Rotura isolada da vesícula biliar por traumatismo abdominal fechado caso clínico

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Transcrição:

CASO CLÍNICO Rotura isolada da vesícula biliar por traumatismo abdominal fechado caso clínico Isolated gallblader rupture due to closed abdominal trauma clinical case Centro Hospitalar de Lisboa Central E.P.E: Hospital de Santo António dos Capuchos Serviço 6 Homem de 17 anos, vítima de acidente tauromáquico em Benavente do qual resultou traumatismo abdominal fechado por cornada de touro no abdómen. Transportado à sala de emergência do nosso hospital apresentava-se, à entrada, consciente e orientado, Glasgow Coma Score de 15, com pupilas isocóricas e reactivas. Apesar de taquicárdico, os restantes parâmetros hemodinâmicos eram normais. No restante exame objectivo não foram detectadas alterações ventilatórias apreciáveis, apesar do traumatismo contuso do tronco que envolvia a face anterior do hemitórax direito e o hipocôndrio ipsilateral. A parede torácica apresentava múltiplas feridas abrasivas e o doente referia dor abdominal espontânea no hipocôndrio direito e epigastro, agravada pela palpação e percussão, com defesa evidente no hipocôndrio direito. As análises realizadas na admissão não revelaram alterações. A radiografia simples de abdómen (fig. 1) demonstrou uma opacificação dos quadrantes direitos com ausência de gás intestinal nessa região e ausência de pneumoperitoneu. A repetição do hemograma permitiu constatar uma descida do valor da hemoglobina de 1g/dl por comparação com os valores iniciais na admissão. A clínica de abdómen agudo com defesa e dor abdominal de intensidade progressiva associada ao resultado imagiológico e à descida da hemoglobina determinaram a opção por proceder a exploração cirúrgica. Procedeuse a laparotomia mediana que revelou coleperitoneu generalizado, por rotura do fundo da vesícula. Procedeu-se a lavagem peritoneal abundante e exame siste- II Série Número 3 Dezembro 2007 51 Revista Portuguesa de Cirurgia

Fig. 1 Rx simples de Abdomen matizado dos orgãos da cavidade abdominal para exclusão de outras lesões potenciais. O doente foi seguido em regime de consulta externa tendo-se mantido assintomático. O traumatismo fechado da vesícula biliar é raro por comparação com o penetrante. Tal raridade deve-se fundamentalmente a razões anatómicas regionais, uma vez que a vesícula se encontra localizada num recesso protegido. As maiores séries envolvendo traumatismos da vesícula, referem-se a traumatismos abertos e fechados. No entanto a de Soderstrom et al. (2) com 1449 doentes inclui apenas traumatismos fechados. A incidência de traumatismo fechado da vesícula é diminuta cerca de 2%. Mais raro ainda é o traumatismo isolado da vesícula biliar, não associado a traumatismo da árvore biliar, hepático ou duodeno-pancreático. Os factores etiológicos mais preponderantes in - cluem as quedas, acidentes desportivos rugby, futebol, agressões e, actualmente, acidentes rodoviários por mecanismo de desaceleração. O traumatismo fechado predomina na criança e jovem, e o penetrante aumenta no adulto. Os traumatismos que envolvem a vesícula biliar são por vezes diagnosticados durante uma laparotomia realizada por outras lesões abdominais associadas (1). Dada a variabilidade de apresentação clínica, algumas lesões são diagnosticadas e tratadas tardiamente com as consequentes implicações na evolução e agravamento. A radiografia simples do abdómen, embora inespecífica, pode alertar para a rotura pela presença de opacificação no hipocôndrio com indentação cólica. (4) A ecografia, convencional ou pelo método FAST, embora possa não diagnosticar de forma inequívoca a lesão traumática da vesícula, particularmente na litíase biliar ou em lesões contusas sem perfuração, pode ser útil se houver lesão associada da VBP e a dilatação a 52

tico só se justifica plenamente perante sinais inequívocos de abdómen agudo,(4) embora no caso que reportamos, por razões logísticas, não tivesse sido essa a opção. Actualmente, a classificação dos traumatismos da vesícula é a do quadro em baixo. (3) A rotura pode acontecer em qualquer vesícula submetida a forças de tracção, torção ou avulsão, mas a maior tendência à lesão verifica-se na vesícula com parede fina. Na colecistite crónica, pensa-se que são forças tangenciais dirigidas à superfície inferior do fígado, as responsáveis por estas lesões (7). Entre outros factores predisponentes salientam-se a vesícula distendida após a refeição e a ingestão de álcool. (1) O tratamento do traumatismo fechado da vesícula depende da gravidade global das lesões detectadas, da precocidade do diagnóstico e pode variar entre a vigilância expectante e a colecistectomia convencional clássica, associada eventualmente a outros procedimentos. A laparoscopia é uma via de abordagem terapêutica, (4,8) em centros com experiência. No entanto, em lesões pequenas, recentes e sem isquémia considera-se a sutura e até a colecistopexia em casos de avulsão parcial. (4,8) A colecistostomia e a drenagem sub-hepática em doentes muito instáveis (8) representam uma alternativa. O prognóstico é habitualmente bom se o diagnóstico for precoce e não houver lesões associadas. Prontamente reconhecida a mortalidade é inferior a 10% mas em lesões extensas e com tratamento adiado pode chegar aos 40% (8). montante pode ser bem apreciada. A lavagem peritoneal diagnóstica em doentes instáveis, pode revelar bílis no líquido de lavagem peritoneal, embora não descrimine a sua origem. (1) A TC abdominal pode demonstrar a fuga de contraste da vesícula ou da árvore biliar, lesada. Alguns autores (3) têm ainda descrito sinais TC de hiper-densidade peri-vesicular que durante a cirurgia, vêm a ser identificados como coágulos luminais ou sub-serosos. A cintigrafia com HIDA pode confirmar a fuga biliar intra-abdominal. (4) A RMN pode ajudar a distinguir sangue de bílis e a CPRE pode eventualmente complementar a evidência de lesões associadas. Resta saber se os custos inerentes a estas técnicas justificam o benefício da informação adicional. A laparoscopia como método adicional de diagnóstipo 1. Contusão 2. Laceração 3. Avulsão 4. Colecistite Traumática Subtipo 1A 1B 1C 3A 3B 3C 3D 4A 4B Descrição Hematoma intramural Hematoma intramural com necrose e perfuração Hematoma intraluminal não resolvido Rotura imediata Avulsão parcial da vesícula do leito hepático Avulsão total mas mantendo ligação ao ligamento hepato-duodenal Arrancamento só do ligamento hepato-duodenal Avulsão completa (colecistectomia traumática) Secundária a hemobilia em trauma hepático Colecistite Aguda Alitiásica traumática 5. Rasgadura incompleta Rotura isolada da vesícula biliar por traumatismo abdominal fechado caso clínico 53

BIBLIOGRAFIA 1. Sharma Om, Toledo Hospital Ohio, USA: Blunt Gallbladder Injuries: Presentation of 22 cases with review of literature, The Journal of Trauma: Injury, Infection and Critical Care 39:3 1995 2. Soderstrom CA, Maeka K, DuPriest RW Jr: Gallbladder injuries resulting from blunt abdominal trauma. Ann Surg 193:60, 1981 3. Jeffrey RB, Federle MP, Laing FC, Wing VW. Computed tomography of blunt trauma to the gallbladder. J Comput Assist Tomogr, 10:756-758 1986 4. Kohler R, Millin R, Bonner B, Louw A: Laparoscopic treatments of an isolated gallbladder rupture following blunt abdominal trauma in a schoolboy rugby player. Br J Sports Med 36: 378-379 2002 5. Losanoff JE, Kjossev KT. Complete Traumatic Avulsion of the gallbladder. Injury 30:365-368 1999 6. Nishiwaki m, Ashida h, Nishimura T, et al. Post-traumatic intra-gallbladder hemorrhage in a patient with liver cirrhosis. J Gastroenterol 34:282-285 1999 6. Xeropotamos N, Baltoyannis G, Nastos D, Ginnovkas A, Cassioumis A. Traumatic cholecystecomy. Eur J Surg. 158:249-250 1992 7. Konstantakos AK, Ponsky JL, Biliary Trauma Medline 2004 Correspondência: MÁRIO MENDES Hospital de Santo António dos Capuchos Serviço 6 1169-050 Lisboa Telef. 351 21 3136300 54