Autoerotismo, desmentida e a cisão do Eu

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Transcrição:

Autoerotismo, desmentida e a cisão do Eu Celso Halperin 5 Resumo: A partir de uma breve revisão de conceitos, o autor questiona a existência de uma possível relação estrutural entre o autoerotismo e mecanismos como a desmentida e a cisão do Eu. Palavras-chave: Autoerotismo. Cisão do Eu. Desmentida. estimulado por uma citação sobre a relativamente escassa exploração do tema do autoerotismo na obra de Freud, resolvi, na hora do debate, levantar a seguinte especulação (não exatamente com essas palavras): Não podemos imaginar que haja uma relação direta entre o autoerotismo, com seu caráter fragmentário, e a estruturação de O Dr. Avenburg, assim como fez com várias outras perguntas, pensa um pouco semanas depois, a editoria da nossa revista fez um instigante convite, quase uma provocação: desenvolver o meu questionamento daquela ocasião, explorando o tema sob a forma de um trabalho para a Revista Psicanálise. Surpreendido, resolvi algumas considerações sobre o autoerotismo, posteriormente sobre a desmentida e cisão do eu e concluo buscando estabelecer alguma relação entre eles. Se considerarmos que no pensamento psicanalítico a sexualidade humana não se realiza completamente, no sentido de nunca atingir um estado de maturidade 5 Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. 118 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015

Celso Halperin plena ou, e se entendermos também que essas características se relacionam com a presença da sexualidade infantil como um dos componentes da sexualidade das crianças e adultos, convém atentarmos para aquele funcionamento que Freud vai caracterizar como o estado sexual mais primitivo de todos: o autoerotismo. Tomando emprestado o termo utilizado anteriormente por Havelock Ellis em seus estudos sobre a sexualidade humana, Freud vai utilizar o termo autoerotismo, pela primeira vez, numa carta a Fliess em 9 de dezembro de 1899, caracterizando o autoerotismo como o estado sexual mais primitivo, cujas pulsões sexuais agiriam com independência em relação a qualquer função biológica. Assim, Freud caracteriza o autoerotismo como um estado original da sexualidade infantil, chamando também a atenção para o caráter sexual da libido, ou seja, ainda que o autoerotismo seja a forma como se manifesta originaria- com o mundo de uma forma biológica, buscando atender suas necessidades de sobrevivência. Mas, sem dúvida, é a partir dos Três ensaios, nas suas várias edições, que Freud desenvolverá o tema, enfatizando a questão do objeto, ou seja, que no autoerotismo a pulsão não é dirigida a outra pessoa, satisfazendo-se no próprio a pulsão sexual e a pulsão de autoconservação. Primariamente, a pulsão sexual não funciona de forma independente, ela apoia-se na pulsão de autoconservação, que busca atender as necessidades vitais do indivíduo. Nesse sentido, já na amamentação, a satisfação da zona erógena (pulsão sexual) estava associada à satisfação da necessidade de alimentação (pulsão de autoconservação). Ocorre que essa ligação não se perpetua. A satisfação da pulsão sexual com o objeto, primariamente apoiada na necessidade de autoconservação, logo se independizará, procurando, de forma autônoma, o prazer. E é essa independência da pulsão sexual que permitirá a busca de uma forma mais livre pela satisfação, inclusive pela forma autoerótica. Mas o que gostaria de salientar aqui, para depois incluir em uma discussão mais ampla, é a presença primitiva, desde o autoerotismo, da clivagem, isto é, da separação da pulsão sexual em relação à pulsão de conservação, na qual se apoiava na busca do objeto. Assim como Freud descreve essa clivagem nas pulsões, também vai caracterizar o autoerotismo por um estado em que as pulsões se satisfazem cada uma por sua própria conta, sem existir qualquer organização de conjunto. Ou seja, no autoerotismo há um funcionamento não integrado daquilo que se constituirá o ego. Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 119

Autoerotismo, desmentida e a cisão do Eu As zonas erógenas funcionam como que de forma isolada uma das outras, buscando sua satisfação ali mesmo, no próprio local em que se produz, cada zona independente da outra (prazer do órgão). Aqui impera o princípio do prazer. Se no autoerotismo entendemos um funcionamento da pulsão sexual de alguma forma fragmentado, Freud nos fala de um outro funcionamento, quando objeto seja o próprio corpo: É uma suposição necessária a de que uma unidade comparável ao ego não esteja presente no indivíduo desde o início; e o eu precisa antes ser desenvolvido. Todavia, as pulsões autoeróticas estão presentes desde o início, e é necessário supor que algo tem de ser acrescentado ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, Pensando no desenvolvimento do instinto sexual desde o autoerotismo até o amor objetal, passando pelo narcisismo, podemos fazer um questionamento: será que a libido, no seu funcionamento de organização autoerótica, já desvinculada da função de alimentação, mas funcionando com seu caráter anárquico, não harmônico e também sem ainda qualquer responsabilidade de integração com o mundo exterior, não teria outras contribuições psíquicas na estruturação do psiquismo além de ser ponto de passagem rumo ao funcionamento narcísico e posteriormente objetal? Vejamos: Nas Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico (1911), acompanhando Freud em sua descrição sobre o princípio do prazer e o princípio da realidade, deparamo-nos com questões fundamentais para entender a importância do autoerotismo. Em primeiro lugar, Freud chama a atenção que o processo de substituição do princípio do prazer pelo princípio da realidade não ocorre também falando do caráter não unitário do funcionamento psíquico, inclusive por estar abordando uma cisão: enquanto as pulsões do eu podem depararse com o princípio de realidade, as pulsões sexuais se separam das primeiras, buscando, sem maiores impedimentos, a sua satisfação, já que não estão regidas pelo princípio de realidade. Nesse mesmo trecho, Freud nos traz outra preciosidade, relacionando a questão da pulsão sexual e a fantasia no autoerotismo: É o continuado autoerotismo que possibilita que seja mantida por tanto tempo no lugar de uma satisfação real que demanda esforço e adiamento uma satisfação 120 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015

Celso Halperin demos pensar aqui que o autoerotismo, pelo caráter fragmentário, parcial, tendo o próprio corpo como objeto, funcionando, portanto, predominantemente no princípio do prazer, permite uma contínua e permanente atividade da pulsão sexual, alimentando e enriquecendo o aparelho psíquico pela sua profícua produção de fantasias sexuais. Desse modo, o autoerotismo, pela sua fecundidade da vida imaginativa, é um produtor e alimentador da sexualidade e da vida psíquica em todos os seus estágios, pois, como diz ainda Freud nesse ensaio: A substituição do princípio do prazer pelo princípio da realidade não implica a destituição do primeiro, mas sim a garantia da sua continuidade. Mas, retomando Freud de 1914, quando aborda a questão da passagem do autoerotismo ao narcisismo através de uma nova ação psíquica, que tanta polêmica provoca no seu esclarecimento, gostaria de uma rápida abordagem primário. Retomando a frase já citada anteriormente, Freud coloca que no autoerotismo não existe ainda uma unidade comparável ao ego, já que o corpo não é percebido até aquele momento como uma unidade integrada ao objeto da pulsão. Funcionando de forma não integrada, cada zona erógena trata de tirar prazer dela mesma (prazer do órgão), já que o corpo, o eu como um todo, ainda não é reconhecido. Somente através de uma nova ação psíquica (não vamos entrar aqui na discussão de qual seria essa ação) há uma integração do eu (ego), passando ele a ser percebido com alguma unidade factível de ser alvo do investimento libidinal. Quando há uma representação de um eu (ego) como uma unidade, podemos falar de narcisismo. Esse narcisismo é primário se considerarmos o encontro entre essa percepção de si e o investimento libidinal dos pais, e é secundário quando a libido, ultrapassado esse momento de integração do ego, se aventura em investimento em objetos externos e retorna, por algum motivo, ao próprio eu. Feitas todas essas considerações sobre a estrutura autoerótica, vamos para a segunda parte da pergunta, ou seja, tentar entender a cisão do ego e posteriormente a possível relação entre essas duas questões. Embora Freud já tratasse da cisão, ou divisão da consciência, nos seus estudos sobre histeria, a cisão do eu (ego) e o processo de desmentida são estudados a partir dos artigos Fetichismo (1927), A cisão do eu no processo de defesa (1938) e o Resumo de psicanálise (1938). Freud propõe, de forma resumida, que, frente a uma realidade intolerável para a criança, que é fundamentalmente a percepção da incompletude (castração) Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 121

Autoerotismo, desmentida e a cisão do Eu da mãe, haveria a coexistência de duas realidades contraditórias: uma parte do eu aceitaria a percepção da ausência do pênis na mãe, isto é, partindo de uma teoria infantil que supõe a presença de pênis em ambos os sexos, a criança se depararia não só com a percepção da castração da mãe, como também com o próprio fenômeno da possibilidade da castração, inclusive em si próprio. Já a outra parte do ego recusaria que haja a falta do pênis na mãe, consequentemente não aceita outra solução que não a permanência da mãe fálica, desmentindo qualquer possibilidade ao contrário. Freud demonstra que a desmentida, ou seja, a persistência dessas duas atitudes opostas e independentes uma da outra, só é possível se houver uma cisão do eu (ego). É interessante notar também que, já no trabalho de 1927, Freud chama a atenção para a presença desse mecanismo não só no fetichismo, como também em outras situações em que o eu precisa estruturar um mecanismo de defesa. Para Freud, a cisão do eu e a desmentida se dão na estruturação do Édipo. Assim, uma parte do eu que reconhece a existência da castração seguiria com o seu desenvolvimento psicossexual, enquanto outra parte, aquela que não aceita, que renega, desmente a castração, continuaria funcionando de uma forma mais primitiva. Mas de que forma? Aqui temos de pensar em alguns autores contemporâneos que poderiam ser representados por Norberto Marucco e Myrta Casas de Pereda, os quais sustentam que a desmentida seria não só um processo mais primitivo em relação ao Édipo, como também seria estruturante. Para Marucco (1998), o sujeito já chega cindido ao Édipo. O autor compreende que essa cisão se dá entre uma parte do eu que funciona edipicamente (aceitando a castração, passando pela repressão) e outra parte do eu que funciona fundamentada na preservação do narcisismo primário (falicamente, não aceitando a castração). Essa parte mais primitiva que se preserva de uma forma cindida teria sua forma estruturada pela própria libido do indivíduo, bem como pelo dos pais. Ressaltando a importância do investimento libidinal dos pais, mesmo que em função de suas próprias demandas narcísicas, o autor localiza aqui, no narcisismo primário, a estruturação da cisão e da desmentida. É através desse mecanismo da desmentida que a criança buscará manter a estrutura narcísica primária (ou seja, não aceitando a castração e suas consequências), bem como a manutenção do narcisismo (falo) dos pais ao lado de outra parte do eu que segue com seu desenvolvimento psicossexual. Para Marucco, a desmentida se dá de forma bem mais precoce que o Édipo, já na estruturação do narcisismo primário, sob o impacto da intersubjetividade. 122 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015

Celso Halperin Casas de Pereda (1999) compreende a desmentida (tanto da castração como da ausência do outro) como um mecanismo estrutural intersistêmico. Para a quando haveria uma desmentida da ausência do objeto. Aqui, a representação desmente a ausência. A desmentida organiza o primado fálico enquanto a repressão (primária), também estrutural, implica a proibição do corpo materno. Ocorre que, para a autora, essa desmentida estrutural não provoca cisão do eu. Somente teremos essa cisão se houver a persistência dessa estrutura fora de uma cadeia simbólica a ser desenvolvida. Na desmentida estrutural não haveria uma verdadeira cisão do eu, mas estaria a dupla saber-não saber (da castração) fazendo consciente (CASAS DE PEREDA, 1999, p. 181, tradução do autor). Portanto, a desmentida se daria entre dois sistemas: o consciente e o inconsciente. A partir de tudo o que foi descrito até aqui, podemos entender que no processo de desmentida não há um funcionamento único do eu, parecendo haver duas ou mais maneiras que podem coexistir de formas muitas vezes independentes, simultâneas e paradoxais. Enquanto Freud coloca essa estrutura em termos edípicos, Marucco trabalha em termos de narcisismo primário (eu ideal) e Casas de Pereda fala em uma desmentida estrutural, a partir de uma cisão inconsciente/consciente. Chegamos então no objetivo do trabalho, que seria retomar a pergunta original. A desmentida não poderia estar assentada na cisão natural do eu a ser formado, ainda não integrado, próprio do autoerotismo? Vimos que o autoerotismo se caracteriza por um funcionamento de um eu naturalmente ainda bastante fragmentado, não integrado. Há uma separação entre a pulsão sexual e a pulsão de autoconservação, bem como da própria estrutura do eu, que atinge somente satisfações isoladas (prazer do órgão), sem um funcionamento mais harmônico. Esse período, rico na produção da vida imaginativa, seguirá como um produtor, fornecedor de fantasias sexuais por toda a vida, já que o princípio do prazer, próprio do funcionamento do autoerotismo, jamais será completamente destituído pelo princípio da realidade. Pois bem, se, em termos da persistência das fantasias sexuais por toda a vida, que esse mesmo autoerotismo preservado não se manifestaria também pela caso, frente às duras realidades (castração) quando essas parecem intoleráveis? Ou seja, não é a desmentida, tal como as fantasias sexuais, a manifestação clínica, a comprovação de que o funcionamento autoerótico não integrado se preserva Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 123

Autoerotismo, desmentida e a cisão do Eu normalmente na vida psíquica, ainda que novos padrões de funcionamento sejam alcançados? Nesse sentido, a possibilidade de usar o recurso da desmentida não só seria fundamentado na presença da estrutura autoerótica durante toda a vida, como tenderia a estar disponibilizado para um funcionamento psíquico simultâneo a um contínuo processo de integração do eu, através do narcisismo e das relações objetais. Self-eroticism, disavowal and splitting of the Ego Abstract: From a brief review of concepts, the author questions the existence of a possible structural relationship between the self-eroticism and mechanisms such as disavowal and the splitting of the Ego. Keywords: Disavowal. Self-eroticism. Splitting of the Ego. Referências CASAS DE PEREDA, M. Entre la desmentida y la represión. In:. En el camino de simbolización. In:. Obras psicológicas completas. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1977. p. 377-378.. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In:. Obras psicológicas completas. v. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1972. p. 123-252.. (1911). Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico. In:. Obras psicológicas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2004.. (1914). À guisa de introdução ao narcisismo. In:. Obras psicológicas de S. Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 2004, p. 95-131.. (1927). Fetichismo. In:. Obras psicológicas de S. Freud. v. 3. Rio de Janeiro: Imago, 2007. p.159-170. 124 Psicanálise v. 17 nº 1, 2015

Celso Halperin. (1938). A cisão do eu no processo de defesa. In:. Obras psicológicas de S. Freud. v. 3. Rio de Janeiro: Imago, 2007. p. 171-179. Cura analítica y transferência: de la represión a la desmentida. Buenos Aires: Amorrortu, 1998, CELSO HALPERIN Rua Mostardeiro, 157 / 905 90430-001 Porto Alegre RS Brasil e-mail: halperin@uol.com.br Psicanálise v. 17 nº 1, 2015 125