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Transcrição:

cultura uma crítica a Inside Job, o documentário sobre a crise financeira de 2008 nos eua retrato dobrasil www.retratodobrasil.com r$ 8,00 n O 46 MAIO de 2011 trabalho nas metrópoles, parar o carro em lugar público segue a lógica dos flanelinhas

retrato dobrasil www.retratodobrasil.com n o 46 maio de 2011 6 Ponto de Vista entre dois modelos A economia brasileira é marcada por anomalias. Para corrigi-las, o governo Dilma deve seguir o caminho dos EUA ou o da China? 18 as monarquias americanas Regimes absolutistas, como os da Arábia Saudita, Bahrein e Jordânia, ajudam a manter a hegemonia dos EUA no Oriente Médio [Flávio Dieguez] Reuters 10 para entender a energia nuclear As lições do desastre nas usinas japonesas de Fukushima [Raimundo Rodrigues Pereira e Flávio de Carvalho Serpa] 24 a opção armada Insegurança e violações dos direitos humanos dão o tom da guerra ao narcotráfico promovida pelo governo do México com apoio americano [Joana Moncau e Spensy Pimentel] 40 se essa rua fosse minha Nas grandes cidades brasileiras, para estacionar o carro em local público é preciso seguir a lógica dos flanelinhas [Tomás Chiaverini] Gabo Morales

48 a casa de espelhos do capital O documentário Inside Job mostra a crise de 2008 como responsabilidade de financistas inescrupulosos. E não percebe que ela foi produzida pelas próprias regras do jogo [Leda Maria Paulani e Leandro Saraiva] fale conosco: www.retratodobrasil.com Divulgação cartas à REDAÇÃO cartas@retratodobrasil.com rua fidalga, 146 conj. 42 cep 05432-000 são paulo - sp assinaturas vendas@retratodobrasil.com tel. 11 3032 1204 ou 3813 1527 de 2 a a 6 a, das 9h30 às 17h atendimento AO ASSINANTE assinatura@retratodobrasil.com tel. 31 3281 4431 de 2 a a 6 a, das 9h às 17h Para anunciar comercial@retratodobrasil.com tel. 11 3032 1204 ou 3813 1527 de 2 a a 6 a, das 9h30 às 17h 30 pernambuco contra o crime Os índices ainda são altos, mas há quatro anos o governo estadual vem reduzindo o número de homicídios com o Pacto pela Vida [Tânia Caliari, com a colaboração de Willian Monte Olívio] 46 derrubando mitos da mpb Relançado eletronicamente, o livro Seguindo a canção trata do sistema de produção e consumo da MPB na década de 1960 [Maurício Cardoso] CIRCULAÇÃO em bancas circulacao@retratodobrasil.com edições anteriores vendas@retratodobrasil.com REDAÇÃO redacao@retratodobrasil.com Entre em contato com a redação de Retrato do Brasil. Dê sua sugestão, critique, opine. Reservamo-nos o direito de editar as mensagens recebidas para adequá-las ao espaço disponível ou para facilitar a compreensão. capa Alex Silva EXPEDIENTE - SUPERVISÃO EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira EDIÇÃO Armando Sartori SECRETÁRIO DE REDAÇÃO Thiago Domenici REDAÇÃO Flávio Dieguez Leandro Saraiva Lia Imanishi Rafael Hernandes Sônia Mesquita Tânia Caliari EDIÇÃO DE ARTE Pedro Ivo Sartori ESTAGIÁRIOS Simone Freire de Carvalho Willian Monte Olívio REVISÃO Silvio Lourenço Bruna Bassette Andresa Medeiros Carolina Sé Helder Profeta [OK Linguística] COLABORARAM NESTA EDIÇÃO Flávio de Carvalho Serpa Gabo Morales Joana Moncau Leda Maria Paulani Maurício Cardoso Spensy Pimentel Tomás Chiaverini Retrato do BRASIL é uma publicação mensal da Editora Manifesto S.A. EDITORA MANIFESTO S.A. PRESIDENTE Roberto Davis DIRETOR VICE-PRESIDENTE Armando Sartori DIRETOR ADMINISTRATIVO Marcos Montenegro DIRETOR EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira DIRETOR DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS Sérgio Miranda GERENTE COMERCIAL Daniela Dornellas REPRESENTANTE EM BRASÍLIA Joaquim Barroncas Tel. 61 3328 8046 ADMINISTRAÇÃO Neuza Gontijo Maria Aparecida Carvalho OPERAÇÃO EM BANCAS Assessoria EDICASE [www.edicase.com.br] Distribuição Exclusiva em Bancas FC COMERCIAL E DISTRIBUIDOR S.A. Manuseio FG Press

Ponto de vista Ricardo Stuckert/Presidência Jason Lee / Reuters Entre dois modelos Obama veio ao Brasil, Dilma foi à China. Para onde vai nosso novo governo? Em meados do mês passado, a presidente Dilma Rousseff participou, na Ilha de Hainan, na China, de reunião do grupo de países destacados como emergentes na nova ordem internacional Brasil, Rússia, Índia e China, ampliado agora com a África do Sul (imagem ao alto). O termo Bric B de Brasil, R de Rússia, I de Índia e C de China, que batizava o antigo bloco é uma criação do banco de investimentos Goldman Sachs, a mais famosa casa financeira de Wall Street. Tem um sentido econômico: designa um grupo de países grandes em território, população e recursos. Do ponto de vista político, não esclarece para onde esses países querem ir. Um dos principais resultados da reunião dos cinco, no entanto, foi uma condenação da intervenção de forças armadas dos países ricos França, Reino Unido e EUA, especialmente na Líbia e na Costa do Marfim. A presença da África do Sul é significativa nesse sentido. O presidente do país, Jacob Zuma, acabara de liderar uma caravana da Organização da Unidade Africana (OUA), que esteve com Muammar Kadafi em Trípoli e depois com os dirigentes anti-kadafi em Benghazi, sede dos rebeldes, com o objetivo de encontrar uma solução negociada para o conflito na Líbia diferente da que a OTAN, a aliança militar europeia, está tentando impor pelas armas. E o comunicado do grupo agora rebatizado de Briscs, para incluir o S de South Africa foi além das costumeiras afirmações econômicas do bloco dos quatro. Foi uma declaração nitidamente voltada contra os ataques aéreos das potências ocidentais anti-kadafi e aqueles contra o palácio presidencial do candidato derrotado nas eleições na Costa do Marfim. Nós partilhamos do princípio de que o uso da força deve ser evitado. [ ] Declaramos que independência, soberania, unidade e integridade territorial de cada nação devem ser respeitadas. Tanto no caso da Líbia quanto no da Costa do Marfim, está cada vez mais evidente que o esforço das potências ocidentais é definir quem deve ser chamado de democrata e antigenocida e, portanto, ser o vencedor do conflito. 6 retratodobrasil 46

Nas duas guerras civis em andamento nesses países são disputados, de fato, como há muito, petróleo e mercados. A declaração de Hainan permite a seguinte pergunta: ao contrário do que se diz, de que o mundo caminha para uma reorganização multipolar, seria possível dizer que está em curso um processo de formação de dois grandes blocos internacionais um sob a hegemonia americana, agrupando as potências ocidentais tradicionais e aliados, e outro em que a China desponta como a potência principal e para o qual o Brasil estaria em trânsito desde os governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva? Vendo a conjuntura a partir do Brasil, a resposta é negativa. E considerando-se que economia e a política andam de mãos dadas, cabe o seguinte acréscimo: se depender da posição brasileira, hoje um bloco independente dos EUA não se forma. O governo da presidenta Dilma segue ancorado a um modelo de desenvolvimento centrado no capital financeiro internacional. Esse capital está em crise, como os EUA, a potência a que serve. Aqui, no entanto, ainda está indiscutivelmente ativo, potente e com pretensões de continuar no comando. Mais ainda: considerando-se que o objetivo principal da viagem da presidenta do Brasil à China teria sido alterar, a nosso favor, as atuais relações econômicas entre os dois países, o modelo de desenvolvimento chinês ainda teria que sofrer muitas transformações antes que os seus capitais pudessem chegar aqui com o papel de modificar a nossa situação de dependência. Um dos melhores indicadores para se avaliar a posição internacional de um país é o seu resultado anual de transações correntes. Vista desse ângulo, a situação do Brasil é mais próxima da dos EUA ou daquela da China? Dos americanos é a resposta certa. Na lista de países organizada de forma decrescente que tem como critério o valor do saldo de transações correntes obtido no ano de 2010 nas relações comerciais com o exterior a China está no topo, com 272,5 bilhões de dólares de superávit, seguida pelo Japão, com 116,5 bilhões, pela Alemanha, com 162,3 bilhões, e pela Rússia, com 68,8 bilhões de dólares. No final da lista, no 190º posto, estão os EUA, com um déficit de 561 bilhões de dólares. E em sua companhia, de baixo para cima, todos deficitários, estão Espanha, com 66,7 bilhões, seguida por Itália, com 61,7, França, com 53,3, e Brasil, com 52,7 bilhões de dólares. O que isso significa? As contas de transações correntes medem o comércio de mercadorias e o de serviços. Países desenvolvidos, como os que acompanham o Brasil na rabeira da lista citada, de um modo geral importam muitas mercadorias e são deficitários nessa parte da conta. Mas reduzem ou eliminam esse déficit porque, em geral, são superavitários na conta de serviços, em especial os chamados serviços do capital, que recebem como pagamento de juros, lucros, dividendos, aluguel de equipamentos e outras rubricas. Isso se dá pelo fato de esses países terem um setor industrial mais desenvolvido e serem exportadores de capital. De 20 anos para cá, os EUA tornaram-se uma espécie de anomalia nesse bloco desenvolvido: seu déficit de transações correntes, longe de tender para o equilíbrio, passou a crescer ininterruptamente, indo de praticamente zero em 1991 para 6,5% como porcentagem do PIB do país em 2010. Os americanos puderam fazer isso porque ano a ano o governo tem coberto o déficit das contas internacionais do país com empréstimos. A dívida em títulos do governo dos EUA hoje está perto do limite fixado pelo Congresso há aproximadamente um ano, de cerca de 14,5 trilhões de dólares. Perto de 40% dessa dívida são valores captados no exterior usados para cobrir o rombo das contas correntes no balanço de pagamentos geral do país. A situação dos americanos, no entanto, é muito diferente da do Brasil. Grande parte de sua dívida está em papéis com dez ou mais anos de vencimento, e os juros que eles pagam por esses papéis estão hoje próximos de 3% ao ano. O Brasil paga nos seus papéis de longo prazo juros com mais do dobro dessa taxa. E o que é pior: grande parte de nossa dívida é de curto prazo e, no que constitui uma anomalia financeira internacional, o País paga juros mais altos nesses títulos do que nos de longo prazo. Enquanto no curto prazo o Federal Reserve, o Banco Central americano, paga juros de cerca de 0,5% ao ano, no Brasil a taxa de juros do curto prazo, a chamada Selic, estava em 11,25% ao ano em meados do mês passado. E em ascensão. Como disse o presidente do Banco Central (BC) brasileiro, Alexandre Tombini, em evento durante a reunião anual do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Washington, realizada em 15 de abril: Estamos no meio de um ciclo de aperto monetário. O Brasil vive uma dupla anomalia. Primeira: a de, não sendo rico, estar metido no bloco dos ricos, que vivem acima dos seus meios. Segunda: a de pagar, quase de um dia para outro portanto, com pouco risco para o emprestador juros muito mais altos do que paga por empréstimos tomados a prazo mais longo. O que explica isso? Como veremos a seguir, as duas anomalias estão interligadas numa história de quase 20 anos. O Brasil vive uma falsa condição de estabilidade. Ela se criou a partir de 1992, ainda no governo liberal do presidente Fernando Collor de Mello. Na ocasião, o BC foi entregue a uma administração de financistas ligados a Wall Street e a serviço dos grandes capitais instalados no Brasil. Eles elevaram as taxas de juros de curto prazo internas aos níveis mais altos do mundo. Essa 46 retratodobrasil 7

situação persiste até agora. Os juros altíssimos cerca de 200 bilhões de reais devem ser pagos pela União no ano em curso por conta deles são os principais garantidores da estabilidade das contas do País e de sua moeda, porque atraem dólares que permitem fechar o balanço de pagamento, tomados no exterior a taxas muito menores. Mas não criam uma situação favorável ao desenvolvimento interno porque são atraídos exatamente pelas recompensas de curto prazo. O real é disputado, em geral, não porque o capital estrangeiro compra moeda para um investimento de longo prazo no País, mas porque, entre outras razões, ele especula com o valor em dólar do real e com o valor de um ativo já existente que comprou aqui. Um exemplo fictício ajuda a compreender o raciocínio: 10 milhões de dólares entraram no ano passado no Brasil com o câmbio a 1 dólar por 1,80 real. Com esse valor, o investidor comprou ações de uma empresa no valor de 18 milhões de reais. Agora, ele retira o capital para o exterior com a empresa valendo, digamos, 11% a mais, 20 milhões de reais. O investidor pode embolsar, em dólares, os 2 milhões de reais de valorização do ativo a um câmbio muito mais favorável, de 1 dólar a 1,60 real. Feitas as contas, leva, então, 12,5 O País vive duas anomalias, numa história de quase 20 anos que começou com Fernando Collor milhões de dólares. São 25% de lucro sobre o capital aplicado. E não os 11% de valorização do ativo no País. A presidenta Dilma passou quase uma semana na China depois de ter recebido o presidente americano Barack Obama no Brasil. Ela procura fórmulas para melhorar o balanço das relações comerciais com os chineses, que são agora os nossos maiores parceiros. Como fazer isso? Tome-se o exemplo tirado das empresas automobilísticas estrangeiras em geral. No ano passado, elas foram as recordistas em enviar lucros e dividendos para o exterior, mais de 4 bilhões de dólares do incrível total de perto de 30 bilhões de dólares remetidos ao exterior sob essa rubrica pelos capitais estrangeiros de todos os setores. Praticamente todas essas empresas têm bancos de financiamento da compra de seus veículos. Todas elas tomam dinheiro emprestado lá fora, a juros europeus, japoneses ou americanos todos entre os mais baixos do mundo. Todas emprestam esse dinheiro ao comprador do carro aqui, a juros locais ou, seja, os mais altos do mundo. E remetem esses lucros financeiros como suplemento dos lucros provenientes da produção automobilística propriamente dita. De que maneira os investimentos da JAC (Jianghuai Automobile Corporation), a montadora chinesa de automóveis que Dilma e Obama, no Brasil: na lista dos países com os maiores déficits em transações correntes do mundo, estamos próximos dos americanos Ricardo Stuckert/Presidência 8 retratodobrasil 46

Ricardo Stuckert/Presidência Dilma e o presidente chinês Hu Jintao: o governo brasileiro procura uma saída para equilibrar o comércio exterior com a China hoje tem Faustão, o apresentador da TV Globo, como seu garoto-propaganda, serão diferentes, basicamente, por exemplo, dos da francesa Renault ou dos da sul-coreana Hyundai? A JAC é uma estatal com uma bela história. Foi fundada em 1964. Fazia caminhões na época da Revolução Cultural chinesa. Cresceu e prosperou fazendo associações com o capital estrangeiro em troca de transferência de tecnologia, a qual hoje domina. Criou uma linha de caminhões leves de sucesso. Obteve autorização do governo para produzir carros. É uma das cerca de mil estatais da China que saiu para disputar o mercado global. Tem o Estado e o imenso mercado chinês na retaguarda. Mas não veio para cá para nos ajudar, com certeza, e sim para lucrar e crescer mais. O que o Brasil tem para contrapor? Há muito o País desistiu de ter uma indústria automobilística nacional. O caso da indústria de telecomunicações poderia ser diferente? Uma das esperanças nessa área é ampliar os negócios no Brasil da Huawei, a empresa chinesa que hoje é uma das líderes mundiais em equipamentos de comunicação móvel, criada por um ex-oficial do Exército de Libertação Popular da China. Mas onde estão as empresas nacionais com força e apoio estatal suficientes para conseguir da Huawei alguma concessão Como negociar com as empresas chinesas, amplamente amparadas pelo Estado e por seu imenso mercado? importante? A atual Oi, fusão da Brasil Telecom com a antiga Telemar, criada com gigantesco financiamento oficial para ser a tele verde-amarela, mudou de destino. Hoje é apenas a tele de língua portuguesa, com um bom pedaço nas mãos da Portugal Telecom. Embora o volume do comércio internacional do País tenha crescido muito, em especial devido às enormes compras chinesas, o Brasil está tendo uma regressão nesse campo: exporta cada vez mais matérias-primas e importa cada vez mais produtos de alta tecnologia. Na China, junto com a presidenta, o ministro brasileiro de Ciência e Tecnologia, Aloysio Mercadante, fez uma avaliação penosa dessa situação: o Brasil vende 1,7 mil toneladas de soja, ou 21,5 mil toneladas de minério de ferro, para comprar apenas uma tonelada de semicondutores, um dos principais produtos exportados pela China para nosso País. É bom procurar soluções para o baixo desenvolvimento tecnológico do Brasil. Mas é certo que a presidenta Dilma não vai achá-las na China. Lá, ela disse que os juros daqui têm de cair. E logo. Muito bem. Mas a que isso leva? Desde que, há cerca de 20 anos, os juros estratosféricos foram impostos ao País para a montagem do modelo liberal é dito que eles devem cair. 46 retratodobrasil 9