Mitos yorubás e literatura brasileira: possibilidades de reescritura da afrobrasilidade no imaginário social

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Transcrição:

Pensando Áfricas e suas diásporas www.periodicos.ufop.br/pp/index.php/pensandoafricas NEABI UFOP - Mariana/MG Vol. 02 N. 01 nov/dez 2016 Anais do IV Seminário Pensando Áfricas e suas diásporas Mitos yorubás e literatura brasileira: possibilidades de reescritura da afrobrasilidade no imaginário social Jorge Luiz Gomes Jr. * Resumo: Este artigo propõe uma reflexão acerca da presença e força dos mitos religiosos na sociedade africana de cultura yorubá, conhecida no Brasil como Ketu, origem de um significante grupo do Candomblé brasileiro. Considerando sua mitologia, e seus reflexos na Literatura brasileira para crianças e jovens, buscamos compreendê-la como um instrumento capaz de recriar conceitos referentes ao entendimento e percepção da cultura africana e afro-brasileira. Partindo-se da necessidade de promover uma releitura das referências culturais do país, (re)avaliando/considerando a noção de afrobrasilidade nelas presente, pensamos na possibilidade de apropriação da oralidade de temática africana para se recriar conceitos solidificados no imaginário de parte considerável da sociedade. Nesse sentido, a religiosidade afro-brasileira, por meio da literatura, e, tendo como aporte a Lei 10.639, pode oferecer bases para o trabalho com a educação em uma perspectiva etnicorracial. Palavras-chave: Candomblé brasileiro; Mitologia; Cultura afro-brasileira; Lei 10639. Abstract: This article proposes a reflection about the presence and strength of religious myths in the African society of Yoruba culture, known in Brazil as Ketu, origin of a significant group of Brazilian Candomblé. Considering its mythology and its reflexes in Brazilian Literature for children and young people, we seek to understand it as an instrument capable of re-creating concepts concerning the understanding and perception of African and Afro-Brazilian culture. Considering the need to promote a re-reading of the country's cultural references, (re) evaluating / considering the notion of Afro-Brazilians present, we think of the possibility of appropriating the orality of African themes to recreate solidified concepts in the imaginary of a considerable part of society. In this sense, Afro-Brazilian religiosity, through literature, and, having as a contribution Law 10.639, can offer bases for working with education in an ethno-racial perspective. Keywords: Brazilian Candomblé; Mythology; Afro-Brazilian culture; Law 10639 Os mitos religiosos de tradição yorubá se constituem como veículo de preservação das tradições de uma ancestralidade, além da servirem como base de sustentação para a recriação dos cultos aos orixás na diáspora. Considerando a palavra africana, a manutenção e * CEFET/RJ - PPRER. E-mail: j.junior.rj@hotmail.com [27/33]

ressignificação do culto aos orixás no novo mundo e ao se falar de Brasil, podemos refletir sobre a relevância dos mitos yorubás na reconstrução de perspectivas e abordagens sobre a afrobrasilidade. Crendo na relevância da literariedade que a oralidade possui e na riqueza cultural que esses relatos carregam consigo, compreende-se que sejam essas narrativas míticas, para além de formas de se visualizar parte das fundamentações das tradições religiosas de cunho yorubá, maneiras de apresentar a face sócio-cultural-religiosa da afrobrasilidade. Almejamos pensar nos reflexos dessas narrativas pertencentes ao âmbito da literatura oral na literatura escrita, de caráter brasileiro, para crianças e jovens, compreendendo a literatura infantil e juvenil como um instrumento capaz de reelaborar conceitos referentes ao entendimento e percepção da cultura africana e afro-brasileira a partir de sua interação - considerando esta outra perspectiva literária, pautada na oralidade. Frente à necessidade social de uma reavaliação dos valores e referências culturais do país, (re)considerando os olhares referentes à afrobrasilidade, cogitamos a possibilidade de apropriação das memórias e oralidade perceptíveis nas narrativas míticas para se recriar percepções sobre o negro e as tradições religiosas e culturais afro-brasileiras. Dessa forma, seria por meio de um trabalho engajado com a literatura que novas inscrições poderiam ser feitas no imaginário de grande parcela da sociedade. Nesse sentido, acredita-se em uma literatura de caráter ideológico, capaz de recriar/ ressignificar valores solidificados no imaginário. Tendo como referência o histórico processo de formação da sociedade brasileira, considerando a organização estrutural, a partir da qual se deu a construção dessa nação e da cultura nacional, podemos afirmar que esta cultura guarda nas tradições e demais heranças culturais africanas algumas parcelas de seus alicerces. Tais influências atuam nos mais variados setores. Sobre essa questão assim nos afirma Kabengele Munanga: (...) Essas heranças constituem a memória coletiva do Brasil, uma memória plural e não mestiça ou unitária. Uma memória a ser cultivada e conservada por meio das memórias familiares e do sistema educacional, pois um povo sem memória é como um povo sem história.( 2010, p.50) [28/33]

Na esteira dessa lógica, torna-se natural que as referidas culturas ocupem diante das heranças europeias e de suas relações no meio social, o mesmo espaço. É nessa perspectiva que se encaminha nossa reflexão. Na proximidade de completar sua primeira década, a lei 10.639/03 vem provocando diversas reflexões favoráveis à educação das relações etnicorracias. A referida lei vem alterar a lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e promove: a inclusão da temática História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial da Rede de Ensino, bem como propõe nas diretrizes curriculares nacionais o direito e igualdade de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos os brasileiros. Essas diretrizes orientam para a valorização das faces histórico-culturais dos afro-brasileiros e dos africanos. Dialogando com as perspectivas de releitura dos valores da sociedade, a lei 10.639/03 vem fortalecer as iniciativas de enfretamento às desigualdades, preconceitos e ao racismo. Refletindo sobre direcionamentos da educação e fazendo referência a Paulo Freire, Munanga (2010, p.45) nos afirma que: (...) somos desafiados a construir uma Pedagogia do oprimido. No entanto, a questão racial nos ajuda a racializar ainda mais essa proposta. Somos levados a construir uma Pedagogia de Diversidade. Enquanto, na Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire nos sugere que é a partir da conscientização da própria condição que será possível a descolonização do pensamento, Kabengele Munanga nos sugere que, partindo das reflexões sobre as questões raciais, devamos efetivamente construir uma Pedagogia de Diversidade. Entendemos que a pedagogia a qual Munanga faz referência tem, intrínseca, a proposta de compreensão e reconhecimento das diferenças, para que se promova a partir desse pressuposto, a descolonização do pensamento. Por meio da análise de livros infanto-juvenis que tem a mitologia dos orixás como seu foco principal se dará a investigação. Almejamos observar como essas mitologias, ao se apresentarem nesse novo espaço de ação, a literatura para crianças e jovens, podem influenciar a construção de visões diferenciadas de mundo a partir da figura dos orixás, das referências a natureza, do valor moral que essas narrativas abrigam e da participação/influência desses relatos nas construções identitárias de crianças e jovens de terreiro. [29/33]

Para tais análises foram escolhidos quatro livros. Uma trilogia de Reginaldo Prandi, com os títulos Ifá, o adivinho; Xangô, o trovão e Oxumarê, o arco-íris, lançados nessa ordem entre 2002 e 2004, sendo um a cada ano. A outra obra em análise chama-se Epé laiyé, terra viva, de Maria Stella de Azevedo Santos, conhecida também como Mãe Stella. As obras de Prandi são adaptações de um livro de mesma autoria, direcionado ao público adulto sobre a mitologia dos orixás, expressão que dá título à produção do autor. Em toda a trilogia, o(a) leitor(a) tem a oportunidade de conhecer os orixás e suas particularidades, além de compreender como essas histórias chegaram ao Brasil, de que parte da África vem cada uma dessas divindades, reconhecendo a pluralidade de cultos e tradições, além da possibilidade de pensar o tráfico negreiro dentre outras questões. O livro de Mãe Stella segue por outra via. Ao contrário de Prandi, ela não contará as histórias de orixás conhecidas pelo povo de Candomblé. Seu trabalho dá conta de uma reflexão a partir da própria natureza, considerando a mesma com divindade, além de pensar as questões ambientais que abalam o mundo contemporâneo. Em meio às considerações que tece sobre a relação da natureza com os Deuses e a saúde do mundo, os orixás são apresentados, sendo suas personalidades e tradições atravessadas pelas questões ambientais. Outra interessante questão presente nessa obra é a presença da língua yorubá, língua originária dos referidos mitos, além de língua dos cultos aos orixás nos Candomblés Ketu. Tal presença possibilita ao público leitor uma maior proximidade com a afrobrasilidade. Além dessas análises, também se inclui na metodologia da pesquisa entrevistas com duas ialorixás (mães de santo) que se posicionam politicamente frente às questões de enfrentamento ao racismo, preconceitos e demais conflitos recorrentes entre as comunidades negras e de candomblé. Nesse trabalho com a história oral temos o intuito de analisar de maneira mais profunda as questões da potência da oralidade e do mito em si nas tradições religiosas norteadas por eles e a interação das crianças e jovens de terreiro com essas narrativas, pensando possibilidades de auto-afirmação das identidades negras nesses espaços. Conclusão Considerando as reflexões desenvolvidas, é possível pensarmos na multiplicidade de aspectos que podem ser observados e refletidos a partir das narrativas míticas. Os mitos yorubás e demais histórias que trazem à cena as divindades africanas por meio da literatura [30/33]

escrita nos fornecem possibilidades de trabalhar a cultura, religiosidade, línguas e tradição africana e afro-brasileira entre outras temáticas. Essa literatura tão marcadamente clássica vem se reconfigurando, oferecendo espaço e permitindo que vozes negras, anteriormente silenciadas, ecoem em suas letras, contribuindo de alguma forma com o processo de auto-afirmação de identidades culturais a partir da ancestralidade. Através do entrelaçar dessas vias da palavra, podemos notar uma grande ferramenta para o enfrentamento ao silenciamento das culturas africanas e afro-brasileiras na educação. Considerando a mitologia dos orixás, com toda a simbologia que lhe é conferida, diante de um trabalho engajado com a literatura, podemos estabelecer novas inscrições referentes à afrobrasilidade no cenário social. Dessa maneira, as referidas literaturas, no contexto em que se refletem, podem ganhar a forma de reconstrutora de concepções culturalmente enraizadas, tendo como embasamento a ação educativa e reflexiva no cotidiano do público leitor. Referências Bibliográficas AGUESSY, Honorat et alii. Introdução à cultura africana. Lisboa: edições 70, 1997. AMÂNCIO, Iris Maria da C.; GOMES, Nilma Lino; JORGE; Miriam Lúcia dos S. (orgs). Literaturas Africanas e Afro-Brasileira na prática pedagógica. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. BA, Amadou Hampaté. A palavra, memória viva na África.`` In: Correio da UNESCO. Ano 7, nº10, 1979.. Palavra africana. In: O correio da UNESCO. Paris, Rio, Ano 21, nº11. Nov. 1993. BARROS, José Flávio Pessoa de. A fogueira de Xangô, o orixá do fogo. Rio de Janeiro: Pallas, 2005. Banquete do Rei Olubajé. Rio de Janeiro: Pallas, 2005 BENISTE, José. Mitos Yorubás: o outro lado do conhecimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,2006. CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. Salvador: Martins Fontes, 2008 CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. 3º Edição, Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo. Ed. da Universidade de São Paulo, 1984. FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literatura afro-brasileira. In.: SOUZA, Florentina; LIMA, Maria Nazaré (orgs). Literatura Afro-Brasileira. Salvador: CEAO; Brasília (DF): Fundação Cultural Palmares, 2006. [31/33]

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