A ESCOLA NÃO PODE FICAR DE FORA : A ESCRIT@ NO COMPUTADOR NA SALA DE AULA



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Transcrição:

Primeiras palavras A ESCOLA NÃO PODE FICAR DE FORA : A ESCRIT@ NO COMPUTADOR NA SALA DE AULA Maristela Cury Sarian 1 Esta análise faz parte de uma reflexão que está sendo desenvolvida em minha tese de Doutorado em Linguística no IEL/UNICAMP, que tem por objetivo compreender o processo de significação das políticas públicas de inclusão digital no que toca, especificamente, à prática da escrita mediada pelo computador, na sala de aula, espaço escolar legitimado na circulação do saber (LAGAZZI, 2003, p.67), tomando como corpus o PROUCA Programa Um Computador por Aluno -, do governo federal, que visa à distribuição de laptops educacionais em escolas de ensino fundamental no país. Para este trabalho, selecionamos uma atividade realizada durante a Fase I do projeto, também denominada Pré-piloto, em que cinco escolas uma em cada Estado foram selecionadas para os testes. A atividade está disponível no site do Programa 2 e aconteceu na Escola Estadual Luciana de Abreu, localizada na cidade de Porto Alegre-RS, no ano de 2007. Denominada Alfabetização, foi voltada para crianças do primeiro ano do ensino fundamental (ensino de nove anos), como parte do Projeto Curiosidade Premiada, e vista pela professora como um evento bemsucedido. Neste estudo, apresentamos, num primeiro momento e de forma sintética, a descrição da atividade, para em seguida propormos nosso gesto de interpretação. Recortamos, para análise, fatos de linguagem que nos permitiram compreender os sentidos atribuídos à escrita, perguntar pelo autor que se pretende formar com essa prática e pelos imaginários de língua aí construídos, ancorando-nos basicamente em duas questões, que dialogam com outros pontos da descrição da atividade: no relato da professora sobre sua sala de aula e numa atividade realizada com o laptop educacional. 1. Uma breve descrição da atividade De acordo com as informações colhidas no site, as atividades tinham como objetivo geral preservar a habilidade das crianças de formular questões e possibilitar que elas expressassem suas curiosidades, exercendo autoria na sua aprendizagem (grifos nossos). Já a sala de aula, formada por dezenove crianças, foi assim descrita: Seis crianças já apresentavam uma hipótese de escrita alfabética, sendo capazes de escrever palavras com sílabas simples, seis estavam em um momento intermediário e sete ainda estavam em 1 Professora da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) e Doutoranda em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: maristelasarian@gmail.com 2 http://www6.ufrgs.br/psicologia/lec/bid-uca/2/1.html

um momento inicial (pré-silábicos) na construção da escrita, utilizando letras aleatórias para escrever. Em relação ao letramento, oito alunos não compreendiam a função da língua e nem eram capazes de utilizar estratégias para tentar ler e escrever, seis compreendiam parcialmente e cinco compreendiam. (grifos nossos). A metodologia adotada foi baseada na Metodologia de Projetos de Aprendizagem (FAGUNDES, 1999). Atividades foram propostas baseadas num livro de literatura infanto-juvenil, denominado Curiosidade premiada, de Fernanda Lopes de Almeida, que também dá título ao projeto. No enredo, uma personagem que vivia fazendo perguntas. Assim como no texto literário, perguntas foram feitas às crianças, cuja busca por essas respostas se deu por meio de livros, pesquisa na Internet e por meio de informações trazidas por elas a partir de programas televisivos. Todo o material pesquisado foi guardado em uma caixa para consulta além da Internet. No que toca às atividades realizadas no computador 3, estas compreendiam a busca por imagens em sites, o armazenamento das imagens no laptop e sua inserção no diário pessoal em uma plataforma. A linguagem visual foi trabalhada por meio de fotografias tiradas dos animais estudados em formato de brinquedos ou massa de modelar; a atividade de escrita proposta foi a inserção de legendas para as fotos, materializada na imagem que segue: Para a professora que conduziu esta atividade, esta foi positiva, na medida em que Ainda nas palavras da professora: as crianças evoluíram na construção da língua escrita no que se refere ao funcionamento do código e no letramento no que se refere à compreensão das funções da língua. Também desenvolveram a fluência digital, sendo capazes de utilizar a tecnologia (o laptop) para situações específicas dentro das suas necessidades, demonstrando-se aptas a aprender a utilizá-la para resolver seus problemas cotidianos. (grifos nossos). Eles construíram muitas coisas nos projetos. Não é a informação pela informação. Mas sim a aprendizagem de aprender a buscar 3 No site, encontramos o exemplo de duas atividades realizadas durante esse projeto. Para este estudo, selecionamos uma delas.

a informação, aprender a aprender. Foi isso que eles ganharam. Eles aprenderam a organizar o pensamento, organizar a pesquisa. Aprenderam coisas sobre os animais, sim. A aprendizagem é a questão de querer aprender, de estar curioso. Eu acho que isso é a maior aprendizagem. E isso, sim, eu acho que eles aprenderam muito, muito, muito. (Depoimento da Graziela, professora, grifos nossos). 2. Um gesto de análise Pela perspectiva discursiva, ao dizer, o sujeito se inscreve. Essa inscrição se dá por meio da posição de que fala esse sujeito, das filiações de sentido que essa posição lhe permite estabelecer, remetendo esse dizer a diferentes formações discursivas, que podem referir, ou não, a diferentes formações ideológicas. Sabemos, também, que não podemos desvincular a posição sujeito e os sentidos daí decorrentes das condições de produção que os sustenta. E é dessa perspectiva que falamos e é com esse olhar que buscamos compreender os sentidos em funcionamento em nosso material. Ao voltarmos nossa atenção para o primeiro recorte que é objeto de nossa análise, vemos que a formulação desse sujeito, que fala do lugar e da posição do professor, é atravessada pelo discurso da ciência, por uma metalinguagem própria de certo saber sobre a língua, do qual o professor se apropria e o qual produz, pelo próprio uso de uma metalinguagem, o efeito de cientificidade. É esse o saber que o constitui nesse lugar de professor, o saber da ciência. É o funcionamento do professor-cientista que se projeta aqui, como nos diz Orlandi (2009), em formulações como hipótese de escrita alfabética, momento inicial, momento intermediário, letramento. Com o uso dessa metalinguagem, para a autora, fixam-se as definições e excluem-se os fatos, estabelece-se o estatuto científico do saber que se opõe ao senso comum, isto é, constróise com a metalinguagem o domínio da objetividade do sistema, dilui seu objeto ao mesmo tempo em que se cristaliza como metalinguagem (p.30). Efeito do discurso pedagógico, no qual o professor apropria-se do cientista e se confunde com ele sem que ele se explicite sua voz de mediador. Há um apagamento, isto é, apaga-se o modo pelo qual o professor apropria-se do conhecimento do cientista, tornando-se ele próprio possuidor daquele conhecimento. (p.21). Filiada em uma memória, essa discursividade, ainda que não explicitada, é ancorada em uma teoria de cunho lógico-biológico, cognitivo, portanto, defendida por autores como Emilia Ferreiro e Jean Piaget. Formulações como essa nos permitem pensar que já há, aí, um imaginário de língua funcionando e que produz sentidos. Escrever seria compreendido como escrever palavras com sílabas simples e o compromisso do professor seria trabalhar com as formas; não há uma responsabilidade com o sentido produzido com o dizer de seus alunos. A apropriação que o professor faz desse discurso da ciência, que cria categorias e propõe divisões, é própria de uma lingüística estrutural, imanente; uma categorização que fecha o processo em etapas distintas e estanques e uma divisão conceitual entre o que é da ordem da alfabetização

(do código) e o que é do letramento (da leitura), noções produzidas também por certo saber sobre a escrita. Esse tipo de funcionamento é compreendido por Silva (1998) como uma forma de fragmentação e dispersão do objeto, na busca por uma completude, ainda que imaginária, porém, constitutiva da escrita, silenciando a materialidade do sujeito e do sentido, já que a prática combinatória de letras toma a língua no nível do significante, numa disjunção com o significado, nos diz a autora. Isso faz com que reverberem sentidos, para e na escola, que atribuem à escrita um lugar de reprodução de saber tido como dado, como bem nos lembra Silva (1998, p.157), com filiações a uma concepção instrumental de língua tomada como código, voltada para a comunicação, que produz como efeito a compreensão de uma escrita naturalizada, transparente, objetiva, uma escrita como evidência (p.159), o que faz com que a escola trate a possibilidade de aprender a ler e a escrever como uma coisa óbvia: a de fornecer ao aluno um instrumento que opera sustentado por uma propriedade combinatória de composição de unidades significantes através de regras de correspondência entre grafema e fonema e de composição de fonemas, sílabas e frases (p.163). Entretanto, é esse saber sobre a língua que pode e deve ser ensinado e aprendido, ou seja, (re)produzido nessa escola selecionada para a avaliação do PROUCA. Trata-se de um sentido administrado, institucionalizado nos documentos oficiais do Programa. Efeito do caráter redutor e regulador que perpassa as situações de linguagem em uma dada conjuntura sócio-histórica (ORLANDI, 2008), conformando o sujeito e o conhecimento a determinados sentidos, silenciando tantos outros possíveis... Na atividade em análise, é a metodologia de projetos de aprendizagem 4, legitimada também nos PCNs, fruto da política de um Estado que legisla sobre questões de língua e de ensino, que está autorizada a ser empregada na sala de aula, pois legitimada nas bases epistemológicas que sustentam o Programa: o construtivismo, assentado num viés psicológico e biologizante da aprendizagem, associado ao pragmatismo norte-americano do aprender a aprender, que se discursiviza como segue: A situação de projeto de aprendizagem pode favorecer especialmente a aprendizagem de cooperação, com trocas recíprocas e respeito mútuo. Isto quer dizer que a prioridade não é o conteúdo em si, formal e descontextualizado. A proposta é aprender conteúdos, por meio de procedimentos que desenvolvam a própria capacidade de continuar aprendendo, num processo construtivo e simultâneo de questionar-se, encontrar certezas e reconstruí-las em novas certezas. (FAGUNDES, 199-, p.24, grifos nossos). Constrói-se, assim, na atividade, uma imagem de como deve ser o processo de ensinoaprendizagem, tal como observamos nas formulações que seguem, extraídas do relato da professora: não é a informação pela informação. Mas sim a aprendizagem de aprender a buscar a informação, aprender a aprender ; a aprendizagem é a questão de querer aprender, de estar curioso. 4 Membro da equipe responsável pela concepção do PROUCA no Brasil, professora vinculada ao LEC - Laboratório de Estudos Cognitivo, que dá suporte ao Programa em Porto Alegre.

Uma concepção de aprendizagem reduzida ao âmbito das coisas-a-saber (PÊCHEUX, 2008), que se ancora em saberes autorizados pelo Estado e legitimados na e pela escola, que se dão no âmbito do conteúdo, da informação encontrada nos livros, no que é localizado na internet, naquilo que é transmitido pela televisão, enfim, no produto tomado como pronto, completo e disponível para ser consumido. O conhecimento não é tomado enquanto um processo. Esse banco de dados, esses arquivos disponíveis e pertinentes sobre uma questão que se pretende construir na sala de aula, (re)produzem, na escola, sentidos logicamente estabilizados, como bem diz Pêcheux (ibidem, p.31), sem se considerar que nem tudo pode e deve ser dito nos livros, na TV e também na internet... é assim que está se construindo a história da escrita e do conhecimento nessa sala de aula... O emprego de uma literatura infanto-juvenil pertencente ao cânone, pois altamente recomendável para a criança pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Prêmio de Melhor Livro de Literatura Infantil da Associação Paulista de Críticos de Arte. Considerado o melhor livro infantil traduzido para o espanhol entre 1978 e 1979 pelo Banco del Libro, de Caracas, Venezuela, sentidos estes fixados em uma determinada direção e produzidos também no âmbito institucional, é, a nosso ver, outro componente desse processo de sedimentação e divisão de saberes, bem como de estabilização de sentidos que se cristalizam em outros lugares e que são levados para a escola, tomada, em nossa sociedade, como o lugar do conhecimento. No caso da literatura, isso tem como efeito a atribuição, para a escola, do papel de avalista e fiadora do que é literatura (LAJOLO, 2001, apud MARTINS, 2006, p.96), ao mesmo tempo em que há uma redução, uma fragmentação do trabalho da literatura, uma escolarização do texto literário, tomado como um pretexto (MARTINS, 2006), no caso, para o ensino da língua escrita. Nesse cenário que conforma a produção dos sujeitos e dos sentidos, perguntamos: que autor é esse que a escola permite formar? Que sentidos de autoria são possíveis para os alunos? Para compreendermos essa questão, vamos voltar nosso olhar, agora, para a atividade realizada com o laptop. Aprendemos com Orlandi (2002) que, numa sociedade letrada como a nossa, a escrita é estruturante. Nessa direção, não se toma a sua aquisição como parte de um processo de sentidos já naturalizados para o sujeito, escolarizado ou não, localizado no campo ou nas cidades. Mais do que isso: uma sociedade que se pauta pelo funcionamento da escrita é significada, para a autora, como lugar de constituição de relações sociais, isto é, de relações que dão configuração específica à formação social e seus membros [...] Se assim é, não adianta só aprender a escrever, é preciso que esta aprendizagem inscreva o sujeito na estrutura social, ou seja, que o constitua em suas posições de sujeito da escrita. (p. 233). É nesse sentido que Silva (2000) afirma que o processo de alfabetização é um processo de apropriação, pelo sujeito, de um objeto sócio-histórico, que lhe afeta de diferentes formas. Não é da ordem do apreensível, pois se caracteriza pela incompletude; nem do linear, pois não é quantificável; tampouco do lógico, mas do móvel.

Vemos que a produção do aluno, efeito de uma apropriação que o sujeito faz da escrita em sua materialidade digital, permite-nos pensar em um trabalho com a língua que vai além da inserção de legendas. Não é uma legenda, em seu aspecto descritivo-explicativo que ali encontramos. Tratase da produção de um texto que possibilita compreender o trabalho desse sujeito com a linguagem, com sua prática autoral, portanto. E é nesse gesto de apropriação da escrita que o aluno encontra sentido para o que aprende em sala de aula: na circulação de um texto que alcança outros olhares, que vão um pouco mais além da visão avaliativa da professora. Entretanto, esse gesto em que as crianças escrevem para comunicar idéias e serem lidas por outros é reduzido, na formulação da professora, a elementos motivadores para eles continuarem escrevendo, a uma avaliação na qual houve, para toda a sala de aula, ainda que nem todos os alunos apresentassem a mesma desenvoltura com a escrita, a evolução de um trabalho com a língua tomado como gradual e centrado no funcionamento do código e no letramento. Uma atividade que deu certo: uma sensação de missão cumprida, o que vai ao encontro do objetivo da atividade: preservar aquilo que o aluno já sabe, uma forma de repetição do mesmo... Os sentidos que ficam não dão espaço para que outros sentidos façam sentido; as condições em que a atividade é produzida não permitem à professora tratar a produção do aluno como uma textualização, mas como um exercício de escrita que buscou atestar o domínio da língua enquanto um instrumento de decodificação. Essa visão que atribui um sentido objetivo à linguagem apaga a subjetividade desses sujeitos, alunos e professores, em sua relação com a língua e com o sentido. Como efeito, temos a configuração de uma atividade tomada em sua repetição formal, uma técnica de produzir frases, exercício gramatical que também não historiciza, só organiza (ORLANDI, 1998, p.14). Essa foi a autoria possível de ser construída nessa sala de aula. Isso vai ao encontro das colocações de Lagazzi (2006), quando retoma o trabalho de Castellanos Pfeiffer (2000) sobre a questão autoral praticada na escola: o professor dar-se a possibilidade da autoria significa, certamente, a abertura de possibilidades para que a autoria do aluno possa se produzir (p.98). Nesse momento, lembramo-nos das lições de Saussure (1969), que nos diz: o ponto de vista cria o objeto. Concluímos com o convite proposto por Lagazzi (2003), que nos chama a refletir sobre o exercício de uma prática docente em que outras vozes possam ecoar e produzir outros sentidos: a sala de aula não convida à apropriação, à autoria. Ela é configurada em fronteiras que tendem à imobilidade. Mas vale a pena buscar as falhas nesse ritual (p.70). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FAGUNDES, L. da C. et al. Aprendizes do futuro: as inovações começaram. MEC/SEED/PROINFO. Coleção Informática para mudança na educação, 199-. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me003153.pdf>. Acesso em: 09.ago.2011. LAGAZZI, S. Texto e autoria. In: ORLANDI, E.P.; LAGAZZI-RODRIGUES, S. Discurso e textualidade. Campinas: Pontes, 2006. p.81-103.

. A sala de aula e o alhures: circulando pela linguagem entre práticas e teorias. Revista Letras, PPGL UFS, nº27, p.67-71, 2003. Disponível em: <http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_r27/revista27_6.pdf>. Acesso em: 09.ago.2011. MARTINS, I. A literatura no ensino médio: quais os desafios para o professor? In: BUZEN, C.; MENDONÇA, M. (Orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola, 2006. p.83-102. ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 5.ed. Campinas: Pontes, 2009.. Discurso e leitura. 8.ed. São Paulo: Cortez, 2008.. Paráfrase e polissemia: a fluidez nos limites do simbólico. Rua, Campinas, nº4, p.9-19, 1998.. Língua e conhecimento lingüístico. Campinas: Pontes, 2002. PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. 5.ed. Tradução de Eni P. Orlandi. Pontes: Campinas, 2008. SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1969. SILVA, M. V. da. História da alfabetização no Brasil: a constituição de sentidos e do sujeito da escolarização. 1998. 267f. Tese (Doutorado em Linguística) Instituto dos Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.. Alfabetização: sujeito e autoria. Disponível em: <http://www.ucb.br/textos/2/456/artigosecom unicacoes/>. Acesso em: 06.mar.2011.