INTUIÇÕES GEOMÉTRICAS DOS RIBEIRINHOS: CESTARIAS E ESTEIRAS DA ILHA DO COMBU Valéria dos Santos Dias Universidade Federal do Pará valeria.d.21@hotmail.com Luiz Carlos Silva Conceição Universidade Federal do Pará luizcsconceicao@gmail.com Isabel Cristina Rodrigues Lucena Universidade Federal do Pará. ilucena@ufpa.br Resumo: Este artigo é oriundo da relação entre minha pesquisa de mestrado e uma experiência de ensino de geometria como professora de matemática. A pesquisa de mestrado tem com um dos seus objetivos, identificar em práticas culturais da Ilha do Combu-PA, experiências que destacam a intuição geométrica na elaboração de objetos da cultura ribeirinha. As intuições geométricas expressadas pelos artesãos vêm sendo investigadas em suas particularidades ainda latentes. As cestarias e esteiras em questão são produzidos artesanalmente nesta Ilha, a qual se encontra na região insular da cidade de Belém-PA com distância de 1,5 Km de sua região continental. Alguns deles são: o tupé, o tipiti, a rasa e o paneiro. Neste trabalho, também enfocarei uma experiência realizada numa turma de 6ª série de uma escola urbana, durante as aulas de geometria realizadas sob o aporte das peneiras produzidas no Combu como um recurso didático e um referencial para a ampliação de conhecimentos estritamente geométricos, envolvendo modos de vida de outras culturas e outros saberes. A aprendizagem matemática nesse contexto destaca-se em qualidade de construção de conceitos e na melhoria da relação afetiva entre estudantes e conteúdo. Palavras-chave: Geometria; Ilha do Combu; Cultura. INTRODUÇÃO Idéias etnomatemáticas intrínsecas em diversas práticas culturais presentes em artefatos (ou não) manualmente produzidos por comunidades indígenas, ribeirinhas e etc. têm sido investigadas continuamente, chamando atenção para um sentimento matemático ainda à margem do processo de ensino-aprendizagem da maioria das instituições escolares assistidas na sociedade. Podemos citar alguns trabalhos: na cidade de Belém (BRITO, 1
2006), como em outros estados do Brasil, a ter exemplo do Espírito Santo (LORENZONI, 2008); enfatizando também pesquisas fora do país como as tratadas em Moçambique/ZA (GERDES, 1993). Neste artigo pretendo compartilhar uma experiência de ensino inspirada nas investigações e estudos realizados durante minha pesquisa no curso de mestrado (iniciado em março/2009), nas comunidades da Ilha do Combu em Belém/PA. A pesquisa em questão tem como um de seus objetivos a identificação, nas práticas culturais dos moradores, intuições geométricas dos artesãos durante a produção de seus artefatos: cestarias (tipiti utilizado para espremer massa de mandioca; rasa utilizada para transporte e acondicionamento de frutos e materiais variados, principalmente o açaí; paneiro utilizado para prender animais de pequeno e médio porte), esteiras (tupé utilizado como toldo de barcos e para secagem de frutas típicas). Os objetos em foco são as cestarias e as esteiras por apresentarem uma semelhança em seus traçados. As peneiras produzidas no Combu apresentam trançados que ora se assemelham as rasas (tipo de cesto), ora se assemelham ao tupé (tipo de esteira). O percurso metodológico está sendo desenvolvido dentro de uma abordagem qualitativa. No primeiro momento houve a pesquisa bibliográfica com a proposta de sistematizar conhecimentos que tratam: da significação de cultura (CUCHE, 2002), das particularidades da Ilha do Combu (DERGAN, 2006), da complexidade entre cultura, etnomatemática e educação (MORIN, 2002) e da etnomatemática relacionada a construção do pensamento geométrico (GERDES, 1992 e 1993). Sobre as intuições geométricas e as possíveis correlações com o ensino da matemática são referenciais ainda em construção. Atualmente, foi iniciado um roteiro de viagens para a ilha a fim de constituir um ambiente propício para um aprofundamento das observações da confecção dos artefatos e melhor interação com os artesãos que realizam essa atividade. Sobre os objetivos específicos destaco os seguintes: reconhecer a identidade das idéias etnomatemáticas presentes nos artefatos produzidos na Ilha, viabilizando a reflexão de aspectos lógicos e geométricos determinados na relação do indivíduo ribeirinho com o ambiente; sugerir um direcionamento dessas idéias etnomatemáticas de forma a elucidar seus significados, no que diz respeito ao contexto nos quais são empregados; relacionar as intuições geométricas presentes na confecção dos objetos com a matemática escolar; propor atividades escolares as quais envolvam os artefatos presentes no Combu. 2
TRILHANDO A ILHA O município de Belém, capital do estado do Pará, tem uma área continental de 173,17 Km² e insular de 342,52 Km². A Ilha do Combu encontra-se nesta área insular e é composta pelas comunidades: Igarapé do Combu, Igarapé do Piriquitaquara/Paciência e Furo Benedito/Beira Rio Guamá, onde vivem cerca de 227 famílias, totalizando aproximadamente 985 pessoas, perfazendo 516 mulheres e 469 homens. (DERGAN, 2006) O extrativismo assim como a pesca são as principais atividades desenvolvidas na Ilha, podemos dizer que estas acabam mantendo a produção e reprodução das comunidades e as relações estabelecidas com a natureza dos espaços e tempos. Ainda que o fruto chamado açaí tenha sido majoritariamente definido por muitos, como personagem principal do extrativismo no Combu, o cacau, o cupuaçu, a pupunha, e diversas frutas também cooperam para a subsistência das comunidades, contribuindo com o próprio consumo pelos moradores e com sua comercialização. Podemos destacar também outras formas complementares de produção como a criação de animais de médio porte tal qual galinhas, patos, pesca de camarão e peixe; e a realização e venda de artesanatos e artefatos. Figura 1 - Lateral da entrada de uma casa ribeirinha, Ilha do Combu-PA, março de 2010. 3
A GEOMETRIA DOS MORADORES DA ILHA NA AULA DE MATEMÁTICA O estudo do espaço e das formas, segundo os PCNs (1998), abrange três objetos de naturezas diferentes: o próprio espaço físico, tratando do domínio das materializações; a geometria, que com o domínio das figuras geométricas acaba estabelecendo modelos deste espaço físico; e o(s) sistema(s) de representação plana das figuras espaciais, ou seja, domínio das representações gráficas. Três questões relativas à aprendizagem que são ligadas e interagem umas com as outras, correspondem a esses objetos: a primeira trata do desenvolvimento das habilidades de percepção espacial, a segunda questão aborda a elaboração de um sistema de propriedades geométricas e de uma linguagem que permitam agir nesse modelo, e por último a terceira discute a codificação e decodificação de desenhos. Esses aspectos discorridos no parágrafo anterior estão possivelmente presentes na própria construção histórica da Geometria. Gerdes explana que possivelmente a Geometria originou-se nas relações humanidade-ambiente, pois: na confrontação com o seu meio ambiente o Homem da Antiga Idade da Pedra chegou aos primeiros conhecimentos geométricos (1992, p.17), onde a passagem da Geometria de ciência empírica para uma ciência matemática estruturada aconteceu lentamente do processo de aquisição de imagens abstratas das relações espaciais entre os objetos físicos e suas partes. Através de um ensino de geometria enfaticamente cultural, direcionado para situações experimentais e problemas desafiadores poderemos perceber de que maneira o aluno vai estruturando seu pensamento. Construir conceitos, através dos artefatos pode permitir a capacidade de estruturações cada vez mais complexas do pensamento geométrico. Frente aos novos desafios existentes na construção destes objetos, pode acontecer que o pensamento irá perpassar por uma reestruturação para assim dar conta das restrições e peculiaridades presentes. Neste sentido, a intuição geométrica tem um papel fundamental nesta construção, pois: No nosso contexto social estamos rodeados de objetos, formas desenhos e transformações. As propriedades geométricas estão cada vez mais acessíveis e presentes na vida cotidiana, cultural e tecnológica. Desde os primeiros anos de nossas vidas vivenciamos as formas dos objetos e, inseridos num mundo de três dimensões, vamos gradativamente tomando 4
consciência desse espaço, do qual somos apenas mais um objeto. Este conhecimento constitui a intuição geométrica, que é o primeiro convite à geometria. (KLUSENER, 1998, pag. 184) Como professora do ensino fundamental em uma escola privada de Belém durante o ano de 2010, durante algumas aulas de geometria direcionadas para o assunto de retas e ângulos em uma turma de 6ª série, utilizei como material pedagógico algumas peneiras produzidas na Ilha do Combu. Estas aulas tinham por objetivo a classificação de retas e ângulos conjuntamente com a percepção de ângulos congruentes, adjacentes e suas medições. Embora as peneiras como já citado anteriormente não estejam relacionadas a investigação de mestrado neste artigo abordada, pretende-se mencionar essa experiência no intuito de mostrar a receptividade dos alunos tanto afetiva quanto aos conhecimentos construídos durante uma aula vivenciada com recursos distintos a cultura destes. Ainda que em Belém, possamos visualizar e até manusear peneiras produzidas na Ilha, estas não são empregadas pelos alunos que desconhecem sua origem e sua utilidade, assim igualmente com o tupé, o tipiti, a rasa e o paneiro. As aulas foram desenvolvidas em dois dias. No primeiro dia usei dois horários de 50 minutos cada. A turma possui 44 alunos que foram divididos em 11 grupos, neste dia não faltou nenhum aluno. Cada grupo ficou com uma peneira, todas idênticas. A primeira atividade foi de apresentação dos objetos. Citei a origem e o modo de produção das peneiras. Neste momento surge a necessidade de referenciar a Ilha, pois apesar do Combu estar localizado na região de Belém, nenhum estudante o conhecia. O diálogo foi sendo direcionado para a identificação, feita em conjunto, (estudantes e eu) das particularidades da peneira as quais comparávamos com retas. Trabalhamos a partir de então conceitos relativos a posições de retas (perpendiculares, paralelas e concorrentes) e localização de vértices (entre retas concorrentes), sempre justificando tudo. Houve a necessidade do uso do transferidor que proporcionou aprendizagens para o seu manuseio e sobre seus elementos. Foram identificadas as medidas dos ângulos presentes na peneira. E por fim, trabalhamos a percepção de adjacências e congruências nestes ângulos. 5
Figura 2 - Fotografia e desenho da contextura na peneira, março de 2010. Tivemos a oportunidade de discutir sobre a construção de ângulos em diferentes objetos por diversos povos culturalmente distintos e sua necessidade especifica em determinados objetos: Babilônicos, sobre os relógios solares; Índios Kadiwéu, sobre desenhos ornamentais em pintura corporal; os angolanos da cultura Tchokwe, quanto à construção sistemática de figuras sona 1. Foi pedida uma redação escrita pelos alunos onde colocassem suas opiniões sobre as aulas realizadas, e que nesta pudessem expressar possíveis diferenças dessas aulas que propus o uso de recursos os quais não conheciam e a oportunidade de discutir sobre saberes de outras culturas. Numa das redações me chamou atenção o seguinte relato: Agradeço a Deus porque as aulas sobre ângulos são muito bacanas, além de aprendermos a usar o transferidor também aprendemos sobre o pessoal da Ilha do Combu e os objetos que eles utilizam. Agora eu sei o que são retas paralelas, concorrentes, sei medir ângulos, sei o que é ângulo adjacente, congruente, complementar e suplementar. Espero que a Sra. Professora realmente nos ensine a fazer peneiras pra sabermos construir o ângulo. E que, por favor, continue com as aulas sempre assim e não aquelas aulas chatas no quadro onde eu nem sei o que tô copiando. (Estudante A, 2010) 1 Desenhos pertencentes a uma velha tradição, onde os Tchokwe através destes para passar o tempo referem-se a provérbios, fábulas, jogos, adivinhas e etc. São produzidos com um único traçado, suave e contínuo. 6
Quando olhamos para as diferentes intuições geométricas existentes em diferentes culturas, oportunizamos aos nossos alunos o conhecimento e a valorização da pluralidade do patrimônio sociocultural da humanidade, conscientizando-os contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de etnia ou outras características individuais e sociais, como objetiva a Educação para a diversidade cultural. CONSIDERAÇÕES FINAIS Articulando o conhecimento matemático culturalmente dominante com outros, a ter como exemplo a proposta de trabalhar com os aspectos geométricos (espaço/forma) existentes em cestarias ou esteiras, pude refletir com os estudantes sobre como formas materialmente fundamentais originam-se e desenvolvem-se da confrontação do material destes objetos com a finalidade de produção de algo útil (GERDES, 1992). Nessa perspectiva é fundamental conhecer a realidade de nossos alunos para elucidar a importância e o valor de conhecimentos (cultural e matemático) e adotar uma postura etnomatemática. Indivíduos e povos têm, ao longo de suas existências e ao longo da história, criado e desenvolvido instrumentos de reflexão, de observação, instrumentos materiais e intelectuais (que chamo ticas) para explicar, entender, conhecer, aprender para saber e fazer (que chamo matema) como resposta a necessidades de sobrevivência e de transcendência em diferentes ambientes naturais, sociais e culturais (que chamo etnos). (D AMBROSIO, 2007, p. 60) A geometria dentre outros conhecimentos matemáticos deve levar o educando a uma postura crítica, responsável e construtiva em distintas situações sociais. Desta forma poderá colaborar com a construção de uma melhor compreensão da participação social e política como o exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, direcionando-o para atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito. (PCNs, 1998) Desde sua origem empírica através da necessidade do indivíduo de dominar e transformar a natureza, a geometria, inserida na ciência matemática de diferentes sociedades e culturas, tem sido alvo de discussões a fim de superação das dificuldades no 7
seu processo de ensino/aprendizagem enfrentadas por professores e alunos, em praticamente todos os níveis de ensino. Com o auxílio de materiais produzidos e utilizados por povos culturalmente distintos, por exemplo, as cestarias como recurso didático para a exploração de conteúdos geométricos a serem trabalhados durante o ensino de matemática, é possível oportunizar ao educando descoberta, entendimento e construção de conceitos em diversas fases da aprendizagem escolar. REFERÊNCIAS BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Matemática / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC / SEF, 1998. BRITO, M. Educação matemática, cultura amazônica e pratica pedagógica: à margem de um rio.2007. Dissertação (mestrado) Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemáticas, Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2007.. Etnomatemática e a Cultura Amazônica: Um Caminho para Fazer Matemática em Sala De Aula. In SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 2., 2006, Recife. Anais. Matemática formal e matemática não-formal 20 anos depois: sala de aula e outros contextos. Recife: UFPE, 2006. CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 2002. D AMBROSIO, U. Etnomatemática elo entre as tradições e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. DERGAN, J. História, Memória e Natureza: As comunidades da Ilha do Combu-Belém- PA. 2006. Dissertação (mestrado) Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências humanas Universidade Federal do Pará, Belém, 2006. GERDES, P. Geometria Sona. Maputo: Instituto Superior Pedagógico, 1993.. Sobre o despertar do pensamento geométrico. Curitiba: UFPR, 1992. 8
KLÜSENER, R. Ler, escrever e compreender a matemática, ao invés de tropeçar nos símbolos. In: NEVES, Iara Conceição B.; SOUZA, Jusamara Vieira; SCHÄFFER, Neiva Otero et al. (orgs). Ler e escrever compromisso de todas as áreas. Porto Alegre: UFRGS, 1998, p. 175-89. LORENZONI, C.; DYNNIKOV, C. Geometria em práticas e artefatos das etnias Tupinikim e Guarani do Espírito Santo. In: ENCONTRO BRASILEIRO DE ESTUDANTES DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 12., 2008, Rio Claro. Anais. Educação Matemática: Possibilidades de interlocução. Rio Claro: UNESP, 2008. MORIN, E. Educação e complexidade: os setes saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2002.. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. 9