III SEMINÁRIO POLÍTICAS SOCIAIS E CIDADANIA. AUTORES DO TEXTO: Islânia Lima da Rocha; Jeovânia Pereira dos Santos



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Transcrição:

III SEMINÁRIO POLÍTICAS SOCIAIS E CIDADANIA AUTORES DO TEXTO: Islânia Lima da Rocha; Jeovânia Pereira dos Santos Cotidianidade e ser social: algumas reflexões sobre o Serviço Social RESUMO: Este artigo apresenta uma reflexão acerca da cotidianidade enquanto base da reprodução da vida social e individual. Estabelece relação com o Serviço Social no que diz respeito à busca de autonomia, ao caráter de subalternidade, próprios da gênese e natureza da profissão, tratados a partir da questão da especificidade profissional. O estudo do cotidiano conduz a reflexão de modo a desmistificar a autonomia profissional requerida pelos assistentes sociais e constatar a sua impossibilidade ontológica tendo em vista a função social que lhe é determinada socialmente: atuar no enfrentamento às refrações da questão social oriunda das desigualdades sociais operadas pelo capitalismo monopolista. Palavras-chave: Cotidiano; Serviço Social; Autonomia; Subalternidade. I- Introdução Com o objetivo de investigar as limitações impostas à categoria profissional dos assistentes sociais na efetivação de sua autonomia, nos propusemos a realizar esta reflexão que tem como base o cotidiano e suas determinações na vida social. Isto nos ajudou a compreender a impossibilidade ontológica de conferir ao Serviço Social uma autonomia tal, desejada no cotidiano das atividades profissionais. Dentre as questões que interessam e preocupam a profissão, a autonomia se põe como uma delas cuja discussão ainda é pouco ressaltada, o que reforçou ainda mais nosso interesse em abordá-la; e o fizemos tendo a cotidianidade como caminho capaz de nos aproximar ao debate acerca desta problemática. Vimos que, como parte constitutiva da totalidade da vida social, a vida cotidiana é o lugar onde os homens produzem, desenvolvem suas capacidades e habilidades, se relacionam entre si etc., uma categoria do real impossível de ser eliminada, na medida em que é comum a todos os homens e profissões independentes de sua forma de pensar e de agir. Assim, os assistentes sociais como quaisquer outros profissionais vivem este cotidiano no dia a dia da prática profissional. O trabalho contempla dois momentos: no primeiro, fizemos uma explanação sobre a cotidianidade e o ser social, na qual pudemos identificar que o cotidiano se faz presente na vida dos homens de forma concreta e influente, mesmo que disto não tenhamos a devida consciência. Para tanto, utilizamos o texto de Agnes Heller, O Cotidiano e a História; no segundo momento, refletimos acerca da influência da vida cotidiana no Serviço Social enquanto profissão inscrita na divisão social e técnica do trabalho. Concluímos observando que o Serviço Social já surgiu subordinado, não só pela sua classe demandatária, mas também pela função social que lhe é determinada. II- Cotidianidade e ser social A vida cotidiana é a vida de todos os homens em todos os tempos históricos. Ela permeia as esferas da nossa vida seja no trabalho, na família, no lazer, nas relações sociais em geral. O cotidiano é parte constitutiva da totalidade da vida social, um campo de mediação ineliminável na reprodução da sociabilidade. Portanto, a cotidianidade é um solo ontológico de grande complexidade por sua forte influência na vida do Ser Social, em outras palavras, ela possui determinações fundamentais as quais atuam no processo de formação das relações sociais.

Tomando como referência básica o texto de Agnes Heller 1, pode-se compreender que a vida cotidiana é heterogênea, pois promove diferentes atividades diariamente para os homens, sendo por isto eterna e imutável. Mas a vida cotidiana é também hierárquica, visto que modifica as atividades humanas de modo específico em função das diferentes estruturas econômico-sociais (HELLER, 1970, p. 18). Assim, a heterogeneidade e a hierarquia são determinações fundamentais da vida cotidiana seja no campo da produção da vida material seja no campo da reprodução social. Embora a vida cotidiana seja a vida de cada individuo, é importante atentar para o fato de que O individuo é sempre, simultaneamente, ser particular e ser genérico. O homem é ao mesmo tempo ser individual e ser genérico, ser único e irrepetível, fatos estes ontologicamente fundamentais. Apesar das motivações particulares de cada atividade humana, o genérico está contido em todo homem. Nesse sentido, o salto ontológico http://mail3.uol.com.br/cgi-bin/webmail.exe - _ftn2#_ftn2 operado com o trabalho possibilitou o desenvolvimento tanto na esfera individual como na esfera do gênero humano. Por isso dizemos que, embora o trabalho tenha suas motivações particulares, em se tratando do trabalho efetivo, ou seja, socialmente necessário, é sempre atividade do gênero humano (HELLER, 1970, p. 20, grifos da autora). Mas, não podemos perder de vista que Os choques entre particularidade e genericidade não costumam tornar-se conscientes na vida cotidiana; ambas submetemse sucessivamente uma à outra do aludido modo, ou seja, mudamente (HELLER, 1970, p. 23). Na moderna estrutura da vida cotidiana, em geral a particularidade submete a si o humano-genérico pondo as necessidades e interesses coletivos a serviço das necessidades e interesses individuais, egoístas. Regressando às determinações da vida cotidiana, além das já supracitadas, existem ainda quatro características imprescindíveis para a compreensão do Ser Social inserido na cotidianidade. São elas: a espontaneidade, a probabilidade, o pragmatismo e o preconceito. O cotidiano tem como característica dominante a espontaneidade, embora essa espontaneidade não seja no mesmo nível em toda atividade cotidiana, do mesmo modo que nenhuma atividade apresenta-se como identicamente espontânea em situações diversas, nos diversos estágios de aprendizado. Mas, em todos os casos, a espontaneidade é a tendência de toda e qualquer forma de atividade cotidiana (HELLER, 1970, p. 29-30, grifos da autora). Ela pode se manifestar tanto nas motivações e formas de atividade particulares, como naquelas humano-genéricas. Assim como a espontaneidade é uma tendência da atividade cotidiana, o é também a probabilidade existente enquanto relação objetiva entre os atos humanos e suas conseqüências. A probabilidade enquanto tal não permite garantir com segurança científica as conseqüências possíveis de uma ação. A ação baseada na probabilidade tem riscos imprescindíveis e necessários sem os quais a vida não teria continuidade. Outra característica da vida cotidiana é o pragmatismo. A unidade imediata de pensamento e ação na vida cotidiana só é possível quando se dirige às atividades práticas. Desse modo, a cotidianidade necessita da presença das idéias ou expressões ideológicas para a reprodução da vida individual e social. Estas têm a função de orientar e facilitar as ações e decisões dos indivíduos, com a finalidade de promover uma convivência social com o mínimo de conflitos. Portanto, a unidade de pensamento e ação na vida cotidiana, em se tratando de uma atitude pragmática, não estabelece diferença 1 No início da década de 70, Agnes Heller era seguidora fiel das posições lukacsianas, afastando-se posteriormente, inclusive do marxismo.

entre correto e verdadeiro, pois está em xeque a orientação social dos indivíduos na busca da manutenção da ordem. E finalmente, uma outra categoria decisiva tanto do pensamento quanto do comportamento cotidianos é o preconceito. Os preconceitos, obra das classes sociais, fazem uso das idéias e ideologias com o intuito de garantir a manutenção da integração e protegê-las dos conflitos sociais. E mesmo isenta de preconceitos, as ideologias, sob a forma de coesão social, estão mais ou menos cobertas por eles. Para manipular as classes sociais os preconceitos podem interferir nas práxis dessas integrações, impedindo-as completamente de ter uma visão das questões necessárias a construção de suas vidas, refletindo-se nos conflitos. Desse modo, O sistema de preconceitos não é imprescindível a qualquer coesão enquanto tal, mas apenas à coesão internamente ameaçada (HELLER, 1970, p. 54, grifo da autora). Grande parte dos preconceitos é proveniente da classe dominante e têm a função de manter uma estrutura alicerçada na manutenção dos interesses de tal classe. Através da ideologia dominante criam-se preconceitos objetivando universalizá-la. Heller deixa claro que desde a Antiguidade já existiam diferenças sociais, no entanto, estas foram estimuladas sob o sistema de preconceitos entre as sociedades e os indivíduos pela sociedade burguesa. Por isso mesmo, Lukács diz que a vida cotidiana de todas as esferas da realidade é aquela que mais se presta à alienação (1981, p. 38). Decerto, as determinações sobre as quais nos referimos acima como heterogeneidade, espontaneidade, pragmatismo, ultrageneralização, hierarquia, são constitutivas da vida cotidiana e contribuem com as formas alienadoras produzidas nesse campo de mediações que é a cotidianidade. De fato a vida cotidiana absorve o homem de forma a orientá-lo apenas para cumprir papéis impostos pela classe dominante. Apesar de ser um campo propício à alienação, ela não é necessariamente alienada, isto ocorre em determinadas circunstâncias histórico-sociais. Existe alienação quando ocorre um abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção humano-genérica e a participação consciente do indivíduo nessa produção (LUKÁCS, 1981, p. 38). Por fim, o que se pode refletir até o presente momento é que a vida cotidiana enquanto solo ontológico de grande complexidade, por todas as suas determinações, confere aos indivíduos humanos o cumprimento de papeis que configuram a manutenção da ordem social de forma a produzir e reproduzir a si mesmo e às relações sociais. Estas, peculiares ao sistema social capitalista, são o maior solo de atuação do cotidiano ao ponto que nelas são produzidas as atividades sociais, a reprodução material da vida, as idéias dominantes e os antagonismos que os permeiam. Nesta sociedade de que se trata, o capital é a relação social determinante que dá a dinâmica e a inteligibilidade de todo o processo da vida social (IAMAMOTO; CARVALHO, 2008, p. 30). Assim, fica nítido diante das considerações, que a vida cotidiana possui inflexões na vida do Ser Social as quais permeiam todos os seus espaços de convívio social, como o seu trabalho e as demais atividades da sua práxis humana. III- Vida Cotidiana, Serviço Social e Autonomia Profissional Como foi visto na primeira parte do texto, o cotidiano é comum a todos os seres humanos sem distinção. Se o cotidiano é comum a todos os homens é também comum a todas as profissões. O Serviço Social, como uma profissão inserida na divisão sóciotécnica do trabalho, certamente também vive esse cotidiano em toda sua complexidade. Pudemos ver que o cotidiano é o lócus onde se dá a construção dos processos de individuação e de sociabilidade, visto que o elemento fundante e construtivo tanto da reprodução da sociedade enquanto totalidade social, como das individualidades, é exatamente o mesmo, isto é, as ações concretas de indivíduos concretos em situações

sociais concretas (LESSA, 1995, p. 74), ações que acontecem no interior da cotidianidade. É no cotidiano da vida social que os assistentes sociais desenvolvem suas ações, e as fazem a partir da função social que lhes é determinada na divisão social e técnica do trabalho e nela o Serviço Social se põe como uma profissão assalariada. Se isto é verdadeiro, sua autonomia profissional é bastante relativa. Deve ser pensada, portanto, a partir de uma perspectiva que conecta a profissão à totalidade das relações sociais. Compreender a velha, porém recorrente questão da autonomia profissional dos assistentes sociais nas ações que desenvolvem na cotidianidade, nos conduziu àquela também velha questão da busca de especificidade do Serviço Social. As idéias aqui expostas partem do pressuposto de que, compreender a prática profissional implica, pois, [ ] apreender a particularidade presente no Serviço Social como um produto histórico, a partir de uma perspectiva de totalidade, da tese que entende a sua vinculação a uma ordem social e ao projeto político que viabilizou sua instauração e desenvolvimento; vendo o assistente social como um trabalhador assalariado, que ocupa um lugar específico dentro da divisão sócio-técnica do trabalho, vinculado à execução terminal das políticas sociais segmentadas (MONTAÑO, 2007, p. 45, grifo do autor). Inscrita nos heterogêneos atos cotidianos, a ação do assistente social não difere das demais atividades profissionais, no sentido de que todo profissional desenvolve suas atividades no cotidiano. Porém, toda profissão tem sua peculiaridade. Nossa reflexão se dirige para a peculiaridade das ações profissionais dos assistentes sociais inseridos no espaço institucional público ou privado, demandatário dos seus serviços profissionais para atuar junto aos contingentes populacionais pauperizados. O que se percebe é a predominância do caráter essencial da cotidianidade na ação do assistente social, na qual muitas atividades são executadas de modo espontâneo, ou seja, de acordo com as determinações do cotidiano, impossibilitando uma reflexão sobre as mesmas, o que pode atribuir a sua ação um caráter emergencialista. Por outro lado, se a profissionalização do Serviço Social alterou significativamente a inserção sócio-ocupacional do assistente social em comparação com aquela do agente assistencialista característico das suas protoformas filantrópicas, tal profissionalização não desenvolveu uma operacionalização prática substantivamente distinta em relação àquela já dada. Podemos então indagar: como é possível uma intervenção idealmente referenciada revelar-se pouco distinta de práticas assistencialistas? Segundo Netto (1992), duas ordens de razões explicam esse aparente paradoxo: as condições para a intervenção dos assistentes sociais sobre os fenômenos sociais na sociedade burguesa consolidada e madura e a funcionalidade do Estado no confronto com as refrações da questão social. Não apenas o exercício profissional do Serviço Social subordina-se a esses dois aspectos aqui expostos. São fenômenos que atingem os trabalhadores sociais de modo geral. A prática profissional, qualificada por Netto como sincrética, tanto faz emergir elaborações formal-abstratas sincréticas quanto as requisita. Neste sentido, convergem para essa prática múltiplos vetores, desde as condições objetivas de intervenção determinadas pelas refrações da questão social, ao referencial das ciências sociais gestadas sob uma racionalidade formal-abstrata, a continuidade das expectativas típicas que envolviam as protoformas do Serviço Social e sua inserção na divisão social e técnica do trabalho. Esta reflexão do autor nos conduz ao fato de que a cotidianidade está sempre envolta por um limite do ignorado, não favorecendo o conhecimento do todo, provocando na ação do assistente social uma atitude pragmática, a qual só pode ser

superada com a reflexão e o exame da realidade. Mas isto não é comum à prática profissional, pois o que atribui uma gravitação especial ao Serviço Social é o horizonte real que baliza a intervenção profissional do assistente social. Este horizonte é o do cotidiano. Diz Netto: O cotidiano como horizonte da intervenção profissional do Serviço Social denota, antes, que ela transita necessariamente pelos condutos da cotidianidade: seu material institucional é a heterogeneidade ontológica do cotidiano [ ] e seu encaminhamento técnico e ideológico [ ] não favorece suspensões ou operações de homogeneização (NETTO, 1992, p. 91-2, grifo do autor). Ao nos voltarmos para a história do Serviço Social, percebemos que ele não nasce com a função de produzir conhecimentos, mas como atividade prática, tendo em vista responder aos problemas de natureza social. Isso não muda, contudo, o fato facilmente constatável, de que desde sua origem tenha produzido conhecimentos sobre a sociedade, sobre si mesmo, seus modos de agir e os objetos da prática profissional. Conforme vimos, trata-se de uma profissão socialmente determinada e sua ação no cotidiano decorre da função que exerce na sociedade (COSTA, 2006, p. 9). Como atividade prática, o Serviço Social responde às demandas sociais postas por uma sociedade que é essencialmente desumana e desigual, cuja função se vincula, como escrito linhas atrás, a execução terminal das políticas sociais. Como pode então o assistente social ter uma autonomia por muitos desejada? Sendo produto da ordem monopólica, o Serviço Social tem na sua gênese um caráter de subordinação. Dentre os aspectos que remetem o Serviço Social à subalternidade e a subordinação, Montaño (2007) destaca quatro como sendo fundamentais para esta análise e que subsidiam nossa reflexão, uma vez que têm, mediadamente, rebatimentos no cotidiano da prática profissional até hoje. O primeiro deles refere-se à questão do gênero no Serviço Social. Caracterizado como uma profissão feminina, presente em uma sociedade marcadamente machista, o Serviço Social era funcional pelo assistencialismo característico das mulheres. Na nossa cultura, o assistencialismo é predominantemente feminino. Montaño diz que o Serviço Social é estigmatizado como uma profissão auxiliar, de assistência, pela assistência que realiza aos setores carenciados da população, e também pela assistência que direciona, como profissional subalterno e auxiliar, a outros profissionais médicos, advogados etc. (2007, p. 10, grifos do autor). O segundo aspecto refere-se ao empobrecimento do estudante/profissional do Serviço Social. A partir das décadas de 1960 e 1970 ocorre uma massificação do ensino de terceiro grau decorrente das diversas transformações ocorridas na sociedade as quais obrigam os jovens a ingressar nas universidades como sendo a única forma de se inserir no mercado de trabalho e de conquistar melhores condições de vida. Segundo Montaño, esta realidade é acompanhada de um empobrecimento real (socioeconômico e cultural) em certas disciplinas consideradas como menos dispendiosas, entre elas, o Serviço Social. Esse novo perfil dos assistentes sociais, proveniente das classes empobrecidas, caracteriza-se, a exemplo de tantos outros, como uma categoria de profissionais que precisam vender sua força de trabalho para garantir sua sobrevivência, algo que lhes impõe uma situação política, econômica e funcional subordinada (MONTAÑO, 2007, p 104). O terceiro aspecto de subordinação do Serviço Social diz respeito ao assistente social como funcionário público e empregado do capital. O Serviço Social surge como executor das políticas sociais, tendo como seu maior empregador o Estado, não obstante

as transformações societárias ocorridas a partir do projeto neoliberal cuja defesa do Estado mínimo significa, ao mesmo tempo, o Estado máximo para o capital (NETTO, 1993, p. 81). Assim, o assistente social se converte, via de regra, num servidor público, regido, como os demais, por normas burocráticas e subordinado hierarquicamente segundo estratos político-institucionais, não necessariamente técnico-políticos (MONTAÑO, 2007, p. 105, grifos do autor). Um último aspecto diz respeito ao Serviço Social visto como tecnologia e sua relação com as ciências. Como vimos o Serviço Social não nasceu para produzir conhecimentos, mas sim para executar os conhecimentos já existentes, sendo um dos aspectos que o torna praticista. E é esse praticismo do Serviço Social que reforça a velha e sempre presente questão da separação entre teoria e prática, ciência e técnica. Essa separação impõe uma oposição entre os profissionais da categoria, diferenciando assim, o profissional acadêmico do profissional de campo, de forma que este necessita da produção teórica daquele para desenvolver sua prática cotidiana. É esta subsunção do conhecimento teórico num conhecimento instrumental, tido como específico, que deriva na (auto) reprodução da subalternidade técnica do assistente social face os cientistas (MONTAÑO, 2007, p. 116, grifo de Montaño). Embora o assistente social utilize em sua prática diária os conhecimentos já produzidos, não significa dizer que seja subalterno aos cientistas, pois os utiliza como base para explicar os processos sociais da realidade cotidiana. Através desta apreensão, os assistentes sociais também produzem conhecimentos, não científicos, mas um conhecimento situacional (diagnóstico) para intervir critica e efetivamente nos processos, então esta atividade não é subordinada ou subalterna à atividade científica, mas elas comportam-se como complementares (MONTAÑO, 2007, p. 117). Destarte, buscar uma especificidade para o Serviço Social é uma utopia, visto que especificidade implica ter campo de trabalho, metodologia, teoria e público-alvo próprios, o que não é realidade para esta profissão. Isso também se explica pelo fato de o Serviço Social ser uma profissão da área social e todas essas características supracitadas, que o autor referido julga possuir, são comuns a todas as demais profissões dessa área. Embora trabalhando interdisciplinarmente, não existe exclusividade entre objeto de estudo e formas de intervenção para os profissionais da mesma área. O que há de específico em cada profissão é a sua particularidade enquanto tal. Isso não significa deslegitimar o Serviço Social, pois este se legitima pela função socioeconômica e política que exerce. A particularidade do Serviço Social é determinada pelas suas peculiaridades e não pelas particularidades do ser social. Em síntese, a especificidade do Serviço Social, assim como uma autonomia profissional pretendida por muitos, é algo inatingível, tendo em vista sua função social determinada pela ordem monopólica enquanto profissão assalariada, responsável pela execução terminal de políticas sociais. Conclui-se, portanto, que mesmo superando muitos preconceitos, crescendo significativamente no mercado de trabalho e produzindo seus próprios conhecimentos teóricos, o Serviço Social é uma profissão subordinada aos ditames do capital monopolista, independente de sermos profissionais críticos e atuantes. IV- Considerações finais Através de um estudo cuidadoso do cotidiano verificamos que o mesmo é comum a todos os homens, sendo este o espaço de reprodução enquanto ser individual e social. É no cotidiano que acontece a reprodução da sociabilidade e da individuação, portanto, a produção material e a reprodução dos demais complexos sociais necessários à sobrevivência humana.

Segundo Lukács (1981), a vida cotidiana é o principio e o fim de todos os seres humanos, a mesma impõe aos indivíduos não só um padrão de comportamento como também de pensamento, valores, objetivações, dita regras que todos deverão seguir. Ela é, portanto, comum a toda e qualquer sociedade. Mesmo nas mais avançadas a presença do cotidiano permanece dando direção à processualidade social vivida pelos homens que, em geral, não a questionam, assumem como dadas as funções da vida cotidiana e as exercem paralelamente (HELLER, 1970, p. 22-3). Com o desenvolvimento e amadurecimento do capitalismo a organização da vida social passou a dominar a existência individual, desde a produção passando pelas esferas da circulação e consumo, chegando a induzir os comportamentos, ou seja, o sistema capitalista administra a vida cotidiana de todos os indivíduos humanos. Mas o cotidiano também se faz presente em todas as profissões e sendo o Serviço Social uma profissão inserida na divisão sócio-técnica do trabalho, se desenvolve nos heterogêneos atos cotidianos, posto que é produto histórico da ordem burguesa tendo sua função social determinada para responder aos problemas de natureza social. A partir dos elementos supracitados pudemos compreender que o Serviço Social é uma profissão com forte caráter de subalternidade vinculado aos interesses da ordem burguesa; mesmo conquistando avanços significativos na teoria e, de algum modo, na prática profissional, tem sua ação cotidiana demandada pela classe dominante. Assim, atua na execução terminal das políticas públicas garantindo a reprodução da força de trabalho e, prioritariamente, a legitimação do capital. Então a busca por uma autonomia nos moldes requeridos pelos assistentes sociais é um fetiche, visto que a função do Serviço Social na divisão social e técnica do trabalho não lhe confere tal autonomia. O que de fato existe é uma autonomia bastante relativa, na medida em que [ ] depende, na organização da atividade, do Estado, da empresa, entidades não-governamentais que viabilizam aos usuários o acesso a seus serviços, fornecem meios e recursos para sua realização, estabelecem prioridades a serem cumpridas, interferem na definição de papéis e funções que compõem o cotidiano do trabalho institucional (IAMAMOTO,1998, p. 63, grifo da autora). A execução deste trabalho nos possibilitou encontrar respostas para as indagações que tínhamos acerca da autonomia da profissão como também do seu caráter subalterno. Constatamos, no processo, uma impossibilidade ontológica de sua concretização, na medida em que as determinações da realidade impossibilitam que isto aconteça, pois exigiria uma teoria própria, um objeto próprio e um instrumental específico o que não corresponde à realidade desta profissão. O processo de investigação da vida cotidiana nos possibilitou desmistificar essa questão, pois descobrimos que as relações sociais reais não coincidem com as relações sociais imediatas. Ao final desta reflexão vimos que existem outras determinações externas à profissão, próprias das relações sociais mais amplas, que conferem ao assistente social a função de executor terminal de políticas sociais, com uma autonomia bastante relativa. V- Referências COSTA, GILMAÍSA MACEDO DA. Texto utilizado em sala de aula não publicado, 2006. HELLER, AGNES. O Cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 1970. IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. DE. Relações sociais e Serviço Social no Brasil. Esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 1991. IAMAMOTO, M. V. Serviço Social na Contemporaneidade. São Paulo: Cortez, 1998.

LESSA, S. Sociabilidade e individuação. Maceió: Edufal, 1995. LUKÁCS, G. Per una Ontologia del essere sociale. Roma: Editori Riuniti, 1981. MARX, K. Manuscritos Econômico-filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004. MONTAÑO, C. E. A natureza do Serviço Social: um ensaio sobre sua gênese, a especificidade e sua reprodução. São Paulo: Cortez, 1998. NETTO, J. P.; FALCÃO, M. C. Cotidiano: conhecimento e crítica. São Paulo: Cortez, 1987. NETTO, J. P. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1992.. Crise do Socialismo e Ofensiva Neoliberal. São Paulo: Cortez, 1993.