DINÂMICA AFECTIVA E DEPENDÊNCIA DE ÁLCOOL (1)



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Revista TOXICODEPENDÊNCIAS Edição IDT Volume 13 Número 1 2007 pp. 43-48 DINÂMICA AFECTIVA E DEPENDÊNCIA DE ÁLCOOL (1) 0543 NUNO FALEIRO SILVA RESUMO: Este artigo visa estabelecer uma relação entre as dificuldades de auto-regulação dos afectos e a dependência de álcool. São descritas as limitações observadas no plano da dinâmica afectiva assim como as suas consequências adaptativas. Por fim, sugere-se um conjunto de modificações técnicas na abordagem psicoterapêutica de pacientes alcoólicos. Palavras-chave: Álcool; Dependência; Auto-regulação; Afectos. ABSTRACT: The present article provides a description of the relation between the difficulties in self-regulation of affections and alcohol dependence. The existing limitations observed in the affective dynamics and their adaptive consequences are described. Finally, some technical modifications are suggested in the psychotherapeutic approach of alcoholic patients. Keywords: Alcohol; Dependence; Self-regulation; Affections. RÉSUMÉ: Cet article fait une description de la relation entre les difficultés dans l auto-régulation des affects et la dépendance d alcool. On décrit les limitations existantes dans le champ de la dynamique affective et leur conséquences adaptatives. Quelques modifications techniques sont suggérées dans l approche psychothérapeutique des patients alcooliques. Mots clé: Alcool; Dépendance; Auto-régulation; Affects.

44 DINÂMICA AFECTIVA E DEPENDÊNCIA DE ÁLCOOL pp. 43-48 1. INTRODUÇÃO A compreensão da dependência de álcool, quer pela sua amplitude epidemiológica, quer pela sua representatividade clínica assume-se como uma necessidade incontornável na esfera dos comportamentos psicopatológicos. A complexidade deste fenómeno, a sua natureza multifactorial, apela a uma cooperação interdisciplinar que permita o seu conhecimento a partir de diferentes ângulos de análise, possibilitando uma perspectiva tridimensional e dinâmica desta realidade clínica. Ao nível da prática clínica esta cooperação traduz-se na formação de equipas multidisciplinares que visam uma complementaridade de competências. A participação dos factores afectivos na etiologia, evolução e tratamento das perturbações adictivas tem sido sublinhada por diferentes autores, pese embora exista uma escassez manifesta de estudos acerca da sua expressão no campo da clínica do alcoolismo. A caracterização da dinâmica afectiva e a sua relação com a dependência de álcool constitui o foco de reflexão deste artigo, procurando através do recurso a distintos modelos teóricos e clínicos (psicanalítico e (cognitivo-comportamental) contribuir para a organização de novas linhas de reflexão e de intervenção. Do ponto de vista clínico e com base no estudo de um caso, sublinhamos a importância de algumas singularidades na abordagem psicoterapêutica destes pacientes. 2. A (DIS) FUNCIONALIDADE DO CONSUMO De um ponto de vista compreensivo, o consumo abusivo de álcool possui um significado psicológico, uma intencionalidade psicotrópica, ou seja, o álcool é investido como um objecto com propriedades transformadoras do estado subjectivo e a procura sistemática de uma transformação intrapsíquica denota a presença de um marcado desconforto subjectivo. Nesta linha, a utilização abusiva de álcool visaria a produção de determinados efeitos, promovendo uma mudança interna, uma acomodação do aparelho mental com o objectivo de garantir uma adaptação óptima entre o indivíduo e o meio. É com base nesta leitura que consideramos, de um modo geral, que o consumo excessivo de álcool poderá ter uma função de auto-regulação de um sistema intrapsíquico disfuncional em busca da homeostasia. No plano clínico, uma das vias de expressão da funcionalidade do consumo materializa-se nas dificuldades de transformação do comportamento alcoólico: a negação da sua natureza patológica (ex: minimização das consequências lesivas do consumo, disparidade existente entre os sintomas apresentados e a quantidade de álcool diária descrita pelo paciente) e na ambivalência manifestada relativamente à abstinência total (ex: a procura de manutenção de um consumo moderado após diversas recaídas), veiculando a importância vital que os efeitos desta substância desempenham no seu psiquismo. Outra via de entendimento da lógica interna do consumidor remete para a construção de linhas de intersecção entre a história do consumo e a história de vida. Quando observamos com atenção a trajectória do consumo verificamos que o seu agravamento manifesta, na maioria dos casos, pontos de encontro com acontecimentos de vida de relevância emocional (separações, divórcios, mortes, casamentos, frequência do serviço militar, desemprego, etc., ), o que nos leva a colocar a hipótese de que o modo como o indivíduo vivenciou estes acontecimentos da sua história de vida poderá estar relacionado com a modificação observada no padrão do consumo. A análise das situações que podem representar um risco de recaída, concebida por Marlatt e Gordon (1993), contribuiu de um modo significativo para a compreensão dos determinantes afectivos do consumo. De acordo com a investigação realizada pelos autores, a experiência de estados emocionais considerados negativos (ex: a zanga, a frustração, a tristeza, a ansiedade, etc.,...); a experiência de estados emocionais considerados positivos (ex: a alegria, a excitação sexual, etc., ); as situações de pressão (tais como a persuasão verbal directa por outros consumidores); e os conflitos interpessoais (ex: a tensão marital ou a conflitualidade laboral) representam, em conjunto, 77% das situações passíveis de provocar uma recaída quando associadas a uma expectativa de baixa auto-eficácia (Marlatt, 1996). Deste modo, a abordagem da faceta adaptativa do consumo permite-nos conhecer as dificuldades profundas que os TOXICODEPENDÊNCIAS Volume 13 Número 1 2007

DINÂMICA AFECTIVA E DEPENDÊNCIA DE ÁLCOOL pp. 43-48 45 indivíduos dependentes de álcool manifestam a nível da sua regulação emocional. 3. A (DES)REGULAÇÃO AFECTIVA As insuficiências observadas nas capacidades de regulação emocional em pacientes toxicodependentes têm sido alvo de investigação no seio do modelo psicodinâmico. De acordo com autores como Krystal, H.(1975, 1993), Khantzian, E.(1999), McDougall, J.(1991, 2004) Weegmann & Cohen, (2002) e Flores (2004) os indivíduos dependentes de substâncias possuem limites marcados no plano das capacidades do Self para gerir um conjunto de vivências afectivas. Nesta linha de pensamento, salientamos os trabalhos de Krystal (1975), relativamente à tolerância aos afectos em indivíduos dependentes de substâncias. De acordo com este autor, a incapacidade de tolerar os afectos relaciona-se com o medo/ansiedade (afectos secundários) despertados por certas vivências afectivas primárias (ex: a agressividade, o medo, o amor). A experiência de determinadas emoções é vivida como uma ameaça ao equilíbrio psíquico destes indivíduos e por essa razão recorrem a mecanismos internos inconscientes (ex: a projecção) ou externos (ex: o consumo de substâncias) para suportar o contacto com um mundo interno desconhecido e temido. Esta economia anti-afectiva, nos indivíduos dependentes de substâncias, é entendida pelo autor à luz das cumulativas falhas empáticas no contexto da relação com o objecto primário, ou seja, os afectos não são toleráveis porque não foram tolerados (identificados, aceites, compreendidos, atendidos) no seio da relação primária, perdendo deste modo a sua função original de organização da experiência interior. A dependência e as múltiplas recaídas que, em muitos casos, caracterizam o processo de recuperação, podem ser entendidas como tentativas mal sucedidas de consolidação de uma função interna vital para a adaptação (Kohut, 1977), a capacidade de auto-regulação afectiva. Neste sentido, o objecto da dependência funcionaria como um objecto do Self artificial (Weegmann & Cohen, 2002, p.35), isto é, um objecto simultaneamente externo e subjectivo que ocupa transitoriamente (McDougall, 2004) o lugar de uma estrutura interna ineficiente. É esta dupla pertença do objecto adictivo que, em nosso entender, permite compreender outro paradoxo no funcionamento alcoólico, por um lado, a sua aparente auto-suficiência, manifesta através da recusa frequente de ajuda terapêutica, por outro lado, uma configuração psicológica assente na dependência. 4. IMPLICAÇÕES ADAPTATIVAS As vivências emocionais representam uma fonte de informação vital, transmitem uma avaliação, muitas vezes inconsciente, do estado subjectivo do indivíduo e da sua relação com o meio, conduzindo-o a uma tomada de consciência das suas necessidades imediatas (ex: o medo, sinaliza a detecção de um perigo para a sobrevivência do indivíduo e a sua experiência estimula a procura de protecção). As dificuldades de regulação afectiva referem-se, quer aos aspectos quantitativos, quer aos aspectos qualitativos da emocionalidade, ou seja, os indivíduos alcoólicos manifestam amplas limitações na modulação da intensidade das suas vivências afectivas (tanto na experiência interna, como na sua componente expressiva) e na capacidade de discriminação e verbalização de diferentes estados emocionais (alexitimia). A regulação das emoções refere-se à capacidade de alterar a qualidade, a intensidade, a duração e a modalidade de expressão emocional. Dos diferentes exemplos que a prática clínica nos oferece, recordamos um paciente que após três meses de abstinência, vive um impasse relacional entre o desejo de restabelecer a relação com a sua mulher e a pressão de uma relação extramarital mantida há cerca de um ano. Quando confrontado com a necessidade de optar e devido à experiência de sentimentos de tristeza resultante da perda anunciada (sobretudo da perda da sua omnipotência), misturados com a zanga despertada pela frustração, entra num supermercado e compra uma garrafa de vinho do Porto que ingere rapidamente, foi uma estocada (sic) afirma, descrevendo assim a amputação emocional que realizou. Pese embora a utilização abusiva de álcool desempenhe uma função auto-reguladora, a modificação artificial das vivências emocionais não é um processo isento de consequências, uma vez que os afectos participam activamente, não só na

46 DINÂMICA AFECTIVA E DEPENDÊNCIA DE ÁLCOOL pp. 43-48 organização de si e das relações com os outros, como também nos processos cognitivos de elevada complexidade. Noutra perspectiva, refere António Damásio (1994) Em suma, parece existir um conjunto de sistemas no cérebro humano consistentemente dedicados ao processo de pensamento orientado para um determinado fim, ao qual chamamos raciocínio, e à selecção de uma resposta, a que chamamos tomada de decisão, com uma ênfase especial sobre o domínio pessoal e social. Este mesmo conjunto de sistemas está também envolvido nas emoções e nos sentimentos e dedica-se em parte ao processamento dos sinais do corpo. (pag. 81/82). O compromisso das capacidades de contenção emocional nos pacientes alcoólicos provoca amplas consequências adaptativas, uma vez que as experiências afectivas possuem também um papel organizador do funcionamento, isto é, não são apenas reguladas, são também reguladoras (Cole et al., 2004), exercem uma influência decisiva sobre os processos internos (fisiológicos e psicológicos) e interpessoais. Na nossa perspectiva, estas duas componentes da vida afectiva encontram-se interligadas, ou seja, a desregulação da experiência emocional altera profundamente a quantidade e qualidade da informação acessível ao sujeito, tendo consequências a nível do seu sucesso adaptativo. Metaforicamente, seria como retirar de uma paleta de cores uma das cores primárias, resultando num empobrecimento importante das possibilidades cromáticas. 5. IMPLICAÇÕES PSICOTERAPÊUTICAS O interesse destas propostas reside, não apenas no aprofundamento do conhecimento do funcionamento mental destes doentes, mas supõe também a realização de modificações na abordagem psicoterapêutica desta patologia. De acordo com Krystal, H. & Raskin, H. (1993), a dificuldade em tolerar os afectos (nos pacientes dependentes de substâncias) solicita o terapeuta a adoptar, numa fase preliminar, uma função de descodificação das vivências emocionais insuficientemente diferenciadas e mentalizadas. Nomear e descriminar as experiências afectivas é um primeiro passo para a compreensão do seu significado, a verbalização dos afectos permite colocar as experiências emocionais no plano mental reflexivo, diminuindo a probabilidade de expressão pela via do comportamento. A impulsividade que observamos nos indivíduos alcoólicos, a sua dificuldade de adiar a gratificação ou tolerar a frustração reflecte muitas vezes a sua limitada capacidade de simbolização dos afectos, o seu desconhecimento acerca das suas necessidades a longo prazo e de como poderá satisfazêlas. Nesta perspectiva, o descontrolo do consumo de álcool poderá representar e paradoxalmente promover o descontrolo da emocionalidade, e a identificação dos afectos poderá devolver ao indivíduo uma certa possibilidade de controlo pela atribuição de sentido. A capacidade de modular as emoções poderá ainda ser estimulada pela compreensão do seu significado o que implica, por parte do técnico, a adopção de uma postura mais activa e informativa através da qual se esclarece com o paciente o sentido das suas vivências afectivas, a sua natureza limitada no tempo, a informação que veiculam acerca das suas necessidades e de que modo a satisfação das mesmas se encontra comprometida pelo consumo abusivo de álcool. Esta abordagem caracteriza-se assim pela sua sequencialidade, parte do sensorial para o significado, da clarificação e compreensão do manifesto para a interpretação do latente. 6. CASO CLÍNICO A título de ilustração clínica e em traços gerais, recordamos um paciente que recorre a um primeiro internamento com um quadro de dependência de álcool. O João tem 38 anos, é filho único, solteiro, reside com a mãe (com a qual mantém uma relação de contornos dependentes) numa pequena comunidade no Alentejo, desde os seis anos de idade, altura em que os pais se divorciam. Refere este episódio da sua infância como marcante, verbalizando o distanciamento face ao pai, descrito como um indivíduo violento e consumidor abusivo de álcool. Actualmente, o contacto entre ambos é ocasional e marcado pela conflitualidade. No plano profissional, encontra-se desempregado há cerca de três anos, uma vez que a oficina de artesanato onde trabalhava, encerrou a actividade. Relativamente à história de consumo de álcool, relata a TOXICODEPENDÊNCIAS Volume 13 Número 1 2007

DINÂMICA AFECTIVA E DEPENDÊNCIA DE ÁLCOOL pp. 43-48 47 existência de um padrão progressivo com um agravamento há cerca de dois anos (assumindo uma frequência diária e de inicio matinal), que se estabilizou nos três litros de vinho e dois litros de cerveja diários. No decurso do processo psicoterapêutico, centra as suas queixas no plano corporal (sintomas de privação) e nas consequências disruptivas a nível familiar (conflitualidade crescente com a figura materna pautada por agressões verbais), e com base na sua história de vida conduz-nos a estabelecer uma relação temporal entre o agravamento do consumo abusivo prévio e uma ruptura relacional relevante. A compreensão gradual deste acontecimento sugere-nos a experiência de uma reacção depressiva que conduziu o João a uma procura de solução adictiva (McDougall, 2004) para o seu sofrimento. A existência de uma vivência depressiva encontrava-se insuficientemente mentalizada, ou seja, assumia predominantemente contornos pré-verbais (ex: perda de apetite, insónia terminal, diminuição marcada da vitalidade psíquica, um isolamento profundo). A abordagem inicial deste paciente partiu da progressiva descodificação destes sintomas, como manifestações da tristeza e revolta resultante da perda sofrida (mas não tolerada) e, progressivamente, foi-nos possível perceber que a reacção intensa a esta ruptura assumiu proporções insuportáveis, porque era através desta relação que o doente conseguia realizar um conjunto de necessidades vitais, nomeadamente a capacidade de manter relações para além do seu núcleo familiar original. Deste modo, a compreensão do significado emocional desta separação (como perda de uma parte do Self) apenas encontrou eco no paciente após a co-criação de uma semântica psicológica, isto é, uma função de representação no plano intrapsíquico das vivências afectivas anteriormente expressas num conjunto de sinais corporais/sensoriais. Numa etapa posterior, a identificação do consumo de álcool como estratégia defensiva utilizada para evitar o agravamento depressivo e a conflitualidade interna (característica que Wurmser (1977) denominou de psicofobia) abriu caminho para o acesso a uma problemática de autonomização/individuação que se encontrava subjacente. 7. CONCLUSÃO As insuficiências no plano da regulação afectiva constituem um factor de risco, quer para o desenvolvimento de uma dependência de álcool (ou de outras substâncias), quer para a ocorrência de recaídas. Uma aproximação inicial dos aspectos afectivos onde se privilegia a aprendizagem das capacidades de compreensão e de tolerância emocional, supõe a deslocação progressiva para a relação terapêutica (quer ela seja individual ou grupal) da função reguladora dos afectos outrora desempenhada pelo comportamento adictivo. Pensamos assim, que uma intervenção psicoterapêutica adaptada às limitações observadas nesta população pode desempenhar um papel determinante na recuperação destes indivíduos ao disponibilizar uma relação empática, onde as experiências emocionais disruptivas adquirem significado através da leitura e interpretação do vivido transferocontratransferencial. Por último, consideramos que o aprofundamento da compreensão destas características do funcionamento mental, quer em doentes dependentes de álcool, quer no âmbito da dependência de outras substâncias, poderá abrir novas vias de entendimento do espectro geral da adicção. Contacto: Nuno Faleiro Silva Email: nfaleiro@hotmail.com NOTAS: (1) Uma versão modificada deste artigo foi apresentada pelo autor no 4º Congresso de Alcoologia, em Sesimbra 2005.

48 DINÂMICA AFECTIVA E DEPENDÊNCIA DE ÁLCOOL pp. 43-48 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Cole, P. et al.(2004). Emotion Regulation as a Scientific Construct: Methodological Challenges and Direction for Child Development Research. Child Development, 75 (2): 317-333. Damásio, A.(1994). O Erro de Descartes. Lisboa: Círculo de Leitores. Flores, Philip (2004). Addiction as an Attachment Disorder. Laham: Jason Aronson. Khantzian, Edward (1999). Treating Addiction as a Human Problem. New Jersey: Jason Aronson. Kohut, H. (1977). Preface. In Blaine, J & Julius, A. (Eds). Psychodynamics of Drug Dependence. NIDA Research Monograph Series nº12, pp.vii-ix. Washington, DC. Superintendent of Documents, U.S. Government Printing Office. Krystal, H. (1975). Affect Tolerance. Annual of Psychoanalysis, Vol: 3: 179-219. New York: International Universities Press. Marlatt, G.A. & Gordon, J.R. (Orgs.) (1993). Prevenção de Recaída: Estratégia e Manutenção no Tratamento de Comportamentos Aditivos. Porto Alegre: Artes Médicas. Marlatt, A.(1996). Taxonomy of high-risk situations for alcohol relapse: evolution and development of a cognitive-behavioral model. Addiction (Supplement): 37-49. McDougall, J. (1991). Teatros do Corpo. São Paulo: Martins Fontes. McDougall, J.(2004). L économie psychique de l addiction. Revue Française de Psychanalys, 2: 511-527. Weegmann, M. & Cohen, R. (Eds) (2002). The Psychodynamics of Addiction. London. Whurr Publishers. Wurmser, L. (1977). Mr. Pecksniff s Horse? (Psychodynamics in Compulsive Drug Use). In Blaine, J & Julius, A. (Eds). Psychodynamics of Drug Dependence. NIDA Research Monograph Series nº12, pp. 36-72. Washington, DC. Superintendent of Documents, U.S. Government Printing Office. Krystal, H. & Raskin, H. (1993). Drug Dependence. New Jersey: Jason Aronson. TOXICODEPENDÊNCIAS Volume 13 Número 1 2007