Psicopatologia e Encefalopatia Hepática



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Psicopatologia e Encefalopatia Hepática João Gama Marques*, Diogo Telles-Correia**, Manuela Canhoto*** Resumo: Desde Hipócrates que as alterações psiquiátricas causadas por doença hepática têm fascinado os médicos, mas só em finais do século XIX é que Marcel Nencki e Ivan Pavlov sugeriram a relação entre o aumento de concentração de amónia e a Encefalopatia Hepática (EH). O fruto da reacção entre a amónia e o glutamato (a glutamina, verdadeiro Cavalo de Tróia da neurotoxidade da amónia ) continua sendo considerado o principal responsável pelas lesões neurológicas, confirmadas recentemente através de estudos de neuroquímica e de neuroimagiologia. A glutamina espoleta processos inflamatórios a nível do sistema nervoso central para os quais parecem também contribuir o manganésio, e os sistemas neurotransmissores gabaérgico e endocanabinóides. Actualmente consideram-se três grandes grupos etiológicos, qualitativos, de EH: tipo A associada a falência hepática aguda; tipo B associada a bypass porto-sistémico; e tipo C associada a insuficiência hepática crónica por cirrose. Quanto ao estadiamento clínico, este ainda se baseia no sistema West Haven, mas com a novidade da introdução de um Grau 0 pré-clínico (a chamada EH Mínima); à medida que agrava a EH pode ser quantificada entre o Grau 1 (com alterações subtis ao exame médico), e o Grau 4 (onde se instala o estado comatoso). Neste trabalho pretende-se fazer uma revisão bibliográfica de 30 artigos recentes, que focam os vários aspectos psicopatológicos, fisiopatológicos, etiológicos e de estadiamento nesta entidade clínica transversal à Psiquiatria e à Gastrenterologia. São descritas a nível da vigilidade e consciência: a desorientação no tempo, espaço e pessoa. Ao nível da atenção, concentração e memória há alteração dos testes neuropsicológicos logo na fase pré-clínica. O humor pode oscilar entre o eufórico e o depressivo. As alterações da personalidade podem instalar-se de forma óbvia e abrupta ou de forma subtil e insidiosa. Na percepção há alucinações visuais mas também acústico-verbais. O pensamento pode ser delirante paranóide, sistematizado ou não. O discurso poderá estar acelerado, lentificado ou imperceptível. O insight surge prejudicado na EH Mínima, nomeadamente para a capacidade de condução de veículos. Na vida instintiva, várias perturbações de sono atingem metade dos doentes com EH; o apetite surge diminuído mas foi descrito pelo menos um caso de pica; enquanto que a libido poderá parecer aumentada em contexto de uma desinibição semelhante à verificada nas lesões do lobo pré-frontal. Palavras-Chave: Encefalopatia Hepática; Encefalopatia Hepática Mínima; Encefalopatia Porto-Sistémica; Psicopatologia; Psiquiatria; Fígado. Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE 35 * Interno de Psiquiatria: Hospital de Júlio de Matos, Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa; Assistente Voluntário da Cadeira de Psiquiatria I da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa ** Psiquiatra: Hospital de Santa Maria, Centro Hospitalar Lisboa Norte; Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa *** Interna de Gastrenterologia: Hospital de Santo André, Leiria

João Gama Marques, Diogo Telles-Correia, Manuela Canhoto Psychopathology and Hepatic Encephalopathy Abstract: Since Hippocrates that neuropsychiatric illness secondary to liver disease fascinates physicians, but only in the XIX century Marcel Nencki and Ivan Pavlov suggested the relation between high concentrations of ammonia and Hepatic Encephalopathy (HE). The reaction of ammonia and glutamate (origins glutamine, the Trojan Horse of neurotoxicity of ammonia) continues to be the main responsible for the neurologic lesions, recently confirmed by neurochemistry and neuroimagiology studies. Glutamine starts the inflammatory reaction at the central nervous system but other important actors seem to be manganese and the neurotransmitters systems of GABA and endocanabinoids. Nowadays there are three different etiologic big groups for HE: type A associated with acute liver failure; type B associated with portosystemic bypass; and type C associated with cirrhosis of the liver. The staging of HE is still based on classic West Haven system, but a latent Grade 0 was introduced (the so called minimal HE); remaining the aggravating HE from Grade 1 (subtle changes at clinical examination) to Grade 4 (coma). In this work a bibliographic review was made on 30 of the most pertinent and recent papers, focusing in psychopathology, physiopathology, etiology and staging of this clinical entity transversal to Psychiatry and Gastroenterology. Alterations are described in vigility and conscience like temporal, spatial and personal disorientation. Attention, concentration and memory are impaired very early, on latent phase and can be accessed through neuropsychological tests. Mood oscillates between euphoric and depressive. Personality changes begin obviously and abruptly or in a subtle and insidious way. There can be changes in perception like visual hallucinations or even of acoustic-verbal. The thought disorders can be of delusional type, paranoid, systematized or not, but also monothematic ala Capgras Syndrome. Speech can be accelerated, slowed down or completely incomprehensible. Insight is diminished at the very beginning at minimal HE, especially regarding the car driving abilities. Instinctive life can be impaired as various sleep disorders are present among half of HE patients; loss of appetite is common but there is a case of pica secondary to HE; and libido can seem increased by some prefrontal type of disinhibition. Key-Words: Hepatic Encephalopathy; Minimal Hepatic Encephalopathy; Portosystemic Encephalopathy; Psychopathology; Psychiatry; Liver. 36 Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE

Psicopatologia e Encefalopatia Hepática INTRODUÇÃO Já na antiguidade a encefalopatia hepática (EH) foi alvo da atenção de Hipócrates, que relacionou a bílis amarela, produzida no fígado, com os quadros de agitação colérica. 1 Actualmente a EH define-se como um conjunto de alterações do estado mental e de função neuromuscular anormal resultantes de insuficiência hepática, mas cujas manifestações clínicas e alterações electroencefalográficas não são específicas de doença hepática 2. Situação potencialmente mortal, a sua incidência depende da causa, duração e gravidade da doença hepática 3, com valores de 10-30% para doentes com Transjugular Intrahepatic Portosystemic Shunt (TIPS) e 30-50% para cirróticos 4. A EH é uma consequência do efeito neurotóxico da amónia (NH 4+ ), descrito pela primeira vez por Marcel Nencki e Ivan Pavlov em 1893 5. Esse efeito é mediado pela glutamina (produto da reacção do neurotransmissor glutamato com a amónia) que lesa neurónios e astrócitos cerebrais. A amónia é produzida principalmente ao nível do intestino delgado, onde a flora bacteriana a produz a partir da decomposição de proteínas ingeridas e da ureia do ciclo enterohepático. O único local da sua neutralização é o hepatócito, onde é transformada em ureia excretável na urina. Com uma brutal diminuição do número de hepatócitos funcionantes, ou uma derivação da circulação porto-sistémica, o encéfalo fica vulnerável à glutamina. Este fenómeno valeu à glutamina a alcunha de Cavalo de Tróia da neurotoxicidade da amónia 6 e pode ser visualizado por Tomografia por Emissão de Positrões (PET) 7. O manganésio (Mn), elevado no sangue de doentes cirróticos, também parece contribuir para a lesão cerebral, depositando- -se no globus pallidus, conforme estudos de Ressonância Magnética Nuclear (RMN) 8. Fenómenos inflamatórios e reacções redox, em que participam neuroesteróides, mediam o processo lesivo 9 enquanto que o Ácido Gama Amino Butirínico (GABA) 10 e os canabinóides endógenos 11 contribuem para a complexa fisiopatologia da EH. As causas de insuficiência hepática aguda que podem originar EH são: hepatite viral, medicamentosa, tóxica, isquémica ou auto-imune, síndrome Budd Chiari, síndrome HELLP, doença de Wilson, doença neoplásica ou criptogénica 12. Os principais eventos precipitantes da EH na doença hepática crónica são: hemorragia digestiva, anormalidades electrolíticas, infecção, obstipação e o uso de fármacos com efeito sedativo, em particular psicofármacos cujo uso deve ser cauteloso 13. Os doentes com EH podem ser classificados em três grandes grupos etiológicos 14 e cinco estadios de gravidade 15 (Quadro 1 e 2 respectivamente). A subjectividade na observação, levou à criação de instrumentos como a Clinical Hepatic Encephalopathy Staging Scale (CHESS), o Inhibitory Control Test (ICT) e outros 16. A terapêutica e prognóstico da EH, aspectos que transcendem este artigo, foram alvo de revisão recente 17. Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE 37

João Gama Marques, Diogo Telles-Correia, Manuela Canhoto Tipo Nomenclatura Subcategoria Subdivisões A Associada a Falência Hepática Aguda B Associada a Bypass Porto-Sistémico sem Doença Hepatocelular Intrínseca Não aplicável Mínima, Latente ou Sub-clínica Não aplicável Precipitada C Associada a Cirrose e Hipertensão Episódica Espontânea Portal ou Shunt Porto-Sistémico Recorrente Ligeira Persistente Grave Tratamento-Dependente Quadro I Nomenclatura Etiológica da Encefalopatia Hepática 13 38 Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE

Psicopatologia e Encefalopatia Hepática Estadio clínico Mínima, Latente ou Sub-clínica Grau 1 Grau 2 Grau 3 Grau 4 Deterioração Funções Intelectual e Mental Observação sem Alterações Trabalho Deteriorado Condução Deteriorada Défice de Atenção Ansiedade e Euforia Irritabilidade e Depressão Alteração da Personalidade Apatia Letargia Perturbação do Sono Dificuldade no Cálculo Desorientação Mínima Alteração do Comportamento Empobrecimento da Memória Confusão Desorientação Grosseira Sonolência Amnésia Estupor Coma Funções Neurológica e Muscular Alteração Subtil em Testes Psicométricos e de Conexão Numérica Tremor Descoordenação Apraxia Ataxia Asterixis ou flapping Discurso Lentificado Discurso Incompreensível Nistagmo Mioclonus Rigidez Muscular Diminuição de Reflexos Midríase Pupilar Postura Descerebrada Reflexo Oculocefálico Sem resposta a estímulos Quadro II Estadios Clínicos para Encefalopatia Hepática 14 OBJECTIVOS MATERIAL E MÉTODOS Pretende-se com este trabalho rever a psicopatologia verificada em EH. Foi efectuada pesquisa sistemática da literatura em inglês, publicada entre Janeiro de Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE 39

João Gama Marques, Diogo Telles-Correia, Manuela Canhoto 1973 até Outubro de 2010 através da MEDLINE utilizando como palavras-chave liver encephalopathy, psychopathology. Foram revistos cerca de 60 artigos, incluindo casos clínicos, revisões, estudos analíticos e estudos observacionais. Foram também consultados livros de texto referentes ao mesmo tema. Das obras consultadas optou-se por citar cerca de 30 de acordo com a pertinência e actualidade dos conteúdos. RESULTADOS Os achados da nossa pesquisa estão sintetizados no Quadro 3. As diferentes valências do exame psicopatológico podem aparecer alteradas da seguinte forma: Alteração Vigilidade e Consciência Orientação Atenção, Concentração e Memória Grau de EH Vigil 1-3 Letargia 2 Sonolência 3 Estupor Coma 4 Desorientação temporal 2 Desorientação espacial Desorientação pessoal 3 Alterações Subclínicas (Testes) 0 Défice de Atenção Dificuldade de Cálculo 1 Amnésia 2-3 Sequelas cognitivas irreversíveis 4 40 Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE

Psicopatologia e Encefalopatia Hepática Alteração Grau de EH Euforia Ansiedade Irritabilidade 1-2 Humor, Afecto e Emoção Disforia Depressão Embotamento Apatia 2-3 Personalidade Alterações subtis 2 Alterações evidentes 3 Percepção Alucinações Visuais 1-3 Alucinações Acústico Verbais 1-3 Acelerado 1 Forma Lentificado 2 Pensamento Desorganizado 3 Delírio paranóide Conteúdo Delírio sistematizado Delírio de sósia (Síndrome Capgras) 1-3 Acelerado 1 Discurso Lentificado 2 Desorganizado 3 Juízo Crítico (Insight) Diminuído 0 Ausente 1-3 Insónia Inversão Padrão do Sono 1 Sono Apneia Obstrutiva do Sono Vida instintiva Letargia 2 Sonolência 3 Apetite Anorexia Pica 1-3 Libido Desinibição Sexual 1-2 Quadro III Alterações Psicopatológicas na Encefalopatia Hepática (EH) Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE 41

João Gama Marques, Diogo Telles-Correia, Manuela Canhoto Vigilidade, Consciência e Orientação A desorientação temporal, mínima que seja, significa que o doente se encontra em EH Grau 2, enquanto a desorientação espacial e pessoal surge na EH Grau 3. O estupor e o coma caracterizam a EH Grau 4. A desorientação na EH tipo A é súbita com rápida evolução para delirium e coma. Na EH tipo C a desorientação pode simular um quadro de demência, sendo constante (EH tipo C persistente) ou intermitente (EH tipo C episódica) 18 Atenção, Concentração e Memória As perturbações da atenção, concentração e memória surgem numa fase latente ou pré- -clínica (EH Grau 0 ou EH tipo C Mínima), comum em doentes com cirrose hepática, e passam despercebidas à observação clínica, sendo só detectáveis através do recurso a testes neuropsicológicos, por exemplo o Trail Making Test A e B (TMT-A e TMT-B) 19. Outros testes (Wechsler Memory Scale) detectam perturbação da memória lógica, visual, verbal e complexa 20. Estas alterações parecem contribuir para um aumento dos acidentes de viação em doentes cirróticos 21. À medida que a EH se instala (EH Grau 2) a memória vai-se deteriorando, sendo evidente uma amnésia marcada na fase pré-comatosa (EH Grau 3). Doentes que sobrevivem ao coma (EH Grau 4) podem ficar com sequelas cognitivas irreversíveis 22. Humor, Afecto e Emoções Classicamente no primeiro estadio de West Haven (EH Grau 1) o humor é eufórico ou ansioso, mas também pode ser deprimido ou disfórico 23. Os doentes com EH tipo A apresentam quadros maniformes e os com EH tipo C quadros depressivos, evoluindo ambos para apatia (EH Grau 2) 24. Personalidade As alterações da personalidade inicialmente são subtis, perceptíveis apenas para conhecidos (EH Grau 2). Com o agravamento (EH Grau 3) tornam-se evidentes, podendo um doente gentil e cordial começar com querelância e coprolália. Aparentemente instalam-se de forma crónica em doentes com EH tipo C e de forma aguda em doentes com EH tipo A, como em caso recentemente publicado 25. Percepção É sabido que nos quadros alucinatórios orgânicos predominam as alucinações visuais com insight parcial, mas pelo menos dois dos critérios de primeira ordem de Kurt Schneider (com importância histórica no diagnóstico de esquizofrenia) foram descritos em EH associada a cirrose hepática etanólica, nomeadamen- 42 Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE

Psicopatologia e Encefalopatia Hepática te alucinações acústico verbais do tipo voz que comenta actividade do doente, e do tipo vozes que dialogam entre si 26. Pensamento, Discurso e Insight O pensamento e o discurso podem estar acelerados nos doentes agitados (EH tipo A ou EH Grau 1) ou lentificados nos doentes letárgicos (EH tipo C ou Grau 2). Os doentes em EH Grau 3 apresentam discurso incoerente, desorganizado ou mesmo imperceptível. Quanto ao conteúdo do pensamento, os delírios paranóides são comuns, podendo ser sistematizados ou monotemáticos, como é o caso do delírio de sósia ou síndrome de Capgras 27. O insight, encontra-se ausente em situações psicóticas nos Graus intermédios de EH, podendo estar prejudicado na EH Grau O, nomeadamente no que diz respeito às suas diminuídas capacidades na condução de veículos 28. Vida instintiva: Sono, Apetite e Libido As perturbações do sono (insónia, inversão do padrão de sono, apneia obstrutiva) são comuns na EH Grau 1. A letargia surge na EH Grau 2, e a sonolência na EH Grau 3, o estupor e o sono não reactivo a estímulos são sinais de EH Grau 4. Globalmente atingem cerca de metade destes doentes 29. O apetite diminui em qualquer doença hepática, mas recentemente publicou-se um caso de uma doente cirrótica com pica despoletada por EH 30. O comportamento sexual pode ser desadequado (EH Grau 2), o que pode ser entendido como secundário às alterações da personalidade que mimetizam desinibição pré-frontal, mas que desaparece em estádios mais avançados. CONCLUSÕES O conceito de EH pouco mudou nos últimos anos, mas evoluiram a fisiopatologia, o diagnóstico, a nomenclatura e o estadiamento dos doentes. Muito estudadas têm sido as alterações subtis presente na chamada Encefalopatia Hepática Mínima, entidade outrora polémica mas agora unanimemente aceite e detectável com recurso a testes neuropsicológicos. O Psiquiatra deve estar atento e saber detectar estes doentes com EH Mínima, bem como deve saber reconhecer as outras alterações descritas. O quadro neuropsiquiátrico, muitas vezes flutuante e nem sempre reversível, sobreponíveis ou isolados, mimetizam os grandes síndromes psiquiátricos: confusional, ansioso, depressivo, maniforme, psicótico, demencial e até perturbação da personalidade. No entanto o quadro deve ser compreendido e tratado no contexto da doença hepática, tendo sempre em conta uma abordagem multidisciplinar por especialidades tão diferentes como a Psiquiatria, a Gastrenterologia, mas também a Medicina Geral e Familiar. Finalmente fica a impressão de Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE 43

João Gama Marques, Diogo Telles-Correia, Manuela Canhoto que existem poucos estudos nesta área sendo essencial que se investigue mais. AGRADECIMENTOS Ao Dr. Filipe Silva, Médico Gastrenterologista do Hospital de Santo André de Leiria pela ajuda na revisão do artigo. CONFLITO DE INTERESSES E FONTES DE FINANCIAMENTO Os autores declaram não ter nenhum conflito de interesses nem fontes externas de financiamento para a realização deste artigo. Bibliografia 1. Weissenborn K, Ennen JC, Schomerus H, Rückert N, Hecker H: Neuropsychological characterization of hepatic encephalopathy. J Hepatol. 2001 May; 34(5):768-73. 2. Areias J: Insuficiência Hepática Aguda. Tratado de Hepatologia. Portugal, Permanyer 2006. 4: 93-119. 3. Arroyo V, Sánches-Fueyo A, Fernández-Gomez J, Forns X, Ginès P, Rodés J: Advances in the therapy of liver diseases. ARS Medica Barcelona. 2007; 1(6) 61-71. 4. Dhiman RK, Chawla YK: Minimal hepatic encephalopathy. Indian J Gastroenterol. 2009, 28: 5 16. 5. Shawcross DL, Olde Damink SW, Butterworth RF, Jalan R: Ammonia and Hepatic Encephalopathy: The More Things Change, the More They Remain the Same. Met Brain Dis. September 2005, Vol.20, No.3, 169-179. 6. Albrecht J, Norenberg MD: Glutamine: A Trojan Horse in Ammonia Neurotoxicity. Hepatology. Vol. 44, No.4, 2006. 7. Lockwood AH: Positron Emission Tomography in the Study of Hepatic Encephalopathy. Metabolic Brain Disease. Vol. 17, No. 4, 2002, 431-435. 8. Dharmasaroja P: Signal Intensity Loss on T2-Weighted Gradient-Recalled Echo Magnetic Resonance Images in the Basal Ganglia in a Patient With Chronic Hepatic Encephalopathy. Neurologist. 16(4):265-268, July 2010. 9. Ahboucha S, Butterworth RF: The neurosteroid system: an emerging therapeutic target for hepatic encephalopathy. Met Brain Dis. 22 291 308 2007. 10. Jones EA: Ammonia, the GABA Neurotransmitter System, and Hepatic Encephalopathy. Metab Brain Dis. 17:275, 2002. 11. Huang L, Quinn MA, Frampton GA, Golden LE, Demorrow S: Recent advances in the understanding of the role of the endocannabinoid system in liver diseases. Digestive and Liver Disease. 2010 Oct 7. 12. Alberto SF, Pires SS, Figueiredo A, Deus JR: Insuficiência hepática aguda. Acta Med Port. 2009; 22: 809-820. 13. Telles-Correia D, Guerreiro DF, COENTRE R, ZUZARTE P, FIGUEIRA L: Psicofármacos 44 Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE

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