REFLEXÕES SOBRE ALFABETIZAÇÃO EM MOÇAMBIQUE Cristina Martins FARGETTI (UNIMEP) ABSTRACT: In some localities of "Província de Sofala", Moçambique, we could value PASMO literacy classrooms. The program intends to work in the portuguese teaching to youngs and adults, sometimes bilinguals, 60% of the inhabitants, who are illiterate. KEYWORDS: literacy; young ; adults ; Moçambique 0. Introdução Em visita a Moçambique, África, em agosto de 2002, pudemos avaliar salas de aula de alfabetização do PASMO (Programa de Alfabetização Solidária de Moçambique),em várias localidades da Província de Sofala. O programa, de origem brasileira, se propõe a atuar no ensino de português para jovens e adultos, muitas vezes bilíngües, que fazem parte de 60% da população do país, que é analfabeta. O objetivo do governo do país é reduzir a incidência de pobreza absoluta em redor de 30%, nos próximos dez anos, o que inclui prioridade ao setor de educação (República de Moçambique, 2000). Depoimentos foram gravados e material escrito foi recolhido para análise. Questionamentos foram feitos, tais como : por que somente ensino do português? por que não se promove o ensino bilíngüe também para jovens e adultos (afinal são mais de 20 línguas nativas)? certos alfabetizandos são realmente monolíngües ou tidos como tais pela sua pronúncia "insatisfatória" do português? Além disso, observamos forte preconceito lingüístico, dos que, mesmo sendo moçambicanos, valorizam somente a língua portuguesa e, paradoxalmente, um forte nacionalismo expresso na importância dada às línguas nativas, presentes em manifestações artísticas como músicas dos mais diferentes conjuntos musicais. Observam-se, na prática dos alfabetizadores, orientações teóricas e metodológicas diversas das propostas pelo PASMO, mas, em certos momentos
ouvimos que os programas seguidos "são idênticos", o que mostra talvez a pouca clareza da proposta brasileira ou a necessidade de assimilá-la sem atritos entre alfabetizadores diferentes. Além de momentos de capacitação de alfabetizadores, o PASMO já realizou uma série de avaliações do funcionamento de salas de aulas (muitas delas sob árvores, com os alunos sentados sobre capulanas ) e pretende iniciar o processo de elaboração de material didático próprio para o país. Antes de mais nada, é preciso salientar o esforço na organização de nosso trabalho, empreendido pelos técnicos do MINED, técnicos provinciais e distritais, no sentido de que nossa avaliação pudesse ocorrer da melhor maneira possível. A iniciativa do encontro com todos os alfabetizadores de cada distrito foi muito válida, pudemos assim ouvir e ler mais depoimentos e obter um número maior de dados para análise. Contudo, as visitas às salas de aula, com algumas exceções, tiveram curtíssima duração (às vezes menos de 20 minutos), o que impossibilitou um contato mais direto com os alfabetizandos (pudemos somente gravar alguns depoimentos e obter produções escritas). Essa curta duração deveu-se aos fatores : em primeiro lugar, ao fato de as salas funcionarem somente das 14:00 às 16:00 horas, portanto tínhamos somente duas horas diárias para conhecer as salas ; em segundo lugar, ao fato de as salas, em sua maioria, estarem distantes umas das outras, o que fazia com que literalmente corrêssemos para conseguir visitar ao menos duas salas no mesmo dia, e mesmo isso nem sempre foi possível, como se pode observar pelo relato das atividades. 1. Obtenção dos dados Um outro problema encontrado foi quanto ao preenchimento dos formulários 1 de avaliação, entregues aos alfabetizadores. Em primeiro lugar, para responder satisfatoriamente à maioria das questões levantadas seria necessário comparar os dados fornecidos pelo alfabetizador com os de uma pesquisa mais demorada realizada pelo avaliador (20 minutos na sala de aula não são muita coisa...). Seria necessário conhecer melhor cada alfabetizando, para poder avaliar a resposta do alfabetizador. Por exemplo, quando este 1 Formulários estes elaborados previamente pela assessoria da Alfabetização Solidária, no Brasil.
afirma que um aluno não fala português, o que será que tem em mente? O que entende por não falar uma língua? Ao se analisar os dados de determinado alfabetizador, observa-se que em vários aspectos são incongruentes ; quanto à questão de falar ou não o português, o professor informa que somente 19 alunos falam português, mas ao mesmo tempo informa também que, em português, 43 dizem frases contextualizadas, 44 constróem pequenos diálogos e 45 respondem perguntas. Essas três habilidades não significam "falar português"? Acreditamos que os professores alfabetizadores : 1) não estejam preparados para responder às questões feitas por não as compreenderem, muitas vezes, e/ou por não disporem dos dados no momento do inquérito ; 2) confundem-se com os números quando têm outras variáveis em mente (por exemplo, podem pensar que "falar português" corresponda a "falar português padrão, sem elementos das línguas locais"), daí a incongruência de suas respostas ; 3) pela presença dos técnicos e da "professora brasileira", procuram responder a todas as perguntas mesmo quando não têm certeza sobre a resposta ; 4) podem ser induzidos em suas respostas pelo avaliador caso este lhes diga para não serem incongruentes e não lhes explicite (devido à falta de tempo) cada conceito envolvido nas questões. Nesse sentido, pensamos que os alfabetizadores devam ser orientados, em capacitação por eles reivindicada, sobre como avaliar suas turmas, e, para isso, faz-se necessário discutir com eles os conceitos envolvidos, o que significa, a nosso ver, transmitir-lhes noções mínimas de lingüística. Sem essa capacitação, alfabetizador e avaliador "não falarão a mesma língua". Devido aos problemas levantados, julgamos que os dados obtidos junto aos alfabetizadores são parciais, não correspondem totalmente à realidade. Apesar disso, pode-se dizer que apontam para tendências que são observadas em uma análise superficial. 2. Problemas apresentados pelos alfabetizadores Em Manhiça, localidade de Maputo (capital), um alfabetizador levantou a questão do interesse dos seus alunos de também aprenderem a ler e escrever changana, a língua local (depoimento gravado). Segundo ele, trata-
se de um resgate cultural que tentam fazer, e percebe-se nisso a influência da Igreja, pois os jovens querem poder participar de cerimônias que são realizadas pelos religiosos em changana. Além disso, observa-se um interesse muito grande pelas músicas cantadas nas línguas locais ( há muitos e bons conjuntos musicais que cantam nessas línguas). Assim, ao mesmo tempo em que se quer aprender português, língua da unidade nacional, cultivam-se as línguas locais em um nacionalismo evidente (cf. artigo "Nossas línguas e não dialetos" de A. Sambo, 2002). Inclusive, em todas as salas em que estivemos fomos recebidos com canções nas línguas changana, sena, ndau, nunca em português. Assim, fica a questão : só ensino de português ou ensino bilíngüe? Segundo as técnicas do Ministério da Ecucação, Leonor Justino e Maria Magaia, a realidade dos jovens do referido alfabetizador é bem diferente do que se vê em geral, pois o ensino bilíngüe existente muitas vezes é estigmatizado, ou seja, há muito preconceito. Pais dizem que não permitem que seus filhos vão à escola em que se ensina changana. Isso porque, na época do colonialismo, professores portugueses castigavam fisicamente alunos que falassem a língua local, tida por esses professores como "língua do cão", e esse preconceito permanece ainda vivo na memória das pessoas. Segundo Caccia-Bava e Thomas (2001), após a independência do país, ocorrida em 1975, via-se o domínio da língua portuguesa como estratégia emancipatória, forte instrumento contra "regionalismos" e "racismos". Contudo, hoje o português é a língua de apenas 8,8% da população. Ele é visto como fator de ascensão social, mas observa-se que inclusive pessoas que o têm como língua materna, em algum momento deixam de falá-lo para falar línguas locais. Ainda para estes autores, o ensino bilíngüe, na verdade, teria a função simplesmente de, a partir das línguas locais, chegar ao uso exclusivo do português. Mais uma vez, acreditamos que noções de lingüística (principalmente sociolingüística) poderiam ajudar nessa situação, munindo o professor de argumentos para vencer o preconceito e valorizar também as línguas locais. Em Sofala, os alfabetizadores que têm material didático do Brasil relatam dificuldades : - metodológicas - não compreendem o manual, não sabem dosar o conteúdo;
- lingüísticas - não compreendem a linguagem técnica utilizada, não compreendem termos típicos do PB (Português Brasileiro); - logísticas - seus alunos não têm o material, o que dificulta trabalhar o que é proposto. Com relação às dificuldades metodológicas, recomendamos um seminário/capacitação em que se discuta como utilizar um material didático. Nele o professor deveria ser orientado em ter mais autonomia para adaptar o conteúdo proposto à sua realidade. Quanto às dificuldades lingüísticas, o material apresenta problemas no momento devido 1) à falta de hábito de leitura do alfabetizador ( por isso sua dificuldade com a terminologia empregada), 2) à diferença do PB (Português Brasileiro) ao PM (Português Moçambicano). Um alfabetizador de Buzi perguntou-nos, por exemplo, o significavam termos constantes da unidade 2 do livro de alfabetização (VÓVIO,2000, p. 22). O título da atividade era "A fila de ônibus", que apresenta ilustrações com pessoas enfileiradas ao lado de uma placa, com o nome de um bairro, provavelmente ; não há a ilustração de ônibus. Portanto, a justa dúvida do alfabetizador era : que significam "fila" e "ônibus"? Bem, como já conhecíamos um pouco do português local, explicamos que "fila" significa "bicha" e "ônibus" significa "machimbombo".... Além disso, observamos em uma sala de aula, que se pretendia um ambiente pedagógico, um poema escrito em um cartaz, mas este era a "Quadrilha" de Carlos Drummond de Andrade (constante do referido material didático brasileiro). Lamentável escolha no país de Mia Couto e Craveirinha, poetas da gente moçambicana, infelizmente por ela desconhecidos devido à dificuldade de acesso a material escrito. Acreditamos que o novo material, a ser produzido pela comissão bilateral, possa resolver o problema da variação lingüística, mas não resolva a dificuldade de leitura do alfabetizador. Este deve ser estimulado a ler mais e, para isso, deve ter à sua disposição uma biblioteca mínima, de domínio do núcleo pedagógico do qual faz parte. Um outro problema é que encontramos alunos em sala do PASMO que, na verdade, deveriam estar freqüentando a 6 ª classe. Isso acontece, segundo eles, porque não há turmas no período vespertino, em que poderiam estudar.
Alunos nessa situação deveriam articular-se e propor a formação de novas turmas, para que possa haver continuidade em seus estudos, que é algo pelo qual devem realmente lutar. Essa luta também é travada no Brasil, onde os alfabetizados pelo Programa de Alfabetização Solidária têm reivindicado tal continuidade, sendo um dos esforços do Programa o comprometimento cada vez maior dos municípios nessa tarefa (cf. VIEIRA, 2001 para uma discussão da responsabilidade do poder público na educação de jovens e adultos). 3. Modelo de educação Em artigo na revista moçambicana Proler (Dias, 2002), Hizaldina Norberto Dias, professora de lingüística da Universidade Pedagógica, discute a educação em Moçambique. Aponta a dicotomia vivida entre o que chama de ocidental (definido como universal e moderno) e o que chama de africano (definido como local e tradicional). Ou seja, apesar de esforços de valorização do africano, os modelos europeus de educação (talvez aqueles da "língua do cão"), tidos como universais e modernos, sempre foram referência e continuam sendo para muitos que temem o "atraso" representado pelo que é local, tradicional. Por isso compreende-se os pais proibindo seus filhos de freqüentarem escolas bilíngües : não desejam a eles o local, o tradicional, que, infelizmente não pode ainda lhes abrir as portas para bons empregos, cargos públicos, uma vez que é somente em português que se comunica em bancos, repartições públicas, etc. Segundo a referida autora : "O país vive com olhos postos nos países desenvolvidos e "corre" e "é obrigado" a imitar estratégias políticas, ideológicas, económicas, sociais e educacionais, sem ter tempo para reflectir sobre a sua própria realidade." Nesse sentido, a aproximação da proposta da Alfabetização Solidária, do Brasil, seria mais uma tentativa de imitar estratégias bem sucedidas de um outro país, sem levar em conta todas as iniciativas já realizadas pelos próprios moçambicanos. E isso observamos na ansiedade por soluções rápidas, de erradicação total do analfabetismo em poucos anos. Inclusive, pudemos conhecer professores cubanos que prometiam ao Ministério da Educação de Moçambique a erradicação do analfabetismo em três anos! Então perguntamos, no lugar da "fila de ônibus"
o que teríamos? Quem sabe algo como "la cola de guagua", ou, no standard, "la cola de autobus"... Ainda sobre "ansiedades", como observou VIEIRA (2002), em sua visita de avaliação, durante a Semana Internacional de Alfabetização (cujo dia é comemorado em 8 de setembro), o governo moçambicano divulgou o slogan, presente em muitas camisetas : ALFABETIZANDO REDUZIMOS A POBREZA ABSOLUTA. Ao que Vieira (2002) questiona : "Se a frase refere-se à situação econômica do país, não estariam concebendo a alfabetização como redentora de todos os males, inclusive de um mal maior que assola parte da humanidade e que somente seria resolvido a partir do debate destas questões que são, em síntese, de ordem econômica?" Enfim, como há muito se diz, o acesso ao ensino formal, embora importante para toda e qualquer mudança na sociedade, não garante, sozinho, o milagre do bem-estar social, da distribuição da riqueza. Para tanto, é preciso muito mais do que alfabetizar... Conclusão Pelo que se pode observar na produção escrita dos alfabetizandos, as turmas do PASMO, apesar de todos os problemas enfrentados, mostram muito empenho, o que revela um bom trabalho dos alfabetizadores. Estes devem lutar pelos seus direitos, buscar caminhos para sua capacitação e condições para sua articulação em grupos (núcleos pedagógicos), inclusive com os alfabetizadores do programa do governo. Além disso, pensamos que, quando da elaboração do material didático específico para Moçambique, devam ser ouvidos, em especial, alfabetizadores do PASMO, uma vez que sua experiência e conhecimento da cultura local muito podem contribuir para um material mais adequado ao público a que se destina. Seria adequada uma capacitação que focalizasse noções de lingüística, necessárias ao alfabetizador em sua prática em uma situação de bilingüismo, com forte preconceito lingüístico e um paradoxal nacionalismo. RESUMO: Em localidades da Província de Sofala,Moçambique, pudemos avaliar salas de aula de alfabetização do PASMO. O programa se propõe a
atuar no ensino de português para jovens e adultos, muitas vezes bilíngües, que fazem parte de 60% da população do país, que é analfabeta. PALAVRAS-CHAVE: alfabetização; jovens ; adultos ; Moçambique REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CACCIA-BAVA, E. C. e THOMAZ, O. R. (2001) Moçambique em movimento : dados quantitativos. In. FRY, P. (org.) Moçambique-ensaios, Rio de Janeiro : Editora UFRJ. DIAS, Hizaldina N. (2002) As tensões e dicotomias da Educação em Moçambique. Proler. Maputo, Março/Abril 2002 FARGETTI, Cristina Martins. (2002) Relatório da visita de avaliação das salas de EJA da 2 ª fase do PASMO em Maputo e Província de Sofala. Piracicaba : UNIMEP REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE (2000). Plano de Acção para Redução da Pobreza Absoluta (2000-2004). Ministério do Plano e Finanças. SAMBO, Antonio (2002) Nossas línguas e não dialectos!, Jornal Notícias,Maputo, 25/2/2002 VIEIRA, Márcia A.L. (2001) Poder público e educação de jovens e adultos : Alfabetização Solidária, primeiros passos de um programa antigo. Piracicaba : UNIMEP (dissertação de mestrado) VIEIRA, Márcia. A.L.(2002) Relatório da 2 ª visita de avaliação do Programa Alfabetização Solidária em Moçambique - Piracicaba : UNIMEP. (mimeo) VÓVIO, C.L.(coord.) (2000) Viver, aprender : educação de jovens e adultos (livro I). São Paulo : Ação Educativa : Brasília : MEC.