As máscaras festivas de Qhapaq qulla e Qhapap chunchu em Paucartambu (Peru): primeiras experimentações cênicas em Uberlândia (MG)



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Transcrição:

As máscaras festivas de Qhapaq qulla e Qhapap chunchu em Paucartambu (Peru): primeiras experimentações cênicas em Uberlândia (MG) Vilma Campos dos Santos LEITE 1 RESUMO Em Paucartambu na província de Cusco no Peru acontece anualmente entre 15 a 18 de julho a Festa de Nossa Senhora do Carmo, chamada como "Mamita" e padroeira dos mestiços. O cortejo é formado por peregrinos, dançantes e músicos que percorrem as ruas, a praça, a prisão e o cemitério da pequena cidade com instrumentos tocados ao vivo e utilizando junto com o espanhol, o quéchua uma das importantes línguas indígenas faladas na região andina. A partir dos estudos da antropóloga Gisela Cánepa Koch sobre a construção e a identidade dessa festa em Paucartambo, tenho procurado refletir sobre as potencialidades das máscaras. Realizei um estudo exploratório nos meses de janeiro e fevereiro de 2015 com o intuito de delimitar um projeto de pesquisa de pós-doutorado a ser realizado em 2016. Nas máscaras das festas da cultura popular vejo similaridades e potencialidades para o trabalho de criação e formação teatral.. PALAVRAS-CHAVE: máscaras andinas; Paucartambu; cultura popular. Contexto que dá origem ao desejo de uma investigação A história da máscara se confunde com a história da humanidade. Como afirma Edward Gordon Craig (1872-1966) na revista Masks em 1908, a máscara é um artefato utilizado nos contextos mais diversos de cerimônias religiosas à própria utilização artística. 1 Professora do curso de graduação em Teatro e Mestrado em Artes Cêncas e ProfArtes do IARTES/UFU, doutora em História, email: leitevilma2008@hotmailcom 1

Socialmente, muitas vezes associada à ideia de "disfarce" para "ocultar uma identidade". Vem sendo utilizado no âmbito teatral não só como uma possibilidade estética, mas também como uma ferramenta importante para o trabalho do ator, uma vez que elementos técnicos como precisão e limpeza de movimentos são requeridas de quem utiliza uma máscara em cena. No século XX, vários homens de teatro se detiveram sobre as possibilidades pedagógicas da máscara para o trabalho de ator, sendo a máscara neutra trabalhada por Jacques Lecoq na segunda metade desse século o nome mais emblemático. Segundo a classificação que Susan Harris Smith traz das máscaras, o gênero da Commedia dell'arte estaria inserido nas de cunho satírico e grotesco (Smith, 1984) 2. O gestual exagerado e específico que máscaras como a de Pantalone, Arlequino ou Dottore exige, de acordo com a linguagem cômica, possibilita o refinamento da percepção e das habilidades corporais em cena. Por isso, para além do gênero em que esse naipe de máscara se insere, tem sido possível chegar ao que Felisberto Sabino da Costa tem chamado de "pedagogia para a (trans)formação do ator, propiciando-lhe referências para a composição de um corpo cênico" (Costa, 2006, p. 156). Mas para além das máscaras que vêm de tradições estéticas ou teatrais, ou ainda de experimentos de diretores e outros pedagogos da cena, haveria possibilidades de utilização de máscaras que estão presentes em outros contextos sociais para uma apropriação em cena? Há, por exemplo, nas mais diferenciadas culturas, muita festas que trazem a máscara como um elemento fundamental. Seria possível levar essas máscaras provenientes de culturas populares para o âmbito de uma criação cênica e estética? Como utilizar máscaras da tradições da cultura popular como ponto de partida para o trabalho de formação e criação teatral? É esse o meu interesse atual e várias manifestações poderiam ser o foco dessa experimentação da festa do cavalo marinho em Recife à mascarada de Pirinópolis em Goiás. No entanto, faço o recorte pela festa de Nossa Senhora Del Carmen em Paucartambo no Peru. Meu primeiro contato com objetos (livros, DVDs e algumas máscaras) e informações dessa festa foi a partir de uma viagem que realizei em 2011. Em fevereiro daquele ano participei, durante dez dias, do Laboratório aberto do grupo Yuyachkani em Lima, Peru. Pude constatar que esse grupo tem trabalhado com a 2 Os outros três tipos de máscara trazidos por Smith são: ritual, mito, espetáculo; imagens do sonho ou conflitos metais e as máscaras sociais. 2

cultura andina e que as máscaras são fonte e estímulo para a composição da criação cênica. Fiquei bastante intrigada com a apropriação dos Yuyachkani da cultura tradicional de seu país, uma vez que no Brasil temos nos utilizado cenicamente de máscaras que vem de tradições distantes (como Máscaras Balinesas e a Commedia Dell'Arte), mas dificilmente a teatralização a partir de festas do nosso país ou de nosso continente. O Yuyachkani, surgido no contexto de teatro de grupos na América Latina há cinquenta anos alterou o meu olhar para essas outras tradições que muitas vezes são consideradas por nós como liminares, alternativas ou periféricas Muitas das obras desse grupo continuam ativas em seu repertório como processo de aprendizado e de questionamento e algumas delas tem sido realizadas em espaços alternativos. Em consonância com nossa época que demanda encontros fora do edifício teatral, o grupo tem se esmerado em buscar habilidades cada vez mais híbridas e não representacionais. Isso contudo não exime o grupo de estar conectado com a origem do teatro e consequentemente ao mundo da máscara. No site do grupo é possível encontrar o significado dessa linguagem em seu trabalho: La máscara para Yuyachkani es parte de su reflexión y proceso de creación, pues encuentra viva en ella la noción ancestral de identidad, que es uno de los elementos a partir de los cuales elabora su propuesta, dirigiendo sus aportes hacia una dramaturgia nacional. Apesar do trabalho coletivo, cada ator tem suas pesquisas específicas. Debora Correa, por exemplo tem,uma demonstração pedagógica chamada "Atrás da máscara" (DVD) onde traz à tona personagens mascarados que estão presentes na cultura do seu país, fazendo uma demonstração do treinamento corporal e vocal prévio para o uso da máscara e as habilidades que cada uma delas requer como (precisão, movimentos, canto, dança, etc.) O que máscaras de uma festa como a de Paucartambo pode comunicar e favorecer no processo de criação e de formação de um artista cênico? Como utilizá-las a partir das referências e contextos próprios como os do Brasil? Como não descaracterizar a máscara ao trazer para um outro contexto? Minha hipótese é que, independentemente de sua origem e localização geográfica, a máscara traz características humanas, são potentes; afinal, são pertencentes a uma festa com sincretismo entre práticas précolombianas e as do mundo cristão. Aspectos rituais desses exemplares de máscaras 3

parecem-me evidentes para a criação e formação do artista, vinculados a aspectos de narrativas e memórias do homem, enquanto espécie biológica. Alguns aportes teórico-metodológicos Vejo, assim, que a manifestação dessas máscaras em uma cultura diferente da de origem pode ser relevante se evidenciar os aspectos arquetípicos. Inicialmente comecei a pesquisa por uma abordagem bibliográfica e compreendo a partir de Joseph L Henderson (apud JUNG, 1977, p. 112) que dentro da tribo dos Winnebagos (tribo de índios norte-americanos estudada pelo Dr. Paul Radin em 1948) há quatro ciclos de heróis: o Trickster, Hare, Red Horn e Twins 3. Compreendo o ciclo do Trickster como aquele que corresponde a muitas das máscaras presentes nas festas da cultura popular, como por exemplo a de Paucartambo. Essas máscaras são dominadas por suas necessidades mais elementares, seja de fome, sexo ou outras. Podem ser nomeadas como brincantes e como tal subvertem a ordem trazendo, através do riso, uma nova configuração do mundo, como há muito já nos ensinou Bakhtin (1987). O Trickster, no contexto dos Winniagos, foi associado à figura do coelho ou raposa e a própria criança em seus primeiros anos. No Brasil, na cultura popular podemos associar essa figura ao João Grilo, às máscaras de Mateus e, na literatura, a figura emblemática é Macunaíma. Tenho procurado partir desses arquétipos para compreender esses brincantes na festa de Paucartambo e considero que outros dois fundamentos relevantes sejam a "pulsão ficção", conforme os estudos de Suzi Frankl Sperber e também a busca de "outras poéticas" conforme as indagações do dramaturgo Luís Alberto de Abreu (apud Nicolete, 2011, p. 620). Pretendo trilhar com tais máscaras trajetórias que ainda carecem de narrativas, não só para comunicar com o aqui e agora, mas também "na necessidade de a razão humana dar alguma geometria aos escombros que a intuição indica" (Nicolete, 2011, p.620). No momento principal da festa, a imagem da virgem é conduzida em procissão para abençoar a todos e assustar os demônios que realizam acrobacias no alto de muros, telhados e sacadas da pequena cidade. São os Sarjas que assim como os Dotorcitos, Waca Waca, Imilla e outros personagens estão todos mascarados. Entre eles, Qhapap 3 Hare mais civilizado que o Trickster, embora inicialmente esteja associado também ao coiote inaugura o homem da cultura; O Had Horn é o terceiro herói típico pela força ou astúcia que vence batalhas e gigantes. Os Twins são os gêmeos que se completam finalizam o ciclo desses heróis. Maiores informações in Henderson, apud Jung, 1990. p. 112 a 114) 4

qulla, uma máscara de lã, que representa os comerciantes que chegavam a essa pequena cidade para a troca de produtos (imagem 1) imagem 2 imagem 1 Destaca-se também os Qhapaq ch'unchu, uma máscara de tela vazada que representa habitantes do Antisuyu, região da selva andina (imagem 2). Acontecem duelos e disputa entre os grupos durante a narrativa festiva. Segundo a antropóloga Gisela Cánepa Koch, a festa de Nossa Senhora Del Carmen traz à tona conflitos históricos, como a relação entre trabalho e migração. De certa forma, a dança funciona como "intermediária em uma relação de intercâmbio entre os paucartambinos mestiços e a virgem, se configura como uma unidade ritual que simboliza o mundo de dentro, delimitando-o e reforçando a identidade coletiva" (KOCH, 1993, p. 254) 4. A presente comunicação tem como intuito compartilhar os primeiros experimentos que realizei com duas máscaras dessa festa para uma composição cênica. Nos meses de janeiro e fevereiro de 2015 fiz uma experimentação da máscara de Qhapap qulla com oito pessoas, entre estudantes da graduação e pós graduação (seis deles em teatro, uma em música e outra em Design) da Universidade Federal de Uberlândia. Nesse período para uma primeira abordagem prática de condução de procedimentos com essa máscara busquei aproximar os atores do universo da máscara andina com músicas, imagens e objetos desse contexto. 4 "intermediaria en una relación de intercambio entre los paucartambinos mestizos y la virgen, se configura como una unidad ritual que simboliza al mundo de adentro, delimitandolo y reforçandolo como una identidad coletiva". 5

Já havia experimentado Qhapaq chunchu na peça "Sobre o murmúrio do rio" (direção de Antônio Correa Neto, dramaturgia de Luiz Carlos Leite) em que atuei como atriz no ano de 2012. Essa máscara mostrou-se bastante teatral permitindo-nos a utilização sobre o rosto e mesmo como possibilidade no teatro de sombras. O personagem era um barqueiro que fazia travessia das pessoas e essa função dentro do enredo veio a calhar com a origem imigrante dessa máscara. Mas como colocar essa mesma máscara no rosto de outros atores e sem ter um texto dramatúrgico prévio? Os cinco encontros que realizei como período exploratório dessa pesquisa contribuíram para que eu possa mergulhar no universo dessas duas primeiras máscaras e a possibilidade de colocar em prática as informações com as quais tenho tido contato a partir de vídeos sobre Paucartambo e a leitura dos estudos da antropóloga Gilela Canepa Koch (1993). Como mencionado anteriormente tenho identificado essas máscaras como Qhapaq chúnchu (fig. 1) da figura n. 2 como Qhapaq qulla (figu. 2). Qhapaq Chúnchu representa habitantes da selva de Antisuyu que são os dançarinos prediletos na festa da Virgem do Carmen. Já Qhapac qulla representa comerciantes do altiplano (Qullasuyo) que chegavam a Pautarcambo para negociar seus produtos. Embora as máscaras façam menção a uma história local e nacional, há sem dúvidas também transformações que se constituem em uma memória viva. Como diz Gisela com relação aos participantes de Paucartambo está "en juego la autencidad de la una expresión específica, sino más bien la proyección utópica de un grupo" (Koch, 2008, p. 66). Há para além dos tipos e regiões que essas máscaras representam, aspectos simbólicos que estão para além de sua geografia e seu contexto mais específico. O processo de trabalho Quando trabalho com a formação de atores tendo como base a máscara neutra e a máscara expressiva da Commedia dell'arte parto de conhecimentos de outros artistas que vieram antes de mim. As leituras a partir de Philippe Gaulier, Jacques Lecoq, Peter Brook e também de cursos que fiz no decorrer da minha trajetória profissional e também em minha formação teatral são meu ponto de partida. Muitas vezes o compartilhamento de saberes nas artes cênicas acontece como no âmbito da tradição oral. Partir de exercícios clássicos nesse âmbito como "nascimento da máscara", realizar triangulações, além de uma pauta em elementos da natureza e animais não pareciam me servir para o trabalho com as máscaras provenientes da festa de Pautarcambo. 6

O próprio material com que as máscaras são feitas já trouxeram os primeiros estranhamentos tanto aos atores quanto para mim. Na primeira delas, o material "lã" completamente oposto ao clima quente da região em que vivemos já trouxe um incômodo. Como vestir algo que tão quente? E a própria iconografia que trouxe junto informava a necessidade de cobrir o corpo todo (inclusive mãos com luvas). A segunda máscara, apesar de ser uma tela vazada também trouxe questionamentos, uma vez que esses estudantes conheciam as máscaras da Commedia dell'arte que na verdade são máscaras pela metade, ao deixarem a parte inferior do rosto (boca e maxilar ao menos descobertos). Seria possível expressar sons e falar com essa máscara? Sabia que a resposta poderia ser sim, uma vez que, como mencionado acima, já havia utilizado essa máscara em um espetáculo. Mas como levar os atores a experimentar essas possibilidades. A seguir, trago algumas imagens do processo e alguns comentários como um primeiro olhar sobre essa experimentação. Imagem 3 - Laboratório de Máscaras - Dia 05 de fevereiro de 2015 Na figura 3, vemos um dos atores utilizando a máscara de Qhapap qulla no momento em que dentro dos laboratórios buscávamos que os atores tentassem encontrar um ritmo que parecesse o mais natural possível para a máscara escolhida. Vinculado a esse trabalho esteve um plano de Iniciação Científica com a percepção desses pulsos 7

vindos com o ator e com a máscara. Houve muita dificuldade, não só pelo material concreto da máscara, mas porque pareceu-nos que um imaginário anterior precisava ser alimentado num processo mais contínuo. Imagem 4 - Laboratório de Máscaras - Dia 12 de fevereiro de 2015 Na imagem, vemos uma atriz utilizando a mesma máscara de Qhapaq ch'unchu e um ator a máscara de Qhapap qulla.o ritmo que os atores trouxeram ao espaço de experimentação foi relacionado com imagens e sons que remetiam ao mundo andino, por meio de projeções em data show (ver imagem 5) 8

Imagem 5 - Laboratório de máscaras - Dia 12 de fevereiro de 2015. Os atores junto com o vestir da máscara no camarim anexo à sala buscavam cobrir todo o corpo com vários adereços que foram disponibilizados e a partir do que achavam mais condizente com aquela máscara. Logo em seguida entravam em contato com os estímulos visuais e auditivos, mas ainda assim a máscara continuou parecendo extremamente estrangeira a eles. Após essa experiência conversamos bastante sobre a ausência de um imaginário mais constituído e chegamos à conclusão que para o próximo experimento, dois meses depois, procuraríamos a figura do brincante em festas populares brasileiras com o intuito de trazer às máscaras para a cultura dos atores, principalmente levando em conta a necessidade de buscar referências similares em cada contexto e trazendo à tona "a pulsão de ficção" presente em cada máscara. Temos considerado ainda a importância do trabalho corporal desse ator e da musicalidade, já que a presença de instrumentos musicais parece bastante oportuna nessas figuras. Investir na figura do brincante na cultura das festas brasileiras parece ser o passo mais importante para aproximar os atores dessa máscara. 9

Work in process Qhapaq ch'unchu e Qhapap qulla são apenas duas de muitas outras máscaras como diabos, escravos negros, peões da selva, funcionários corruptos da justiça, comerciante de licor, jovens guerreiros, personagens da elite espanhola da colônia, casais de agricultores, soldados chilenos, padeiros e a "imilla", personagem feminina dos Qhapaq Qulla que comparece na festa anual que acontece de 15 a 18 de julho. Talvez elas não sejam exatamente as máscaras mais cômicas do processo da festa e será a imersão em campo e o plano de trabalho de pós doutorado numa perspectiva etnográfica que me permitirá mergulhar nesse universo para compreender as figuras que posso trazer à tona para a continuidade da pesquisa dentro da Universidade em Uberlândia. Por enquanto é possível afirmar a percepção real de que essas máscaras parecem ser muito potentes para a criação e formação teatral, por mais que elas possam ainda parecer estrangeiras. São provenientes de uma determinada cultura, mas impactam aqueles que as utilizam e os que a vêem. Ao término desses primeiros cinco encontros fizemos um compartilhamento com professores e estudantes e foi possível concluir que há a necessidade de continuidade do trabalho e de colocar os participantes em situação com "brincantes" e fazer relação com suas culturas de origem. Considero ainda a necessidade de ter exemplares de outras máscaras das mesmas festas que possam ajudar nesse diálogo, mas tal ação só será possível em 2016. É na relação entre as diferentes máscaras que se manifesta o caráter de cada uma delas. Assim, por mais que a minha análise vá se debruçar sobre determinada máscara colocála em contato com outras de sua mesma natureza parece necessário para o aprofundamento da investigação. REFERÊNCIA: BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. 10

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