vítima.
2 Violência sexual: toda ação na qual uma pessoa obriga outra à realização de práticas sexuais contra a vontade, por meio da força física, da influência psicológica ou do uso de armas ou drogas. Negligência: omissão de responsabilidade de um ou mais membros da família em relação a outro que precisa de auxílio e atenção por questões de idade ou por alguma condição específica, seja ela permanente ou temporária. Violência psicológica: toda ação ou omissão que causa ou visa causar dano à autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa, incluindo ameaças, humilhações, chantagem, cobranças de comportamento, discriminação, exploração, crítica pelo desempenho sexual e proibições exacerbadas. Esta é considerada por Silva, Coelho e Caponi (2007) como a violência mais difícil de ser identificada. Dando continuidade aos apontamentos do Ministério da Saúde, o Laboratório de Estudos da Criança, da USP, investiga especificamente a violência sexual doméstica, caracterizando-a como Todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança ou adolescente, tendo por finalidade estimular sexualmente esta criança ou adolescente, ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa. Ressalte-se que em ocorrências desse tipo, a criança é sempre vítima e não poderá ser transformada em ré. A intenção do processo de Violência Sexual é sempre o prazer (direto ou indireto) do adulto, sendo que o mecanismo que possibilita a participação da criança é a coerção exercida pelo adulto, coerção esta que tem raízes no padrão adultocêntrico de relações adulto-criança vigente em nossa sociedade (AZEVEDO, 2007, s/p, [on line]). Com relação especificamente à violência sexual infantil, Romero (2007) aponta que em se tratando de violência doméstica, inúmeras são as questões que complexificam o fenômeno, visto que geralmente se trata de uma ação sigilosa, preservada pelo segredo. Ainda, muitas vezes o fenômeno é deturpado sob o conceito de castigo ou disciplina, que em verdade nada têm a ver com agressões de cunho sexual. Para melhor caracterizar judicialmente o que seria considerado ilegal ou não, foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que, a partir da aprovação da Lei Federal 8.069/90, garante que a criança tenha proteção de qualquer forma de abuso, inclusive o sexual. Com isto, o Brasil foi um dos primeiros países a implantar uma lei que zela pelas crianças e adolescentes expostos a
3 situações que violam seus direitos (BRAUN, 2002), sendo que os atendimentos a crianças vitimadas por violência doméstica em Conselhos Tutelares, Delegacias de Polícia, Juizados da Infância e Juventude e escolas são crescentes. Ferrari e Vecina (2002) contribuem, colocando que os comandos centrais das leis nacionais e internacionais são relativos à garantia para todos de poder de decidir livre e responsavelmente sobre a própria vida sexual e reprodutiva, além de ter direito a informações e aos meios para que essa prática seja feita sem discriminações, coerções ou violências. Porém, as autoras alertam que embora a criança e o adolescente tenham esses direitos, há diferença entre intenção e realidade e, lamentavelmente, desde muito tempo a criança vem sendo vítima de muitas formas de exploração, inclusive a sexual, mesmo que esta esteja abafada pelo silêncio por ser um tema que a sociedade tenta encobrir, muito por conta de sua própria dinâmica de silenciamento diante daquilo que é considerado ilícito. A exploração é favorecida por relações de poder intrínsecas à sociedade e sob as quais os indivíduos estabelecem relações. Desta forma, se pensa no poder como um jogo de forças que age de forma não-fixa, nem rígida, seja na ordem das relações sociais, seja na ordem das relações políticas, levando em conta sempre que alguém exerce força sobre outro alguém, embora uma força de caráter muito mais simbólico do que concreto (LEBRUN, 1984). Ainda, definindo a palavra poder, Lasswell e Kaplan o concebem enquanto participação nos processos decisórios (1979, p. 110), sendo que o indivíduo tem espaço para exercer sua força em um jogo de caráter não linear. Já, com relação à sua origem, Lebrun cita Weber para caracterizar a existência do poder a partir do momento em que há dominação enquanto ordem e no qual a dominação se faz pela probabilidade de que uma ordem com um determinado conteúdo específico seja seguida por um dado grupo de pessoas (LEBRUN, 1984, p. 13). Assim, todas as normas sociais, tais como crenças, valores e leis, legitimam a ordem social que é dada concebendo-a como um poder que se exerce de um ator social para outro. Levando em conta que as relações de poder podem favorecer a violência sexual infantil ocorrida dentro de casa, se percebe que o poder do pai sobre a criança muitas vezes se dá de forma violenta e sucumbe sob o caráter sexual. Assim, a noção de masculinidade contribuiria com a prática do incesto, sendo que Faiman (2004) conceitualiza este como o relacionamento sexual entre parentes consanguíneos ou afetivos, prática proibida tanto social quanto culturalmente. A relação feita entre a expressão da masculinidade e a violência sexual infantil intrafamiliar parece relevante, pois dados de Cohen (2000) apontam que uma das formas mais frequentes de incesto é justamente o ocorrido entre pai e filha.
4 Para caracterizar a masculinidade, Connell e Messerschmidt (2005) se utilizam do conceito de masculinidade hegemônica, discutindo aspectos conceituais na elaboração das masculinidades e na experiência dos corpos masculinos. Os autores consideram que há um modelo de múltiplas masculinidades e relações de poder envolvendo a temática, o que compreende a masculinidade enquanto entidade flexível, incorporada pelo corpo ou em traços individuais da personalidade de cada indivíduo, ou seja, configurações da prática realizada na ação social e que por isso são capazes de se diferenciar conforme as relações de gênero em uma determinada configuração social. No mesmo sentido, Bourdieu (2010) aponta para a existência da dominação masculina na sociedade por conta das relações que se fazem presentes, sendo que o poder masculino se expressa na virilidade que a própria sociedade oferece com os jogos de violência masculinos, como os esportes de luta que são hegemonicamente praticadas por este gênero. Disto isto, vale ressaltar que caracterizar o poder da dominação do masculino como uma relação de forças que age de forma dinâmica significa afirmar que indivíduo algum é capaz de impor sua vontade própria a outro indivíduo pura e simplesmente, sem que tenha havido uma interação prévia entre eles, ou seja, é preciso haver uma interação anterior para que o processo de autoridade ou dominação se estabeleça (PARSONS apud LEBRUN, 1984), o que representa que nesta situação não há uma concessão linear de poderes, onde um é totalmente oprimido e o outro é somente opressor. Assim, o objetivo deste trabalho é de investigar se a violência sexual infantil intrafamiliar está relacionada ao poder proveniente das práticas do patriarcado, bem como compreender de que forma ele acontece. METODOLOGIA O presente trabalho está pautado em revisão literária sobre a temática da violência sexual contra crianças e adolescentes dentro da instituição familiar e as relações de poder e dominação provenientes do papel exercido pelo masculino na sociedade. Percebe-se que há estudos relativamente vastos divulgados de forma impressa e online, sendo que o foco do estudo foi o de verificar de que forma o processo de articulação entre ambos ocorre. DESENVOLVIMENTO Primeiramente, antes de procurar organizar uma articulação entre os conceitos acima postos, é preciso ressaltar que a forma de se lidar com o sexo depende e se diferencia em cada
5 período histórico, sendo que desde o século XVIII houve repressão e, especificamente neste período foi a escola quem se concentrou em silenciar a sexualidade das crianças e adolescentes (FOUCAULT, 2006). Mesmo que os conteúdos estivessem relegados à escola, esta nada mais era do que uma forma dos adultos manterem o domínio sobre as crianças. Posteriormente, com a entrada no século XIX, outras instituições se encarregaram da repressão do sexo, mas ainda assim eram conhecimentos chamados por Foucault (2006) de canônicos, determinantes de um saber que escapa às crianças e que permite vincular a intensificação dos poderes à multiplicação do discurso (FOUCAULT, 2006, p. 36), sendo claramente um discurso dos adultos e que quando vindo da boca das crianças soava como desqualificado e grosseiro. No entanto, o autor alerta que isto talvez não signifique mais do que uma condição para a emergência de outros discursos que se entrelaçam em suas relações de poder. Assim, se percebe que a violência sexual infantil pode também significar uma forma do agressor-abusador manter o domínio da situação sobre a vítima, mesmo que este seja um poder relativamente ilusório quanto à sua direção única, do adulto para a criança, e efetivado pelo discurso enquanto ação exercida de forma prática, pela violência. Ferrari e Vecina (2002) também concluem que a violência sexual pode ser uma tentativa de domínio, verificando em seus estudos que o abuso está muito mais relacionado ao adulto, com fins de dominar o processo, do que à criança, visto que a vitimização é o que dá ênfase a ela, por meio do sofrimento de injúrias ou danos que recebe na ocorrência do processo. O mesmo é apontado por Faiman (2004), autora que complementa que o abuso é violência enquanto sujeição do outro, como forma desesperada de se deslocar da posição de total impotência para a onipotência destruidora (FAIMAN, 2004, p. 60), o que pode caracterizar uma tentativa descontrolada do adulto manter o poder diante de algo ou alguém e que este é praticado em três níveis: o abuso do adulto (forte e grande) sobre a criança (fraca e pequena), a violação do direito de preservação do corpo da criança e a não-correspondência da confiança que a criança (dependente) investe no adulto (protetor). Na relação acima apresentada se faz presente a relação destacada pelos sociólogos clássicos, do direito de vida e de morte, advindo com o arcaico discurso paternalista de que o pai de família romano é o soberano e, portanto, tem o direito de se apoderar da vida de seus filhos (e/ou escravos) como bem lhe aprouver, visto que tinha o direito de tirar a vida tanto quanto o de dá-la a seus súditos (FOUCAULT, 2006). Portanto, quando se articula a violência sexual infantil com o patriarcado familiar, se percebe que a agressão é fruto da dominação e do poder, lembrando que ele não é hierarquizado, mas no formato de rizoma (FOUCAULT,
6 1979; LASSWELL & KAPLAN, 1979; LEBRUN, 1984). Logo, não se pretende negar que haja dominação, mas sim aceitá-la na mesma medida com que se aceita a existência de resistência e não de pura submissão. Assim, a violência sexual que ocorre na família, seja exercida pelo pai sobre sua esposa, seja sobre seus filhos, se trata de uma ação decorrente das relações de poder construídas com o relacionamento familiar que favorece o processo. Neste trabalho destaca-se o estudo da violência de caráter infantil, sem negar que outras também possam ocorrer. Ainda, se pode dizer que, quando se fala da criança enquanto vítima, é preciso destacar que indivíduo algum pode impor sua vontade própria a outro indivíduo sem haver proximidade e interação propiciando a dominação, a qual aparece enquanto concessão de poderes a uma autoridade dominadora de forma coagida ou coercitiva e que, quando aliada ao abuso de poder, pode vir carregado pela violência psicológica, bem como pelas violências de ordem física e sexual. Então, se compreende que a ação do poder se dá sobre a ação do corpo e representa a constituição do homem na própria história enquanto sujeito singular, mas que tem seu corpo adestrado, normatizado conforme o prazer permitido e que deve ser submetido e interpretado de acordo com o discurso emergente. Logo, a dinâmica familiar que propicia o fenômeno da violência concebe o poder enquanto relações de poder, direito que legitima as ações dos homens, ao passo que não há posse porque não existe uma relação única entre alguém que o detenha e outro alguém que seja alijado por ele. Na realidade, o poder é tido como lutas de forças internas e móveis (FOUCAULT, 1979). Com isto, Foucault (1979) percebe a resistência como fenômeno inerente ao conflito, já que a relação se apresenta desprovida de um ponto fixo, pois aparenta uma multiplicidade de lugares móveis e transitórios por toda a sociedade. Em outras palavras, se conclui que nem poder, nem resistência possuem um lugar ocupado imutável e definitivo ou uma força detida no mesmo sentido, mas que ao contrário, as relações são exercidas, disputadas, na relação existente entre os envolvidos. Ainda, se destaca que as relações de poder que cercam as noções de dominação masculina e violência sexual infantil, assim como outros fenômenos sociais, têm capacidade de fabricar os indivíduos que exercem tanto a força de dominação quanto a de submissão. Isto é, o poder produz as individualidades e cria os indivíduos em suas inúmeras interações. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do discorrido, se percebe que dentro das relações familiares se encontram
7 inerentemente as relações de poder, as quais se dão de forma flexível. Da mesma forma, articular o poder sob a égide do conceito foucaultiano com o fenômeno da violência sexual infantil e a dominação exercida pelo gênero masculino dentro da família é pensar em uma dominação apenas parcialmente alcançada, pois o poder não é unilateral. Neste sentido, não se nega a existência do poder, mas se flexibiliza a sua atuação enquanto rizoma, isto é, sem um centro rígido de controle direcionado às extremidades, mas perpassando todos os seus espaços, tempos e indivíduos. Este trabalho apresenta apenas algumas pontuações de relação existentes entre os fenômenos da masculinidade, poder e violência sexual infantil intrafamiliar, articulando-os. Logo, não dispensa a necessidade de outras pesquisas na área, a fim de corroborar ou refutar as pontuações aqui desenvolvidas e as quais podem contribuir ainda mais para a percepção de como a dominação exercida pela noção de masculinidade pode vir a ser entendida enquanto um dos legitimadores da violência no contexto trabalhado nesta revisão de literatura. REFERÊNCIAS ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, ARANHA, M. L. A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, AZEVEDO, M. A. Pesquisando a violência doméstica contra crianças e adolescentes: a ponta do iceberg. Laboratório de Estudos da Criança, USP, Instituto de Psicologia. Brasil São Paulo, Disponível em Acesso em 20 de agosto de AZEVEDO, M. A. & GUERRA, V. N. A. Pele de asno não é só história: um estudo sobre a vitimização sexual de crianças e adolescentes em família. São Paulo: Roca, BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, BLEGER, J. Temas de psicologia. São Paulo, SP: Martins Fontes, BOURDIEU, P. A dominação masculina. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Violência intrafamiliar: orientações para a prática em serviço. Brasília: Ministério da Saúde, (Caderno de Atenção Básica, 8).. Disque Denúncia Nacional: DDN 100. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente. Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, Disponível em imprensa/publicacoes/dados%20disque%20100%20-%20alagoas%20- % pdf/view Acesso em 22 de julho de BRAUN, S. A violência sexual infantil na família: do silêncio à revelação do segredo. Porto Alegre: AGE, 2002.
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