Notas de Economia do Setor Público Aula 7: Concepções de Justiça. Carlos Eugênio da Costa Fundação Getulio Vargas - EPGE/FGV

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Transcrição:

Notas de Economia do Setor Público Aula 7: Concepções de Justiça Carlos Eugênio da Costa Fundação Getulio Vargas - EPGE/FGV Rio de Janeiro, Agosto-Dezembro de 2010

1 Justiça Social Justiça distributiva diz respeito à forma como a sociedade deveria alocar seus recursos escassos entre agentes com objetivos e necessidades conflitantes. A questão é discutida filosoficamente há mais de dois mil anos, como podemos constatar pelas discussões de Aristóteles ou Platão. Mais recentemente houve uma renovação do interesse filosófico no assunto, em grande parte devido à publicação em 1991 do livro Theory of Justice de John Rawls. É preciso destacar o caráter normativo de justiça em economia, já que não é se define esse conceito. Nosso objetivo principal é buscar formas de estabelecer critérios consistentes de hierarquizar diferentes situações sociais ou estados sociais De acordo com Roemer (1996), economistas e filósofos abordam a questão distributiva de formas distintas. Economistas são treinados a expressar qualquer questão interessante em um modelo formal. Axiomas descrevem as relações primitivas entre os termos que definem o problema, e o conhecimento surge da dedução de conclusões, a partir dos axiomas, que não são conseqüências óbvias destes. O prazer estético surge do processo de demonstração de conclusões surpreendentes a partir de hipóteses aparentemente fracas. Já o filósofo está mais interessado no processo que antecede esse procedimento 1. O trabalho do filósofo é, de certa forma, tentar definir a melhor maneira de formular uma questão. Quando encarando um modelo proposto pelo economista, o filósofo vai-lhe questionar os axiomas, mostrar contraexemplos indicando que a formulação proposta deixou de lado casos importantes, e apontar que a formulação do economista já respondeu de saída algumas questões que deveriam permanecer abertas. De um lado, a maneira dos economistas de abordar os problemas é de grande importância (e mesmo indispensável) para verificar a consistência interna, tornar explícitas as formulações muitas vezes vagas dos filósofos. De outro, os grandes avanços conceituais recentes sobre justiça distributiva, como as idéias de bens primários, funcionamentos e capacidades, etc. - são todos originários do pensamento filosófico. Para os economistas, os maiores avanços da área são associados aos trabalhos de Arrow (1951) e seu teorema de impossibilidade, os trabalhos em barganha associados aos nomes de Kalai e Smorodinsky, além do trabalho de Amartya Sen na década de 1970. Além disso cabe ressaltar a seminal contribuição de Harsanyi (1955, 1956, 1975) na formalização das idéias subjacentes ao critério utilitarista de bem-estar social. 1 Roemer (1996) menciona que os filósofos costumam dizer que, quando uma pergunta fica perfeitamente clara, o interesse filosófico desaparece.

2 Os Limites do Critério de Pareto Considere o seguinte problema de Pareto max u 1 (x 1 ) x 1 ;x 2 u2 (x s.a. 2 ) u 2 x 1 + x 2 x Condicional a um vetor de recursos totais da economia, x; isso define u 1 como uma função de u 2 : Assim, fazendo variar u 2 podemos desenhar o conjunto de Pareto. Ótimo de Pareto como critério de eficiência. O critério de Pareto para alocação de recursos está sujeito a uma série de críticas. Em primeiro lugar, não inclui nenhum conceito de eqüidade, portanto alocações percebidas como bastante injustas podem ser eficientes no sentido de Pareto. Segundo, pode não oferece ordenamento ou, mais precisamente, um pré-ordenamento completo das alocações; então, pode não ser possível comparar diferentes estados da economia. De fato, pode haver infinitas alocações eficientes sem que o critério de Pareto possa servir de guia para escolha entre essas alocações. Note que s pertence à fronteira (ver figura XX), enquanto que s 0 não pertence. No entanto, não podemos dizer que s domine s 0 no sentido de Pareto. Coloquemo-nos na posição de um planejador central. Gostaríamos de ser capazes de determinar para qualquer conjunto de escolhas sociais a serem feitas qual a preferível. Se supusermos que as preferências sobre estados sociais são contínuas e exigirmos do cirtério de escolha social o mesmo, então gostaríamos de encontrar uma função W (u 1 ; u 2 ) que nos permitisse fazer escolhas no espaço U 1 U 2 : Gostaríamos também que nosso critério de agregação das preferências racionais dos agentes em um critério de escolha social racional satisfizesse alguns valores básicos. Naturalmente, a importância desses valores básicos vai variar de pessoa para pessoa. O que nós vamos mostrar mais adiante é um resultado desalentador de primeira importância: o teorema de Impossibilidade de Arrow. Aceitando os valores básicos definidos por Arrow, o que se mostra é que nenhuma regra de escolha social racional existe. Antes, porém, algumas considerações sobre a função W são necessárias. Função de Bem-estar Social de Bergson-Samuelson Vamos generalizar o problema acima. Definamos uma função ~ W (s), em que s é um estado social, cujo objetivo é representar as preferências sociais. Quando a função de bem-estar social é neutra com relação a aspectos não relacionados à utilidade dos estados, ela toma a forma de W (u 1 (s) ; :::; u H (s)) ; em que u i (s) representa as preferências do indivíduo i com relação aos estados sociais. Mas, o que é esta função de bem-estar social?

3 Uma primeira interpretação é de que ela representa as preferências do planejador (ou déspota esclarecido). Sob esta interpretação, as funções utilidade individuais ou u i () representam a percepção do planejador quanto à utilidade atingida pelo indivíduo i no estado social s; ou representam a verdadeira utilidade dos indivíduos, em cujo caso deveremos encarar a questão da comparabilidade interpessoal. Com relação à primeira interpretação, ela apresenta consistência interna, porém, pode gerar inconsistências entre o ótimo derivado das escolhas individuais e o resultado da escolha do planejador. Para a segunda possibilidade, a dificuldade conceitual diz respeito ao significado das funções utilidade u i () : Grande parte do mérito da construção de Wilfredo Pareto, em 1900, foi a percepção de que o conceito de ótimo em economia independia da capacidade de fazer comparações interpessoais semelhantes à proposta por Bentham em sua visão utilitarianista. Essa idéia, de que somente um sentido ordinal às preferências era relevante, chegou a seu ápice com a teoria de equilíbrio geral, desenvolvida por Arrow e Debreu. Ficava claro que tudo o que diz respeito à alocação de mercados poderia ser descrito com ordenamentos de preferências sobre cestas sem qualquer significado cardinal ou comparabilidade entre indivíduos. Essa idéia de ordenamento de preferências, como axioma primitivo da teoria econômica, e a consideração de que a função utilidade é meramente uma representação conveniente dessas preferências, apesar de já intuída por Pareto no começo do século XX, só ficaram perfeitamente claras na década de 1970 com os esforços dos economistas para entender os limites do teorema de impossibilidade de Arrow. Em resumo, no que concerne à capacidade de se escrever uma função de Bergson-Samuleson, como aquela proposta anteriormente, o problema é o seguinte. Se u () representa as preferências de um indivíduo, então para qualquer função estritamente crescente f (), a composição f u também representa as preferências. Se a escolha ótima, de estado social para a função W (u 1 (s) ; :::; u H (s)) é s experamos que s seja também o ótimo para W (f 1 (u 1 (s)) ; :::; f H (u H (s))) : A questão passa a ser: que tipo de função W () pode satisfazer tal propriedade? Uma segunda interpretação é de que ela captura o objetivo ético da sociedade. Mais uma vez, o problema da comparabilidade surge sob essa interpretação, e nada avançamos sem que voltemos à discussão. Uma terceira interpretação é de que a função de bem-estar social agrega as preferências individuais em uma preferência social. Neste caso, torna-se importante determinar as regras por meio das quais a agregação se dá. De fato, enquanto o debate filosófico relativo às duas primeiras interpretações se dá em torno do formato funcional de W; aqui o debate é relativo às regras de agregação. Se elas forem julgadas satisfatórias, a função delas derivadas devem ser aceitas pela sociedade. Um conjunto de axiomas tidos como razoáveis foi proposto por Arrow (19XX). O resultado foi, infelizmente, bastante negativo, como retratado no teorema de impossibilidade de Arrow, que

4 analisaremos mais adiante. O Teorema da Impossibilidade de Arrow Voltemos então ao problema de agregação de preferências. A questão é definir um conjunto de regras razoáveis para a escolha social. Arrow considerou um conjunto de estados S e H ordenamentos individuais % h definidos sobre S. Em seguida, construiu uma função de bemestar social, F, que determinaria o pré-ordenamento social, %, dos estados S para qualquer ordenamento individual, i.e., = F (f% h g h ) : Um préordenamento é definido como sendo uma relação binária completa, reflexiva e transitiva 2. Finalmente, Arrow impôs as seguintes condições adicionais: a. Domínio irrestrito (U): O domínio de F inclui todos os vetores f h g logicamente possíveis de ordenamentos individuais; b. Independência das Alternativas Irrelevantes (I): A restrição de % ao par de alternativas s 1 e s 2 é função somente da restrição das preferências individuais ao mesmo par de alternativas %j s1 ;s 2 o = F n% h j s1 ; ;s2 c. Princípio Fraco de Pareto (P): Para qualquer par fs 1 ; s 2 g se s 1 h s 2 para todo h, então s 1 s 2 ; d. Não-ditatorial (D): Não existe nenhum indivíduo h, tal que, para todos os ordenamentos individuais e para cada s 1 ; s 2 ; s i 2 S; i = 1; 2, s 1 h s 2 implica s 1 s 2. Com esses princípios gerais bem definidos e desejáveis, Arrow tentou provar um teorema que acabou sendo impossível de ser demonstrável e ficou conhecido como Teorema de Impossibilidade de Arrow. Teorema 1 Se H é finito e S tem pelo menos três alternativas então não existe uma função F satisfazendo U; I; P e D: Várias das tentativas de relaxar algumas das hipóteses do teorema de impossibilidade foram feitas. Contra-exemplos são passíveis de serem construidos em cada caso. Naturalmente, nem todas as soluções são interessantes. Afinal que consolo é saber que uma ditadura garante que o sistema de escolha social tenha as demais propriedades? Comparabilidade Interpessoal e Bem-Estar Social Para entendermos os diversos graus de comparabilidade o ponto de partida é uma função utilidade U h para cada agente h e um conjunto de transformações admissíveis dessas funções utilidades. Isto é, sendo 1 ; :::; H 2, então h U h é uma representação igualmente válida da utilidade do agente h para todo h: 2 Ver Debreu (1957).

5 Os critérios de comparabilidade e graus de cardinalidade que as funções podem adquirir são, assim, divididos conforme segue. i. Ordinalidade e não-comparabilidade (ONC): 2 é uma lista de H funções independentes e estritamente monotônicas. Este é o caso apresentado até o momento. Não há como estabelecer formas de comparação interpessoal. ii. Cardinalidade e não-comparabilidade (CNC): 2 é uma lista de H transformações afins positivas e independentes. h U h = a h + b h U h ; b h > 0 8h: Este caso representa as funções utilidades de von Newman e Morgernstern (1953) para escolha sob incerteza. De novo, não é possível estabelecer qualquer forma de comparação inter-pessoal. iii. Ordinalidade e comparabilidade de nível (OLC): 2 é uma lista de H funções monotônicas estritamente crescentes idênticas h U h = U h ; independente de h: Neste caso, é possível comparar os domicílios em termos dos seus níveis de utilidade, porém não é possível comparar mudanças na utilidade. Quer dizer, pode-se dizer que uma família possui mais utilidade do que outra, não obstante não se saiba quanto mais. iv. Cardinalidade e comparabilidade de unidades (CUC): 2 é uma lista de H transformações afins positivas que só diferem nas suas constantes. h U h = a h + bu h ; b > 0 independente de h: Apesar de o nível de utilidade não ser comparável neste caso, mudanças na utilidade o são. De fato, se U h (s) U h (s 0 ) U k (s) U k (s 0 ) então h a h + bu h (s) a h + bu h s 0i = b hu h (s) U h s 0i b hu k (s) U k s 0i h = a k + bu k (s) a k + bu k s 0i : Isso é suficiente para determinar o valor da adoção de algumas políticas públicas. Ainda assim, alguns critérios de justiça social podem não ser satisfeitos aqui (ver, por exemplo, Hammond, 19??). v. Cardinalidade e Comparabilidade Completa (CFC): 2 é uma lista de H transformações afins positivas independentes. h U h = a+bu h ; b > 0 e a independentes de h: vi. Escala de Razão (CRS): 2 é uma lista de H transformações lineares positivas independentes. h U h = bu h ; b > 0 independente de h: mesta última é importante para análise de pobreza. Um dos aspectos que queremos enfatizar aqui é que, subjacente a esse resultado, está a idéia de não-comparabiliade ordinal 3. De fato, comparabilidade ordinal em nível é suficiente para quebrar o resultado negativo de 3 Não-comparabilidade cardinal e não-comparabilidade são equivalentes quando U e I são também impostos, portanto o que vamos falar sobre ONC vale também para CNC.

6 Arrow. Ou seja, a forma como queremos ler o teorema de Arrow é dizendo que, se supusermos um nível mínimo de informação sobre as preferências, i.e., não-comparabiliade ordinal, então a única função de bem-estar social possível é aquela que representa uma ditadura. Há duas ressalvas, porém, a serem feitas a essa interpretação. Em primeiro lugar está a idéia de domínio irrestrito. Por que considerar ordenamentos sobre estados sociais que nada têm a ver com ambientes econômicos naturais. Por que não podemos nos restringir a ambientes em que, por exemplo, os ordenamentos são crescentes no consumo de bens? Em segundo lugar, por que a justiça distributiva deve estar tão intimamente ligada às preferêncais individuais? Suponha que a representação democrática (os postulados de Arrow procuram representar escolhas sociais que respeitem um processo democrático) leve à opressão de minorias. Esse é um critério de justiça razoável? Além disso, existe a possibilidade de que as preferências (no sentido de preferêncais tais quais representadas pelas escolhas) não representem os verdadeiros interesses dos indivíduos, quem sabe por falta de informação. Para a primeira ressalva podemos tentar reescrever o problema proposto por Arrow em um ambiente econômico e ver até onde avançamos. Para o segundo, a questão talvez seja ainda mais conceitualmente complexa e uma teoria sobre o que sejam os interesses precisa ser desenvolvida. Outros Critérios: Igualitarismo, Eqüidade Eqüidade Vertical, Eqüidade Horizontal Os conceitos de equidade horizontal e equidade vertical, dizem respeito, respectivamente, a como tratar os iguais e como tratar os desiguais. Mais precisamente, no primeiro caso julgamos qual a forma correta de tratar pessoas que são iguais em todas as características relevantes. Assim, o princípio de equidade horizontal nos diz que as pessoas que são iguais com relação a todas as características relevantes devam ser tratadas de forma igual. A questão que se coloca é, então, o que são características relevantes? Equidade vertical é ainda mais difícil de definir. Em certo sentido a questão é se é possível definir equidade vertical sem recorrer a algum tipo de comparabilidade entre as pessoas. Note que os dois conceitos de equidade não são completamente dissociados. De fato, há três interpretações diferentes sobre a forma como os dois conceitos se relacionam. Primeiro há a idéia de que equidade horizontal nada mais é do que uma consequencia de maximização de bem estar (além de convexidade das preferências). Essa idéia não é absolutamente correta, já que mesmo no caso de preferências idênticas, o formato da fronteira de Pareto pode ser tal que seja ótimo tratar diferente os iguais. Segundo há a idéia de que equidade é uma idéia independente a ser buscada junto com a maximização de bem-estar. Finalmente há a visão negativa de equidade horizontal em que esta aparece como garantia contra arbitrariedades do estado. Neste caso, estabelece-se um critério lexicográfico entre equidade e

7 maximização de bem-estar. Preferências Sociais e Alocações Implementáveis Vimos que a escolha de um critério de justiça social não é um assunto tão simples de ser resolvido. Somos, porém, ainda mais ambiciosos já que desejamos não somente obter um critério capaz de nos permitir hierarquizar estados sociais, mas também que possa ser expresso como uma relação de preferências sobre utilidades individuais com propriedades de invariância com relação às transformações admissíveis dessas funções. No que se segue, adotaremos a hipótese de que o conjunto é h = U h para todo h: Ou seja, somente a transformação identidade é admissível. Neste caso qualquer função utilidade do tipo de Bergson-Samuleson é possível. Em geral, tem-se por pressuposto que a função W satisfaz o critério de Pareto, U h (^s) U h (~s) ; 8h =) W (^s) W (~s) : E quando é diferenciável, costuma-se dar ênfase ao caso @W @U h 0 e @2 W @ (U h ) 2 0: Na próxima seção vamos comentar a possibilidade de implementar o estado social s; supondo que sejamos capazes de estabelecer essa hierarquia. Isto é., subjacente a nossa análise, estará uma função de bem-estar de Bergson-Samuelson. Avaliação Crítica do Segundo Teorema de Bem-estar Social Redistribuição da alocação (transferências lump-sum) tem um papel fundamental na teoria de finanças públicas porque permite uma solução eficiente do problema distributivo. Para o segundo teorema, a hipótese de convexidade é especialmente problemática no que concerne ao conjunto de produção. Eliminam-se, dessa forma, os retornos crescentes de escala que parecem caracterizar o processo produtivo de muitos bens. Para que uma transferência seja lump sum é necessário que os domicílios não possam afetar o tamanho da transferência com mudanças em seu comportamento. Assim, uma contribuição uniforme é sempre (ou quase sempre) possível. Mas, o que permite a implementação do segundo teorema do bemestar é o uso de transferências diretamente baseadas nas características das pessoas, as quais não se alteram por mudanças comportamentais. O problema é que a maior parte das características relevantes do ponto de vista das políticas públicas não é diretamente observável, o que torna necessária a extração de uma informação, cuja revelação vai de encontro aos interesses dos agentes. Mais intreressante é uma transferência efetiva das dotações iniciais, pelas quais as dotações de alguns agentes são transferidas para outros. Nesse caso,

8 é importante que o governo possa observar essas dotações, para efetuar as transferências. Entretanto, algumas das mais importantes dotações iniciais não são observáveis, como o talento, a inteligência, etc. A alternativa para o governo seria perguntar para as pessoas quais as suas dotações iniciais e promover a transferência com base nessas informações. Naturalmente, as pessoas só falariam a verdade se isso fosse de seu interesse, o que tende a reduzir a importância prática do segundo teorema, mas define a essência do trade-off entre distribuição e eficiência. De fato, Mirrlees (1986) formaliza a idéia de que, em geral, é impossível desenhar esquemas de transferências lump-sum não-manipuláveis. Para ver isso, considere uma economia composta de agentes com preferências U h U c h 1x 1 ; :::; c h Lx L ; (1) em que a função U é idêntica para os agentes, enquanto o vetor de características c h c h 1 ; :::; ch L é dependente do agente h: Mirrlees prova que, se um bem i é normal, a utilidade é crescente no parâmetro c i na alocação ótima. Como algum bem tem que ser normal, a alocação ótima não é alcançável se depender do anúncio honesto das características pessoais, c h ; dos agentes. Teorema 2 Se a utilidade de cada agente é dada por (1), e a função de bem-estar social é dada por Z U (c 1 x 1 (c) ; :::; c L x L (c)) d (c) ; (2) em que é a função de distribuição das características dos agentes; então, o sistema de tributos lump-sum que maximiza (2) é tal que, no ótimo, ~U (c) é crescente no parâmetro c i se i for sempre um bem normal. Prova. Primeiro, notar que a função despesa do agente h é dada por E h p1 E c h ; :::; p L 1 c h ; u h : L Em seguida, como no ótimo as utilidades marginais da renda são igualadas, temos que E h u = ; 8h; já que E h u = (V y ) 1 : Assim, E h uu du p i E ui c 2 dc i = 0 =) du = i em que i é a demanda hicksiana do bem i: Concavidade da função utilidade implica Euu h > 0; enquanto normalidade de i garante i u > 0: Portanto a utilidade é crescente em c i : i u E h uu p i c 2 i dc i ;

Comentários Finais Em síntese, para que possamos fazer algo mais que identificar melhoras de Pareto, devemos introduzir formas de comparação entre as pessoas. Infelizmente, não dispomos de uma regra de comparação amplamente aceita. E talvez jamais venhamos a ter... A questão de justiça distributiva não pode prescindir da formulação das perguntas filosóficas corretas, tarefa para a qual nós, economistas, ainda precisaremos de muita ajuda. Além da questão técnica sobre o quanto de mensurabilidade e comparabilidade deve ser aceito está a questão ética de que a escolha entre essas funções é em última análise uma escolha entre conjuntos alternativos de valores éticos. Elas pertencem ao primeiro estágio de qualquer análise destinada a prover de significado as políticas econômicas ou instituições quando a escolha social é feita. As literaturas de economia e filosofia que seguiram em sua maior parte caminhos distintos desde Adam Smith voltam a se encontrar para conjuntamente determinarem as escolhas que devem ser feitas. O guia deste emprendimento tem sido as teorias de justiça axiomáticas que aceitam a abordagem de bem-estar social para a tomada de decisão social. Neste sentido duas grandes linhas de pensamento podems ser consideradas: a tradição utilitarista (Hume, Smith, Benthan e Mill) e a tradição contratual (Locke, Rousseau e Kant). A versão moderna destas duas tradições foi refinada e articulada nos trabalhos de Harsanyi (1953, 1955, 1975) e Rawls (1971), respectivamente. Ambos, Harsanyi e Rawls, imaginam uma posição inicial (atrás de um véu de ignorância nas palavras de Rawls) em que os indivíduos decidem em que tipo de sociedade desejam viver sem saber em que posição nessa sociedade se encontrarão. Ambos, portanto imaginam uma situação de escolha sob incerteza. A solução de Harasnyi é bastante simples. Sem outra informação, o melhor que se pode supor é uma probabilidade idêntica de ser qualquer indivíduo, o que dá uma função objetivo X i 1 N u i (x) ; ou seja, utilitarista, já que o estado social x é preferido ao estado social y se e só se X i u i (x) X i u i (y) : Rawls rejeita a posição de Harsanyi. Primeiro rejeita a idéia de que qualquer probabilidade possa ser atribuída na posição original. Segundo Rawls não nenhuma base empírica para a atribuição de qualquer probabilidade, mesmo a hipótese de que todas as posições são equiprováveis. Para ele, trata-se de uma situação de total ignorância. Segundo ele, supondo que as pessoas são avessas ao risco, em total ignorância, elas ordenariam os estados de acordo com a pior situação possível em cada estado, i.e., a situação do 9

10 pior indivíduo. O estado social x seria preferível a y se e só se min fu 1 (x) ; :::; u N (x)g min fu 1 (y) ; :::; u N (y)g : Ou seja, um critério maximin. Se considerarmos o fato de que, em última análise o critério de Rawls baseia-se em aversão ao risco, veremos que seu argumento não é convincente (conf. Arrow (1973)). Aversão ao risco não é razão para eliminar o critério de Harsanyi. De fato, suponha que u i () represente as preferências sobre estados sociais para o indivíduo na posição i em um mundo livre de incertezas. Estas preferências podem também ser representadas por v i () = u i () a para a > 0: Assim, supondo como Harsanyi igual probabilidade de nascer em qualquer posição, temos W (x) = X i v i (x) X i u i () a : Como o ordenamento social somente tem significado ordinal, W (x) = (W (x)) 1=a = X i u i () a 1=a : Quando a! 1; esta função se aproxima do critério maximin.