no século XIX [Em]COMUM ARQUIVO MUSEU DIOCESE LAMEGO Projeto Uma cidade. Dois museus One city. Two museums



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Transcrição:

no século XIX ARQUIVO MUSEU DIOCESE LAMEGO Projeto [Em]COMUM Uma cidade. Dois museus One city. Two museums

th 19 century no século XIX Arquivo - Museu Diocesano de Lamego 8 de junho - 14 de setembro de 2014

FICHA TÉCNICA EXPOSIÇÃO Direção Luís Sebastian Comissariado José Pessoa (coordenação) Georgina Pinto Pessoa Manuela Vaquero Conservação Georgina Pinto Pessoa Ampliações digitais Alexandra Pessoa José Pessoa Design, produção e montagem Museu de Lamego Publiserv, Lda. Coleção Família Mascarenhas Gaivão Comunicação Patrícia Brás Agradecimentos Aurobindo Xavier Giordano Bruno Paulo Feytor Pinto Paulo Varela Gomes Centro Português de Fotografia CATÁLOGO Textos José Pessoa Georgina Pinto Pessoa Manuela Vaquero Fotografia José Pessoa Alexandra Pessoa Paula Pinto Inventário e Catalogação Georgina Pinto Pessoa Manuela Vaquero Conceção e composição gráfica Luís Sebastian Paula Pinto Imagem da capa Goa Velha - Ruínas do Convento de S. Paulo (Índia), atribuída a Souza and Paul, 1884-1894. Edição Museu de Lamego DRCN Data de Edição Setembro 2014 ISBN 978-989-98657-5-4 O conteúdo dos textos, direitos de imagem e opção ortográfica são da responsabilidade dos autores.

no século XIX ÍNDICE 5 7 9 Apresentação António Ponte (Diretor Regional de Cultura Norte) Luís Sebastian (Diretor do Museu de Lamego) João Carlos Morgado, Pe. (Diretor do Arquivo-Museu Diocesano de Lamego) 12 20 42 54 70 86 90 98 104 112 138 Janelas no Tempo Oriental: Colecção de Fotografias do século XIX José Pessoa Notas de Viagem Egipto Ceilão / SriLanka Timor-Leste Java: Batávia / Jayakarta Georgina Pinto Pessoa Índia Praganã Nagar-Avely Damão Caminho-de-ferro dos Gates Goa Bombaim Manuela Vaquero 144 158 Dossier Museográfico Bibliografia

no século XIX O estabelecimento de parcerias tem-se afigurado como um dos meios mais eficazes de promoção da cultura e da salvaguarda do património cultural. O relacionamento entre instituições culturais de diferentes tipos e de diferentes tutelas, de instituições de cariz diferenciado e, cada vez mais, com particulares tem permitido realizar eventos culturais de grande interesse, permitindo que um público cada vez mais diversificado possa contactar com bens patrimoniais e com narrativas mais estruturadas e qualificadas. A Direção Regional de Cultura através dos seus museus tem procurado promover iniciativas que vão de encontro aos diferentes públicos, qualificando a oferta cultural e potenciando a salvaguarda do património. Não posso deixar de felicitar esta parceria que o Museu de Lamego corporiza com a Diocese de Lamego e com particulares, potenciando a promoção de iniciativas de grande relevância. 5 Uma palavra também para toda a equipe que organizou esta exposição que muito dignifica as instituições e particulares envolvidos. Setembro 2014 ANTÓNIO PONTE Diretor Regional de Cultura do Norte

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no século XIX A exposição Viagem ao Oriente é a segunda expressão pública do trabalho de identificação e inventário de espólios fotográficos familiares com referência ao Douro, que tem vindo a ser levado a cabo pelo Museu de Lamego desde 2012. Iniciado com o espólio particular da família Mascarenhas Gaivão, já em 2013 permitiu a realização de duas exposições: Uma viagem no tempo, do outro lado do espelho e Caminhos do Ferro e da Prata. Debruçando-se a primeira sobre o retrato e a segunda sobre a construção da linha férrea do Douro e Minho, esta última contou ainda com a publicação do respetivo catálogo em suporte de papel. Continuando a intenção de anualmente dar expressão pública ao trabalho de inventário de espólios fotográficos familiares, optou-se neste ano de 2014 por isolar um conjunto fotográfico subordinado ao tema do Oriente, ainda retirado do espólio particular da família Mascarenhas Gaivão, dando forma a uma exposição temporária e publicação do respetivo catálogo, desta feita em formato digital, privilegiando a sua disponibilização gratuita e universal on-line a partir do site do Museu de Lamego (www.museudelamego.pt). 7 Ao contrário das duas exposições realizadas no Museu de Lamego em 2013, nesta nova iniciativa optou-se pela sua realização no Arquivo-Museu Diocesano de Lamego. Esta opção compreende-se dentro do Projeto Em[Comum], protocolado em 2014 entre o Museu de Lamego e a Diocese de Lamego, tendo por objetivo dinamizar os espaços do Arquivo-Museu Diocesano de Lamego através de iniciativas conjuntas. LUÍS SEBASTIAN Diretor do Museu de Lamego Assim, dentro do Projeto Em[Comum], o Museu de Lamego realizou entre 16 de março e 30 de abril de 2014 a exposição A Sé de Lamego no Museu, patente na sala de exposições temporárias do Arquivo-Museu Diocesano de Lamego e contando igualmente com catálogo digital on-line, à qual se junta agora, dentro deste dinamismo de colaboração, a exposição Viagem ao Oriente.

Novamente, cabe aqui agradecer toda a disponibilidade e cooperação da família Mascarenhas Gaivão, sem cuja abertura ao seu precioso espólio fotográfico particular nenhuma destas três exposições teria sido possível. Dentro das habituais parcerias em que o Museu de Lamego se tem apoiado na realização das suas atividades, voltamos nesta iniciativa a contar com o apoio do Teatro Ribeiro Conceição, a quem agradecemos a cumplicidade de sempre. Igualmente vital no desenvolvimento das atividades do Museu de Lamego, o apoio mecenático das empresas da região tem sido um dos principais sustentáculos do dinamismo que se tem querido imprimir à ação do museu enquanto principal agente cultural do território em que se insere. Às mais de uma dezena de empresas que compõem já o quadro de mecenas do Museu de Lamego junta-se agora a GeoDouro (www.geodouro.pt), sem o apoio financeiro da qual esta nova iniciativa não teria sido possível, cabendo neste ponto um especial agradecimento ao Eng. José Alves. 8 Por fim, o agradecimento incontornável às equipas do Museu de Lamego e do Arquivo-Museu Diocesano de Lamego envolvidos nesta iniciativa, cujo esforço e dedicação permite sempre ir mais longe e para lá dos meios materiais disponíveis.

no século XIX O Museu Diocesano de Lamego alegra-se de receber nas suas instalações a exposição Viagem ao Oriente no século XIX. Esta é uma mostra fotográfica, espólio da família Mascarenhas Gaivão, que nos permite viajar no espaço e no tempo pelo Oriente do Século XIX. A presente mostra foi inaugurada no dia 8 de Junho do corrente ano de 2014, no mesmo dia e na mesma hora em que nos Jardins do Vaticano, o Papa Francisco se reunia com os dirigentes de Israel e da Palestina para rezarem em conjunto pela paz no Oriente Médio. Uma coincidência feliz que neste mundo globalizado nos aproximou duma forma tão expressiva dos problemas que hoje afligem o Oriente Médio e o Oriente em geral. A exposição foi oportunidade de (re)visitar o marcante encontro de culturas entre o Ocidente e o Oriente, com um fascínio manifestamente recíproco. As influências foram mútuas e o resultado final uma mundivisão diferente e novos estilos de produção artística que são património novo e comum. 9 As igrejas cristãs, seminários e outros edifícios religiosos (ou o que resta deles), que podemos observar nas fotografias expostas, são testemunho eloquente da passagem de tantos missionários generosos que daqui partiram para essas terras longínquas anunciar o Evangelho, promover a cultura e praticar a caridade. JOÃO CARLOS MORGADO, PE. Diretor do Arquivo-Museu Diocesano de Lamego É grato recordar, registar e convidar a conhecer o nome e a obra de dois missionários jesuítas, oriundos da nossa Diocese de Lamego: os padres João Rodrigues e Sebastião Vieira, naturais de Sernancelhe e Castro Daire, respectivamente, que partindo para as Terras do Sol Nascente, deixaram um eco de heroísmo que ressoou por todo o Oriente. João Rodrigues imortalizou-se pela tinta da sua pena, Sebastião Vieira pelo sangue das suas veias que derramou como mártir. Também estas vidas são património imaterial que é alicerce e muralha de tanto património material.

Viagem ao Oriente no século XIX é mais um feliz resultado do Projecto [Em]Comum que irmana os dois museus da cidade no objectivo idêntico de servir a região, partilhar sinergias e promover a Cultura. Manifesto pois a minha profunda gratidão ao Museu de Lamego, à família Mascarenhas Gaivão, ao comissariado científico e a todos os que em serviços menos visíveis, mas não menos importantes, tornaram possível esta exposição. 10

JANELAS NO TEMPO ORIENTAL: COLECÇÃO DE FOTOGRAFIAS DO SÉCULO XIX JOSÉ PESSOA no século XIX Em busca dos bens culturais ainda desconhecidos Da Colecção Fotográfica da Família Mascarenhas Gaivão, que o Museu de Lamego vem trabalhando, graças à generosidade dos seus proprietários, existe um terceiro núcleo que, em nosso entender, justifica e impõe uma divulgação imediata. Sessenta e três imagens, coladas em cartões de formato médio de 25 x 18 cm, quase todas legendadas e datadas, algumas assinadas ou carimbadas pelos autores, outras cuja autoria é facilmente identificável, com numerações diversas e sem continuidade. Na sua maioria terão pertencido a álbuns destinados à promoção de encomendas de provas soltas. Paisagens, ambientes urbanos, arquitecturas civis e religiosas, grandes obras de engenharia, tipos humanos e profissionais, o passado, o então presente e a construção do futuro desfilam diante dos nossos olhos. O que existe de comum nestas imagens que as juntam num núcleo? 13 A viagem que nos proporcionam do Cairo a Jacarta, do Egipto das pirâmides e do deserto aos príncipes de Java, passando através do Canal do Suez, Port Said e as suas gentes, a Índia e as colónias portuguesas, Bombaim e Ceilão, Timor, Java e as Índias Holandesas. É uma viagem pelo Oriente, entre 1880 e 1895, no auge da descoberta e do fascínio orientalista que possuiu os intelectuais e cientistas europeus, bem como proporcionou um extraordinário desenvolvimento comercial e económico das potências ocidentais, e permitiu a constituição do império vitoriano, o maior domínio mundial da História da Humanidade. Este núcleo de provas positivas, feitas a partir de negativos de vidro pelo processo de colódio húmido e impressas em albuminas, chegou até nós num maço, sem qualquer embalagem especial, sem qualquer informação adicional a não ser, felizmente, as legendas originais e as assinaturas ou carimbos das casas fotográficas que as produziram. Registe-se também que quase todas se encontram em bom ou razoável estado de conservação, apesar das colas que as fixam aos suportes de cartão. Estavam guardadas numa caixa chinesa de charão.

Para uma correcta avaliação da importância e do interesse deste núcleo, há que recordar as mais significativas exposições fotográficas orientalistas, com imagens de autor do séc. XIX, expostas e publicadas recentemente; os fotógrafos nele representados; a qualidade das imagens preservadas. Há que salientar a exposição Na Índia dos Vice-Reis, Imagens da Saudade Antecipada, fotografias de Souza e Paul e Adolpho Moniz, com textos de Maria do Carmo Serén e Teresa Galvão Veloso, integrada nos Encontros de Fotografia de Coimbra, em 1992. 1 O respectivo catálogo oferece-nos vinte e sete imagens que estariam inseridas nos álbuns Índia Portuguesa Souza e Paul, Photographos da Casa Real, ca. 1890 (20) e Damão e Nagar Avely, Adolpho Moniz, amateur photographe, ca. 1890 (7). Tratase também neste caso de uma colecção de família, pertencente a D. Teresa Galvão Veloso e Arq. José Forjaz, parentes dos proprietários da Colecção Mascarenhas Gaivão, Dr.ª Ana Maria de Moraes Sarmento Moniz Mascarenhas Gaivão e Dr. Manuel Mouzinho de Albuquerque Mascarenhas Gaivão, o que nos levou a procurar a origem comum destes dois espólios! 14 Cipriano Forjaz de Sampaio, que foi Governador de Timor e era irmão de uma bisavó comum de D. Teresa Galvão Veloso e Dr. Manuel Mouzinho de Albuquerque Mascarenhas Gaivão, poderá ter sido a origem das fotografias orientalistas da Colecção Mascarenhas Gaivão, tendo falecido sem deixar descendência. Sua sobrinha Maria de Gusmão, para casa de quem se retirou, em Coimbra, era viúva de Manuel de Mascarenhas Gaivão, que por sua vez teria recebido também imagens de Eulália Pimentel, viúva de Jayme Forjaz de Serpa Pimentel, capitão tenente da marinha de guerra, que desempenhou funções na Índia, e posteriormente em Angola e Moçambique, de que há notícia de ter coleccionado os álbuns da Índia. Tanto quanto conseguimos apurar, vindas de duas fontes diferentes juntaram-se para posteriormente novamente se dividirem. Cinco imagens, duas de Nagar Avely e três de Goa, figuram nos dois conjuntos, o que nos parece indiciar dois diferentes coleccionadores. 2 No respectivo catálogo, Maria do Carmo Serén, com a qualidade literária que a caracteriza, contextualiza historicamente a Índia Portuguesa e a sua situação nos finais do séc. XIX, e afirma: Estas fotografias falam da Índia Portuguesa, de Goa e Damão; uma 1 Serén, Maria do Carmo; Veloso, Teresa Galvão - Na Índia dos Vice-Reis, Imagens da Saudade Antecipada, fotografias de Souza e Paul e Adolpho Moniz - Encontros de Fotografia de Coimbra, em 1992. 2 Ibidem

JANELAS NO TEMPO ORIENTAL: COLECÇÃO DE FOTOGRAFIAS DO SÉCULO XIX JOSÉ PESSOA no século XIX Índia de final do séc. XIX, vista pelos olhos que se formaram nas artes e naturezas deste período. Isolam paisagens na distância, compõem grupos, fazem o catálogo do património;( ). Podemos aqui ver 20 imagens de Souza e Paul e 7 de Adolpho Moniz, todas referentes a Goa, Damão e Nagar Avely, quase todas em bom estado de conservação e várias de grande qualidade documental. Em Julho de 2008, no Museu Nacional de Arqueologia, abriu a exposição Impressões do Oriente: de Eça de Queiroz a Leite de Vasconcelos. Coube-nos a selecção de imagens e guião científico da parte fotográfica. Apresentavam-se 42 albuminas, datadas 3 4 entre 1850 a 1890, e 24 provas actuais feitas a partir de estereoscopias em vidro, provenientes de negativos de colódio húmido. Aí a viagem passou pelo Cairo, Alexandria, Jerusalém, Belém, Beirute e Tripoli. No respectivo catálogo pode-se ler As imagens que nos mostram monumentos e sítios arqueológicos são bem representativas do estado em que estes se encontravam quando a 5 arqueologia dava os primeiros passos, e a consciência da necessidade de preservação do património cultural era ainda futuro. Entre outras anónimas, podemos encontrar os seguintes autores: 15 - Félix Bonfils (10 imagens, das quais três são atribuídas); - Ferrier & Soulier : J.Levy Suc (23 imagens); - Constantine e Georges Zangaki (8 imagens); - Hyppolite Arnoux (7 imagens, das quais uma é atribuída); - Tancrède Dumas (1 imagem); - Sociétè Photographique du Canal de Suez (1 imagem). 3 Adquiridas pelo Estado e de origem desconhecida. 4 Espólio da Casa-Estúdio de Carlos Relvas, Câmara Municipal da Golegã. 5 Pessoa, José - Impressões de Viagem: A grande Aventura fotográfica do século XIX in Impressões do Oriente: de Eça de Queiroz a Leite de Vasconcelos, Museu de Arqueologia, I.P.M., Julho, Lisboa 2008. Estão aqui representados quase todos os mais importantes fotógrafos que se estabeleceram nesta zona do crescente fértil, e que enviaram para a Europa as primeiras imagens das antigas civilizações e o testemunho dos povos que ao longo dos tempos ali se fixaram, sobre as cinzas e as pedras do passado. O mundo árabe, exótico aos nossos olhos, ao mesmo tempo fascinante e

decadente. São estas, tanto quanto sabemos, as exposições recentes que se relacionam em temas e autores, e que antecedem a que agora vos propomos. Caracterizam-se por darem a conhecer provas de autor e de época, memórias das vidas portuguesas em viagem pelo Médio Oriente. A nossa viagem, porém, não se fica pelo Índico, atravessa o canal do Suez e o Mar Vermelho, vai bem longe nos mares e nas gentes do Oceano Pacífico. Viajemos então. Fotógrafos europeus orientalistas na Colecção Mascarenhas Gaivão 16 Hyppolyte Arnoux, sob cujas origens pouco ou nada se sabe, fotógrafo francês que se fixou no Egipto a partir de 1860, tal como muitos outros fixou monumentos, tipos humanos e profissões, ambientes urbanos e curiosidades locais, mas o seu tema principal, e que constitui mérito inegável, foi o da construção do Canal do Suez, de que foi a principal testemunha fotográfica. A sua capacidade de iniciativa e visão comercial leva-o a associar-se com os também famosos irmãos Constantine e Georges Zangaki e após 1862 com António Beato. Vem a criar um estúdio em Port Said, na praça principal Ferdinand de Lesseps, em cuja fachada se lia: Fotografia do Canal. A mesma inscrição se podia ler numa embarcação equipada com câmara escura, que circulava na nova estrada, entre dois mares, entre dois mundos. Está representado nesta colecção por dez provas de grande 6 qualidade, algumas delas muito conhecidas internacionalmente. Figura 1 - Assinatura prova Cat. 010 António Beato (que por vezes assinava Antoine, certamente para satisfazer a clientela francesa, então a mais representada) chegou ao Cairo em 1860, vindo a estabelecer-se em Luxor, em 1862, onde ficou até à morte (1906). Nasceu provavelmente em Veneza, vindo a naturalizar-se súbdito britânico. Nos anos 50 trabalhou na Índia com o seu irmão Felice Beato, também fotógrafo 6 Principais dados recolhidos de: Hippolyte Arnoux, Le Canal vers 1880. Photographe de l'union des deux mers, Catalogue d'exposition. Centre Historique des Archives Nationales. Hôtel de Soubise. 6 nov. 1996-3 fév.1997. Paris 1996.

JANELAS NO TEMPO ORIENTAL: COLECÇÃO DE FOTOGRAFIAS DO SÉCULO XIX JOSÉ PESSOA no século XIX e grande precursor do fotojornalismo de guerra, com quem frequentemente assinou conjuntamente (Felice Antoine Beato). Foi também, como já referimos e durante algum tempo, associado a Hyppolyte Arnoux. Dedicou-se especialmente aos monumentos faraónicos e aos motivos característicos dos povos que viajavam pelo deserto, satisfazendo a clientela turística, então em franco crescimento. Embora as quatro provas que lhe atribuímos não estejam assinadas, (não temos acesso ao reverso, colado em cartão grosso, onde provavelmente estará o seu carimbo), não existem dúvidas na atribuição, dado o estudo comparativo com imagens muito semelhantes existentes em colecções internacionais. A coloração e os enquadramentos são inconfundíveis. De Adolpho Moniz nada sabemos, vindo citado por vezes como amateur photographe. Está representado por seis albuminas coloridas manualmente, de Nagar Avely e Damão. Figura 2 - Assinatura prova Cat. 016 Souza and Paul é uma firma que se estabeleceu em Goa no ano de 1864, fotógrafos da Casa Real, e continua a existir no seguinte endereço: Opposite Govt Printing Press, Panaji, Mahatma Gandhi Rd, Goa, GA 403005, Índia - Telemóvel:+91 832 222 3968. Dele reproduzimos cinco provas assinadas e dez que, com segurança, podemos atribuir. 17 Figura 3 - Assinatura prova Cat. 026 Figura 4 Esta assinatura, JSá Vianna, que não se pode ver com luz normal, é incisa e só se distingue com luz espelhante. Trata-se de um autor timorense, ou aí residente temporariamente, com duas provas assinadas (pelo método já referido) e quatro atribuídas, indiscutivelmente semelhantes e fazendo parte do mesmo conjunto e com o mesmo tema. Fomos posteriormente informados pelo Doutor Paulo Feytor Pinto, de que Jayme Henrique de Sá Vianna, (seu trisavô) nasceu em Lisboa, a 7 de setembro de 1858, e morreu a 12 de março de 1895, em Macau, onde está sepultado. Esteve em Timor, intermitentemente, entre 1879 e 1893, onde chegou como alferes - morreu major. Comandou as "campanhas de pacificação" de Lamaquitos, Liquiçá, Matibiam, Quelecai e Maubara. Foi condecorado com a Ordem de Torre e Espada, em 1890, e com o colar da Sociedade de Geografia, em data desconhecida. Teve três filhas de D. Francisca da Costa, filha do liurai D. Manuel da Costa, da região de Batugadé (ou Baucau). As duas filhas mais velhas vieram para Portugal e tiveram descendência e a mais nova ficou em Timor, com a mãe. Embora não

tenhamos obtido até agora a confirmação plena de que se trata do autor das fotografias marcadas com JSá Vianna, parece-nos altamente provável de que se trate da mesma pessoa. Ou então as imagens foram marcadas para assinalar o proprietário, o que não foi prática comum. Em sessenta e três provas, existem somente vinte sem qualquer identificação de autor, o que nos parece francamente uma excelente média. 18 Este conjunto de fotografias do séc. XIX, da Colecção da Família Mascarenhas Gaivão é o maior núcleo de provas de autor desta época exposto recentemente, o que mais se estende na diversidade dos locais, das distâncias, das diversas culturas sobre os quais nos abre algumas janelas no tempo e no espaço. Do Mar Vermelho, atravessando o Índico, até às profundezas do Oceano Pacífico. Mostra-nos ainda exemplos de fotógrafos estrangeiros de grande importância na história da fotografia orientalista, como são Hippolyte Arnoux e António Beato, bem como de fotógrafos portugueses no oriente, pouco conhecidos como Adolfo Moniz e um desconhecido JSá Vianna. É um espólio complementar do que foi publicado nos Encontro de Fotografia de Coimbra, em 1992, e é uma continuação do que constou da Exposição Impressões do Oriente: de Eça de Queiroz a Leite de Vasconcelos. Cabe ainda salientar a qualidade e o excelente estado de conservação com que estas provas chegaram aos nossos dias. Por estas diversas razões, é com grande satisfação que as expomos e publicamos, estando a partir de agora disponíveis para os investigadores. Quantos espólios deste tipo aguardam, esquecidos em múltiplos armários e arcas, que urge recuperar e estabilizar, para que não se percam, para que se ganhem para o Património Cultural do presente e do futuro.

JANELAS NO TEMPO ORIENTAL: COLECÇÃO DE FOTOGRAFIAS DO SÉCULO XIX JOSÉ PESSOA no século XIX Critérios de uma exposição - Dado que uma parte das espécies se encontram colados nos dois lados do mesmo cartão, e não sendo fácil criar estruturas que nos permitissem mostrá-las simultaneamente, optámos por reproduzir uma de cada e expor uma prova actual da mesma (devidamente assinalada), procurando manter as densidade e tonalidades do estado actual de cada original, tanto quanto o processo digital nos permite. - Os títulos das legendas transcrevem, sempre que existem, as legendas originais (mesmo se verificamos que estão erradas e aqui são complementarmente corrigidas) escritas sobre os cartões. Quando não existem optámos pela identificação do local ou do tema. - A sequência das provas expostas e de catálogo procurou reconstituir a viagem possível de ocidente para oriente. Mais uma vez queremos salientar a nossa gratidão para com a Dr.ª Ana Maria de Moraes Sarmento Moniz Mascarenhas Gaivão e Dr. Manuel Mouzinho de Albuquerque Mascarenhas Gaivão, proprietários da Colecção Mascarenhas Gaivão, pela sua generosidade e colaboração com o Museu de Lamego, num processo exemplar de partilha de capacidades entre uma instituição e um património familiar. E como é fascinante percorrer estas imagens, criadas acerca de 125 anos, que continuam a encantar-nos com o seu carácter exótico e a testemunhar as pegadas históricas da nossa caminhada pelo Mundo. E são também património dos povos e culturas que os portugueses visitaram e onde viveram. 19

no século XIX EGIPTO GEORGINA PINTO PESSOA Maré Nostrum ponte entre velhas e novas culturas. 1 Na outra margem, espraia-se o delta do Nilo - Itéru. Corre do interior profundo de África no Burundi, em sinuoso percurso pelo Ruanda, Uganda, Sudão e Egipto, entre lagos e quedas de água, promessa de vida cumprida em cada cheia. Integra essa espécie de lua que configura o Crescente Fértil, imagem obrigatória nos manuais escolares, gravada na memória de todos entre a curiosidade e o espanto. Região de perpétua passagem onde paradoxalmente sempre se permaneceu. De oriente para ocidente, de sul para norte o tráfego sempre foi intenso. Culturas, raças e credos aqui coabitam, conferindo um aroma, uma luz, uma atmosfera e um cosmopolitismo muito peculiar a esta região, particularmente presentes em Alexandria e no Cairo. 21 Se a geografia lhe impôs uma sobrevivência árdua, atribuiu-lhe, também, os meios de sustentabilidade necessários, que os homens sempre souberam exponenciar na sua relação com o rio Nilo, na sábia mestria com que construíram as suas urbes e as suas habitações, na riqueza cultural que foram dando corpo ao surpreendente património material e imaterial, legado impar para a humanidade. 1 Itéru - grande rio. Nome atribuído pelos egípcios ao rio Nilo. Aspectos que com maior ênfase na cultura e na arqueologia, nos recursos da região ou na sua posição estratégica, fizeram deste país um ponto de referência, um local apelativo e recorrente da estratégia política dos países ocidentais, como outrora o tinha sido pelos grandes impérios persa, grego, romano e otomano.

No século XIX, foram as grandes potencias ocidentais, em plena fase de industrialização, como a Alemanha, a França e a Inglaterra, a afirmar os seus interesses imperialistas e colonialistas, movendo influências, exercendo pressões, procurando aceder e controlar áreas consideradas fulcrais para a sua expansão e crescimento, dos quais dependia o alargamento dos mercados, quer no acesso às matérias primas quer no escoamento da sua produção. Aproveitando o processo de decadência dos turcos, o domínio do Médio Oriente tornou-se exequível, num período que antecedeu a presença de um novo elemento mobilizador de grandes disputas nesta zona, já no século XX - o petróleo. Porém, e ainda no contexto do século XIX, urgia a abertura de uma via rápida e segura de acesso ao Índico via Pacífico, que desse cumprimento aos objectivos desta economia industrial e capitalista das grandes potências europeias, particularmente da 2 Inglaterra. Aqui assumiu grande relevância a construção do canal de Suez, acontecendo esta entre 1859-1869, ideia repescada do velho império romano traduzida na construção de canais ligando o sul até ao delta do Nilo. 22 3 Estendendo-se da cidade de Suez, ao sul, até Port Said, ao norte, o Canal de Suez ("Qanat as-suways") liga o Mar Mediterrâneo ao Golfo de Suez e ao Mar Vermelho, permitindo uma via navegável até o Oceano Índico. O Egipto das pirâmides, dos faraós e das múmias, do deserto, de beduínos e tuaregues, dos camelos e das rotas caravaneiras, era também um marco obrigatório na política internacional, um itinerário de referência de intelectuais, de aventureiros, de quem empreendia a profética viagem à Palestina, ou simplesmente do formativo grand tour de jovens aristocratas e burgueses. Majestosos templos cheios de colunas e baixos-relevos onde habitavam estranhos e implacáveis deuses, com corpo de gente e cabeça de falcão. Obeliscos que desafiam o céu e intrigantes túmulos em forma de pirâmide que pareciam querer tocar-lhes. Outros escavados nas rochas, penetravam indefinidamente no seu interior deixando à entrada eternos colossos. 2 Obra executada pela Companhia Geral do canal de Suez de Ferdinand de Lesseps. Cerca de 1,5 milhão de egípcios trabalharam em sua construção, desses, aproximadamente 125.000 morreram, sobretudo de cólera. 3 Fundada em 1859 aquando da construção do canal. A atribuição do nome Por Said deveu-se à intenção de homenagear o então Quediva do Egipto, Said Paxá.

EGIPTO GEORGINA PINTO PESSOA no século XIX A expedição ao Egipto de Napoleão Bonaparte (1798) e o impacto provocado pelas imagens e pelas informações recolhidas e publicadas na Description de l'égypte (1809-1822), primeira obra sistemática consagrada ao Egipto, tinha sido enorme. O seu carácter descritivo e abrangente, contemplando a Geografia, a Etnografia e a Arte, permitiu a sua descoberta e estimulou a curiosidade sobre esse berço maravilhoso e longínquo. Fascínio e entusiasmo tão caro quer ao espírito romântico quer ao positivismo do século XIX, que assim viu intensificar o interesse por esta civilização, pelos seus vestígios arqueológicos e pelo coleccionismo dos mesmos. Em 1822 Jean-François Champollion elabora os princípios de decifração da escrita hieroglífica egípcia, que conclui em 1824 no seu "Précís Du système hiéroglyphique des anciens égyptiens. A aura de riqueza e mistério mobilizou para estas paragens estudiosos e aventureiros de todo o tipo, distante ainda do espírito da arqueologia, onde a convivência da ciência e do conhecimento se misturaram com o da aventura e do saque. Aliás, com a participação não só de particulares, mas também de instituições oficiais, para quem os fins justificaram os meios, fazendo chegar aos grandes museus europeus as suas extraordinárias Colecções de Arte Egípcia, e a anuência e até incentivo do governo de Mohamed Ali (1769-1849). Cerca de 1875, os antiquários de Luxor vendiam aos turistas, em excelente estado de conservação, os mais belos papiros, chauabti e objectos de mobiliário funerário e até de múmias. 23 E esta prática havia de prosseguir até praticamente finais do século XIX, apesar do esforço e do importante papel de alguns como François-Auguste-Ferdinand Mariette (1821-1881). Funcionário do Museu do Louvre, Mariette partiu para o Egipto em 1850 com a missão de adquirir para o museu antigos manuscritos coptas e siríacos que pudessem ombrear com as colecções de Londres e do Vaticano. Mariette operava, naturalmente, com o acordo tácito das autoridades egípcias. Amante do risco e influenciado por Nestor L'Hôte, desenhador de Champollion, ainda seu parente afastado, continuará a

aventura da arqueologia. Em 1850-51, descobre o Serapeum de Sakara, uma das grandes descobertas da arqueologia egípcia, como os achados de Deir el-bahari (Gaston Maspero, 1881), o túmulo de Tutankhamon (Howard Carter, 1922) ou dos túmulos reais de Tânis (Pierre Montet, 1939). A Marinette se deve o tesouro da rainha Aahotep, na região tebana, a limpeza do templo funerário de Hatchepsut, em Deir el- Bahari, e do templo de Amon, em Karnak, entre outros. 24 Curiosamente, o homem que teria ido ao Egipto para levar mais uma parte do seu património, revoltado com o impune e continuado saque de tantos monumentos e documentos egípcios, havia de se constituir num dos seus principais e maiores 4 defensores, sendo nomeado por Mohamed Said, em 1858, maamur, isto é, «director» dos trabalhos do antigo Egipto, cabendolhe a autoria dos primeiros textos legislativos fundadores da salvaguarda do património. Em Portugal cria-se em 1850, a Sociedade Archeológica Portuguesa. Nomes como Leite de Vasconcelos, Possidónio Silva, Santos Rocha, Estácio da Veiga ou Martins Sarmento são referência obrigatória da arqueologia portuguesa. Em 1880 realiza-se o Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-Históricas e em 1893 Leite de Vasconcelos funda o Museu Etnográfico. 5 Enquanto os conceitos da moderna arqueologia evoluíam e se estruturavam, em parte sob os auspícios de G. Maspero, por 6 William Matthew Flinders Petrie (1853-1942), George Andrew Reisner (1867-1942), entre outros, fazendo das últimas décadas de oitocentos e primeira de novecentos, a idade de ouro da Egiptologia, e a acção imperialista das grandes potências ocidentais se digladiava, pela afirmação da supremacia política, institucional e cultural sob uma área tão crucial quanto o Médio Oriente 7 (que em parte conduziria ao grande conflito armado de 1914), uma literatura de viagens, descritiva ou poética, espécie de etnoliteratura radicada nos discursos antropológicos e etnográficos, mas também uma literatura esotérica e alquímica cumpririam 4 Mariette recusando vários cargos em França: Direcção da Biblioteca Nacional de França, Senado de França, conservador do Museu do Louvre, cátedra no Collège de France. O vice-rei conceder-lhe-ia, como reconhecimento da sua dedicação os títulos de bey e, mais tarde, paxá, o mais alto grau honorífico da administração turca. 5 Deu continuidade ao trabalho de Marinette e à frente do Serviço de Antiguidades Egípcias, G. Maspero desenvolveu um apreciável trabalho na organização das escavações. Iniciou a publicação dos Annales du Service des Antiquités de l'égypte (ASAE), que ainda hoje se publicam. Iniciou a impressão dos Catalogue Général du Musée du Caire; publicou: Études de Mythologie et d'archéologie (1893) e Histoire ancienne des peuples de l'orient classique (1895-1899). 6 Rigoroso nos seus métodos e técnicas, Petrie publicou os resultado dos seus trabalhos, como os efectuados em Nagada, Abidos ou Amarna. De grande importância a sua obra: Methods and aims in archaeology (1903) 7 Chateaubriand (1806); Lamartine (1832-33); Nerval (1842; Victor Hugo (Les Orientales -1829); William Beckford; Lord Byron (Turkish Tales-1813-1816)

EGIPTO GEORGINA PINTO PESSOA no século XIX essa mentalidade romântica que alimentou o pensamento e estimulou a criatividade dos intelectuais, dos artistas e das elites 8 em geral, convidando à viagem e ao seu registo. Eça de Queirós (1845-1900) cumprirá este mito, na viagem (1869)que realizou ao Egipto, aquando da abertura do canal do Suez, consubstanciada na obra O Egipto (obra póstuma). Servir-lhe-ia ainda como fonte de inspiração e ponto de partida para outras viagens mais além, também tão ao gosto da época, como a Relíquia ou o Mandarim, onde o imaginário de uma religiosidade mais ou menos caricaturada ou do gosto por um oriente requintado e exotismo se evidenciam. A tradução e adaptação de narrativas orientais como O Livro das Mil e Uma Noites, tradução do 9 orientalista Antoine Galland, publicada entre 1704-1717, com várias traduções e publicações posteriores, ajudaram a construir essa imagem icónica profundamente sedutora e exponencialmente recriada e reconstruída a partir do fabulado imaginário oriental e de óbvios recalcamentos das mentalidades ocidentais. O Médio ou próximo Oriente surgia, assim como um espaço redescoberto, a fruir, estudar e explorar. Via de acesso a um oriente mais profundo e distante, agora disponível, para reerguer os esteios de velhas e novas potências, abrir fronteiras às ciências e ao conhecimento ocidental nessa transversalidade com os saberes ancestrais dessas áreas geográficas, um mundo que sendo já velho se abria repleto de novidade, aos olhos deslumbrados do ocidente. 25 A viagem permitia o contacto e observação fundamentais à construção do conhecimento experimental, sistemático, científico. À literatura de viagens, onde a narrativa se cruza com a Geografia, a História, a Antropologia e a Etnografia, associa-se a informação da viagem do investigador e do erudito. 8 Delacroix - Marrocos 1832; Flaubert ao Egito e Médio Oriente entre 1849 e 1852 ( ) 9 John Paine (Londres, 1839-41), Edward Lane (1882-84) e finalmente Richard Francis Burton (Londres, 1885). 10 François Arago, em 1839, na sessão de anúncio mundial do processo fotográfico, conjecturando sobre as possibilidades de aplicação do novo processo, propôs que de imediato se constituísse um grupo de trabalho para o inventário dos monumentos franceses, bem como "copiar os milhões e milhões de hieróglifos que cobriam totalmente os grandes monumentos de Tebas, Memphis e Carnac. 10 A Fotografia surge neste contexto encontrando terreno fértil para explorar e um mercado de potencialidades extraordinárias. Esforçando-se por captar as imagens desse exotismo que correspondia às expectativas da nostálgica visão da clientela ocidental compondo para a fotografia esse quadro fabulado, tantas vezes traído pela sensibilidade e pela consciência do fotógrafo,

que a lente da câmara tão bem sabia captar, desnudando o objecto fotografado e apresentando uma realidade bem diferente, despojada dessa aura idílica e romântica. Essa capacidade mimética dos processos fotográficos, rigorosa e fiável na captação da realidade, característica tão cara ao positivismo da época, e a exactidão técnica da sua reprodutibilidade, permitiu, de certa forma, a apreensão do tempo e do espaço, e a portabilidade das vivência do lugar através das imagens. Percurso, onde se retiveram e materializaram milhares de anos de história, dos seus vestígios, das suas gentes, dos seus costumes, do seu património, alternativa impar às litografias, desenhos e aguarelas dos vários artistas plásticos que os tinham antecedido. 26 A coincidência entre a prática fotográfica e esta cultura da viagem marcada pelo desejo expansionista e colonialista europeu, pelas solicitações das ciências, em particular da Arqueologia e a demanda de uma sociedade (europeia) aristocrático-burguesa sedenta de sensações e de imagens que preenchessem os cânones de um sentimentalismo bucólico, levará inúmeros fotógrafos a viajar para estas regiões. 11 Com frequência, aí se fixaram e aí abriram os seus estúdios, documentando e registando, elaborando e disponibilizando extraordinários álbuns de vistas, como A. Beato e Hippolyte Arnoux, autores destas imagens. Carregaram o seu laboratório portátil, gravaram na chapa de vidro a eternidade pétra de Luxor, da imensidão dos seus hieróglifos e baixos-relevos. Na árida paisagem do deserto, definiu-se o horizonte em filas de camelos, de tuaregues ou beduínos, companheiros na jornada de sempre, surpreendeu-se a pausa da caminhada, registou-se o acontecimento histórico na abertura do canal de Suez às portas de Port Said. 12 Os lugares e as gentes. A peculiaridade do mashrabiyyah de uma medieva casa árabe no Cairo, as actividades do quotidiano, a vitalidade da água, a suave volumetria das ânforas de barro sustentadas por raparigas de olhos profundos e penetrantes, 11 Muitos outros como Francis Frith; Maximine du Camp; August Salzmann; Joseph Philibert Girault de Prangey; A. Beato, Bonfils, Lekegian, Sebah, Zangaki; Rudolf Lehnert e Ernst Landrock. 12 Imagem do Takhtabush e mashrabiyyah da casa árabe. Tipo da galeria. Área coberta ao ar livre, localizada entre dois pátios: um é sempre ensolarado e pavimentado e o outro é o jardim. O takhtabush tem uma abertura lateral de acesso ao pátio pavimentado, acedendo-se ao jardim através do mashrabiyyah.

EGIPTO GEORGINA PINTO PESSOA no século XIX envoltas em panos, túnicas e xailes que testemunham a condição social, a cultura, a religião, as técnicas a pose das duas egípcias, ostentando sedas ornadas de laços e colares, emanando uma androginia enigmática, relegando para segundo plano uma terceira rapariga de olhar distante a cena de harém (?) num sui generis contraponto entre a observação do privado e do mundano, de uma intimidade escondida sob a sombra da burca e a jovial provocação de um olhar frontal, um sorriso ténue resvalado na velada nudez do peito e dos braços de uma jovem. A vida, nesse pulsar plural de universos num Cairo onde diferentes etnias, culturas, percursos e memórias, contribuem para a construção da imagem de um Egipto antigo, sempre surpreendente e misterioso, pleno de contrastes e contradições. 27

no século XIX Canal de Suez EGIPTO Autor Hippolyte Arnoux Técnica Albumina Inventário Cat. 001 Datação 1886

no século XIX Caravana EGIPTO Autor António (Antoine) Beato Técnica Albumina Inventário Cat. 002 Datação 1886

no século XIX Camelos EGIPTO Autor António (Antoine) Beato Técnica Albumina Inventário Cat. 003 Datação 1886

no século XIX Templo de Luxor EGIPTO Autor António (Antoine) Beato Técnica Albumina Inventário Cat. 004 Datação 1884-1894

no século XIX Templo de Luxor EGIPTO Autor António (Antoine) Beato Técnica Albumina Inventário Cat. 005 Datação 1884-1894

no século XIX Tipos e Costumes - Aguadeiro EGIPTO Autor Hippolyte Arnoux Técnica Albumina Inventário Cat. 006 Datação 1886

no século XIX 1886 - Cairo - Casa Árabe EGIPTO Autor Hippolyte Arnoux Técnica Albumina Inventário Cat. 007 Datação 1886

no século XIX 1886 - Vendedor de limonada - Port Said EGIPTO Autor Hippolyte Arnoux Técnica Albumina Inventário Cat. 008 Datação 1886

no século XIX 1886 - Port-Saide - Mouro EGIPTO Autor Hippolyte Arnoux Técnica Albumina Inventário Cat. 009 Datação 1886

no século XIX 1886 - Port-Said - Georgeana EGIPTO Autor Hippolyte Arnoux Técnica Albumina Inventário Cat. 010 Datação 1886

no século XIX 1886 - Port-Said - Mulher Arabe EGIPTO Autor Hippolyte Arnoux Técnica Albumina Inventário Cat. 011 Datação 1886

no século XIX 1886 - Port-Said - Mulheres Arabes EGIPTO Autor Hippolyte Arnoux Técnica Albumina Inventário Cat. 012 Datação 1886

no século XIX 1886 - Port-Said - Mulheres Egípcias EGIPTO Autor Hippolyte Arnoux Técnica Albumina Inventário Cat. 013 Datação 1886

no século XIX 1886 - Port-Said - Mulher Arabe EGIPTO Autor Hippolyte Arnoux Técnica Albumina Inventário Cat. 014 Datação 1886

no século XIX CEILÃO / SRI LANKA GEORGINA PINTO PESSOA A ilha de Ceilão já era conhecida no ocidente desde a civilização grega, cujas histórias idealizadas, os generais de Alexandre Magno ali fizeram chegar, a partir das incursões expansionistas até às margens do Indo. Estrabão chamou-lhe Taprobana, epíteto adoptado por Luís de Camões. Área: 65.610 km² População: 21.128.773 Capital: Kotte (126.872) Língua: Cingalês e Tamil Religião: Budismo e Hinduísmo Sri lank A nobre ilha também de taprobana, Já pelo nome antigo tão famosa, Quando agora soberba e soberana Pela cortiça calida, cheirosa, Dela dará tributo à Lusitana Bandeira, quando, excelsa e gloriosa, Vencendo, se erguerá na torre erguida Em Columbo, dos próprios tão temida. (Lusíadas, canto X, est:51) Plínio refere a presença de embaixadores de Ceilão, longínqua terra da utopia, lugar entre a lenda e a realidade, que aqui faziam chegar a aromática canela e as pedras preciosas, transportadas até às margens do Mediterrâneo por mercadores orientais que atravessavam o Oceano Índico, o Mar Vermelho ou a Pérsia. 43 1 Chamavam "Diabo Louro", era filho do vice-rei da Índia D. Francisco de Almeida. 1 Os primeiros contactos com os portugueses deram-se em 1506 com a chegada de Dom Lourenço de Almeida a Colombo. Local estratégico para o império português, terra promissora para o comércio, ponto de paragem na rota da seda e das especiarias,

importante na política diplomática e propagandística do império português. Como afirmou Manuel Flores, «a ideia da mítica 2 Taprobana subjugada por um rei do Ocidente cristão trar-lhe-ia seguramente um enorme prestígio» à sua chegada enviou um embaixador ao rei de Kotte. A receptividade do rei de Kotte, face aos portugueses, foi inicialmente muito positiva. «O imperador, que se chamava Aboenagao Pandar, era benigno e não lhe era oculto que pela fama conseguíamos o que queríamos, com alegre rosto veio em uma e outra coisa que lhe pedimos, concedendo tudo, apesar dos Mouros que ali assistiam, os quais nos eram 3 suspeitosos, porque da nossa entrada lhes resultava perderem aquele negócio (em que não se enganaram)». Provavelmente, vendo nestes um estímulo ao seu comércio e um potencial aliado de poderosa capacidade militar, importante 4 contra outros reinos rivais. 44 Se Portugal não se queria envolver nas questões internas da ilha, uma feitoria teria sido o objectivo, a história interna desta e a ambição de controlar as suas riquezas ditou outro destino aos portugueses, muito para além das suas intenções iniciais. O rei de Kotte dividiu o reino pelos seus três filhos. O herdeiro do reino de Citavaca, opondo-se ao irmão que herdara Kotte, chamou em seu auxílio o samorim de Calecute, a mais forte potência hindu da costa do Malabar, principal rival do poderio português no Índico. Por sua vez, o rei cingalês de Kotte, recorreu ao auxílio militar português para combater o seu irmão. A rivalidade e as brechas nos reinos orientais, abria, assim, as portas à entrada dos portugueses no oriente. 5 As relações amistosas com o rei de Kotte, Dharma Parakramabahu IX (r. 1489-1513), conduziram ao pedido Vijayabahu VI (1513-21) para o estabelecimento de uma fortaleza portuguesa que veio a ser construída em 1518, em Colombo, por ordem de D. Manuel. 2 Flores,Jorge Manuel, Os Portugueses no Mar de Ceilão- Trato, Diplomacia e Guerra (1498-1543), Ed. Cosmos, Lisboa, 1998, p. 116. 3 Ribeiro, João; Fatalidade Histórica da Ilha de Ceilão, Publicações Alfa, 1989, p. 14. 4 Quando D. Lourenço de Almeida chega ao atual Sri Lanka, o território encontrava-se dividido em sete reinos, em estado de conflito entre si. 5 Rei Kotte que sucedeu a Dharma Parakramabahu IX.

CEILÃO / SRI LANKA GEORGINA PINTO PESSOA no século XIX Todavia, a confiança e a estabilidade nestas relações foram efémeras, conduzidas, quer por instigação de terceiros, quer por 6 conflitos de interesse, que obrigaram o rei cingalês à submissão face à coroa portuguesa e ao pagamento de páreas anuais de canela num regime tributário formalizado. Entre 1520 e 1530, os contactos diplomáticos foram apenas pontuais, havendo, no entanto a registar a fixação de uma pequena comunidade de portugueses no reino de Kotte. A pressão e os conflitos com os reinos vizinhos acabariam por proporcionar uma nova aproximação, com a abertura à missionação e ao estabelecimento de um tratado que traria a Portugal uma embaixada do rei de Kotte, Bhuvaneka Ibahu, que pretendia deixar no trono o seu neto Dharmapala em detrimento do seu irmão. Esta foi liderada por Sri Radaksa Pandita estando em Portugal entre 1542-1543. «No cais esperavam-no os moradores da Casa Real, entre eles os condes de Vimioso e da Castanheira. Talvez até o irmão do rei, o Infante D. Luís, de quem o Pandita dirá maravilhas no regresso a Kotte. Com o marquês de Vila Real, viajou até ao Paço para uma audiência com D. João III. Entregou então ao monarca português o presente que trouxera da ilha de Ceilão: um cofre cujas placas de marfim tinham esculpidas as figuras do próprio D. João III; de Bhuvaneka Ibahu; dele mesmo, embaixador, e da recepção que lhe seria feita em Lisboa, tal como a imaginaram em Kotte; do príncipe Dharmapala; do momento da coroação. D. João III, estamos certos, não desiludiu o Pandita: para o juramento de Dharmapala como herdeiro do trono de Kotte, reuniu na Sé de Lisboa os notáveis do Reino, mandando que se 7 fizessem grandes festas e se corressem touros. 45 6 Imposto pago por um Estado a outro em sinal de dependência. 7 Flores, Jorge Manuel; Os Portugueses no Mar de Ceilão: Trato, Diplomacia e Guerra; p. 191. 8 Relíquia do Buda no principal templo budista de Kotte, o Templo do Dente de Buda. O interesse português alargou-se, agora a outros reinos, esboçando-se então os primeiros planos para a conquista e a missionação da ilha como um todo, muitas vezes com o apoio de soberanos ou dos seus opositores, aos tronos locais. Em 1551, o vice-rei Afonso de Noronha estabeleceu uma nova guarnição em Colombo, que se manteria até 1656. Alguma falta de visão e de 8 sensibilidade face às questões religiosas causaram alguns reveses nesta aproximação. Todavia, a conversão do rei Dharmapala (1551-97) pelos franciscanos em 1557, tomando por nome Dom João, resultou na doação mortis causa do reino de Kotte à coroa

portuguesa, em1580. Além da fortaleza de Colombo, D. Constantino de Bragança construiu a fortaleza de Mannar, em 1560, com o fim de controlar a navegação no Estreito de Palk e proteger a comunidade de cristãos locais. Na década de 1590, deu-se início a uma conquista efectiva do Ceilão por ordens explícitas de Lisboa e Madrid. Apesar de alguns contratempos, como a morte do rei converso ou a derrota de Danture, construíram-se várias fortalezas, alargou-se a missionação a Jesuítas, Agostinhos e Dominicanos e integrou-se o reino de Kotte na Monarquia Católica de Filipe II. Em 1617 faz-se um tratado com o rei de Kandy, ficando este vassalo da coroa portuguesa, ainda que em conformidade com as práticas cingalesas se tenha salvaguardado a sua independência. 46 A chegada de Holandeses e Dinamarqueses à ilha representou um novo desafio para os portugueses, mas um novo aliado para os reinos autóctones, mobilizando os portugueses para o reforço das suas fortificações e para a construção de novas cidades fortificadas. Esforço inglório, porém, já que o avanço português sobre o reino de Uva, nas montanhas a Sul de Kandy, redundou em pesadas derrotas (Randeniwela, Gannoruwa), no cerco de 16 meses a Colombo e na transferência de várias fortalezas para a posse dos holandeses. Entre tréguas incertas e infrutíferas negociações, o prelúdio da saída anunciada surge em 1655, com a aliança, desta feita, entre Holandeses e Kandy Rajasinha II (1635-87), da qual resultou a perda de Colombo (1656), Mannar e Jaffna (1658) marcando o fim da presença portuguesa na ilha. A supremacia Holandesa manter-se-á até ao embate com os ingleses então em plena expansão e

CEILÃO / SRI LANKA GEORGINA PINTO PESSOA no século XIX afirmação, passando a controlar toda a ilha com a conquista do reino de Kandy em 1815. De salientar, neste período a produção de obras portuguesas sobre a história de Ceilão (Fernão de Queiroz, João Ribeiro) e a acção de missionários como o Padre José Vaz, Oratoriano goês (1687). Em 1833, a ilha é incorporada no Império Britânico, mantendo o nome de Ceilão. Quase um século depois, em 1931, o Reino Unido concede autonomia limitada à colónia, tornando-se independente em 1948. 9 O sonho de permanência nunca se dissipou, sobrevivendo no português crioulo que se reforçou na ilha enquanto língua de comunidades cristãs luso-descendentes ou portuguesas (Portuguese Burghers), nomeadamente em Colombo, no litoral do Sudoeste da ilha e em Batticaloa, onde hoje se mantém. Outro aspecto significativo destas permanências expressa-se na presença de muitos apelidos portugueses, que ultrapassam o âmbito das relações matrimoniais e familiares e se estendem à penetração do próprio Cristianismo e da acção de catequização missionária. 47 10 Designado por muitos viajantes como a Pérola do Atlântico, o Ceilão antigo a Ilha leão, assim baptizada pelos portugueses, possui duas capitais: a administrativa Sri Jayawardenapura Kotte e Colombo, a capital comercial. A natureza moldou-o em forma de lágrima sob o vértice da Índia. Ilha de plurais e exuberantes paisagens, puzzle de planícies, praias brancas e jardins de corais, de suaves colinas e íngremes montanhas, povoada de densas florestas, rios e cataratas. Dos arrozais e das plantações de chá, dos elefantes e dos tigres Ombreiam com lendárias cidades, de templos sagrados, de requintados palácios e imponentes fortalezas. 9 Ver: Tomás, Maria Isabel (2008) "A viagem das Palavras", in Matos, A. T. de & Lages, M. F. (coords.), Portugal: percursos de interculturalidade, vol. III (Matrizes e Configurações), pp. 431-458. 10 Singhala ou Ilha do Leão. A complexa grandeza das ruínas da cidade sagrada de Anuradhapura, de Polonaruwa os seus templos hindus e budistas, os seus