CONSTRUINDO CASTELOS SOBRE ORVALHO, BRINCAM CRIANÇAS E POETAS Irmgard Birmoser de Matos Ferreira 1 Apresento aqui algumas reflexões sobre aspectos presentes na experiência do brincar que me parecem merecer especial atenção. Para tal, conto com o auxílio de D. W. Winnicott e de um poeta que tem o dom de construir imagens e colocar em palavras questões do cotidiano, Manoel de Barros. No poema O menino que carregava água na peneira, de (1999), em poucas palavras, Manoel de Barros nos apresenta tanto a experiência de fazer poesia como também o brincar de uma criança. Brincando com palavras, o autor estabelece um surpreendente encontro de realidades aparentemente incompatíveis, o que ele chama de desencontro da palavra com a ideia, como uma maneira de expressar algo que ele experimenta. Desconstruindo o sentido original das coisas, o autor poetiza, nos apresentando o mundo de forma singular. Não é o fato real, objetivo, observável e palpável que importa - sabemos que, de acordo com a lógica, peneira não tem como conter a água, não temos como criar peixe no bolso ou fazer pedra dar flor. Nas também não se trata de uma apresentação de sua realidade subjetiva, na qual não haveria um reconhecimento do externo ou do não-eu. Em suas imagens poéticas, ambas estão presentes - tanto a realidade subjetiva quanto a realidade objetiva coexistem de maneira particular. O poeta estabelece uma desconstrução do sentido original de uma peneira e um novo sentido lhe é atribuído, sendo revelado no decorrer do poema. Winnicott (1971) nos ensina que o bebê faz parecido quando toma uma fraldinha, um pedaço de cobertor ou qualquer outro objeto do mundo, dando a ele um sentido pessoal. A fralda deixa de ser fralda para se tornar a mãe, o próprio bebê e muito mais. Trata-se da experiência da ilusão de que a mãe, o seio, o modo como que é tratado são gerados pelo bebê, que neles encontra o que cria, estabelecendo um senso de unidade mãe-bebê. Este senso de unidade depende da possibilidade de o bebê desconstruir o sentido original de objetos que lhe são apresentados, estabelecendo assim um sentido pessoal, a que Winnicott chama de ilusão. Ser permitido ao bebê recriar o mundo torna-se a mais preciosa matéria-prima do brincar, experiência que ocorre em uma terceira área de experiência humana, um lugar onde vivemos que não corresponde nem à realidade interna nem à externa, mas ao 1 Psicóloga clínica, mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP), professora no curso Um Percurso na Obra de Winnicott no Instituto Sedes Sapientiae, membro do Departamento de Criança do Instituto Sedes Sapientiae e do Espaço Potencial Winnicott, participante do Laboratório de Estudos de Transicionalidade (LET/PUC SP) e do PROFOCO Programa de Formação Continuada com o Prof. Dr. Gilberto Safra E-mail: irmgard-medi@uol.com.br
campo do espaço potencial, no qual existe um experienciar em outro sentido de realidade e no qual o subjetivo e objetivo são vividos ao mesmo tempo; um campo onde tudo é e não-é. No campo da ilusão tratamos de experiências paradoxais - aqui, a comunicação não tem como ser totalmente revelada. No texto de Manuel de Barros (1999) fica claro como peneira é e não-é peneira, a pedra tem vida, os vazios são maiores e até infinitos. O brincar aqui se refere a algo além da simples experiência prazerosa ou de uma atividade meramente lúdica. Trata-se de um brincar que é fruto de contínuas experiências de criar aquilo que lá está para ser encontrado, de maneira que, passo a passo, se constitua a experiência que estabelece o amadurecimento humano. Existe algo nesta experiência que se apresenta de forma misteriosa, que encanta e sobre a qual costumamos ter muita dificuldade de falar. É exatamente este aspecto misterioso que abordo aqui, pois penso ser uma questão sobre a qual pouco nos atemos quando nos referimos ao brincar. Sendo o brincar caracterizado por experiências paradoxais e que, portanto, não têm como ser totalmente explicitadas, dizemos que ele mantém um aspecto que é mistério. Winnicott (1990) nos ensina que chegamos ao mundo com infindáveis potencialidades que nos são dadas. Esclarece ainda que, ao nascer, vivemos em um estado de não-integração, um estado em que, do ponto de vista do bebê, ainda não existe um antes e um depois, um interno ou externo. Trata-se de um estado a-temporal e a-espacial, em que o infinito e o finito, o tudo e o nada são vividos como a mesma coisa. O infante precisa viver uma série de experiências de confiabilidade e de continuidade de ser, nas quais é atendido de acordo com seu ritmo e necessidades, para que, então, possa estabelecer certas integrações, iniciando o processo de constituição de si mesmo. Esta, porém, não é linear e não se dá em um determinado momento, sendo este um processo que ocorre ao longo de toda a vida. A constituição do ser é um eterno devir, um eterno vir-a-ser. E, mais, Winnicott esclarece que o que somos capazes de integrar no decorrer de toda nossa existência é sempre uma ínfima parte de nossas potencialidades. Ao nascer somos um todo não-integrado, ele diz. O todo corresponde ao infinito e às infinitas potencialidades que abrigamos. De um todo não-integrado alcançamos o que é possível de ser integrado de forma singular, sendo este um dos grandes desafios que nos é colocado; a eterna tarefa de buscarmos a singularização de toda humanidade.
Seguindo o pensamento de Winnicott (1971) 2, compreendemos que, originalmente, somos silêncio, um todo não-integrado e, portanto, partimos de uma plenitude potencial. Quando tudo vai bem, tanto o amadurecimento quanto o brincar são acontecimentos naturais, fazendo parte da continuidade do ser. Todo amadurecimento humano é compreendido como um trânsito em-direção-a, um eterno porvir, sendo eterna obra inacabada. De um estado de não-integração emerge um gesto que é fruto de uma necessidade de dar existência a uma potencialidade em devir. Brincar é necessidade de estabelecer um gesto de acordo com a criatividade e espontaneidade do viver, uma maneira viva de estar no mundo. Ao brincar, a criança descobre o mundo a sua maneira, descobre a si mesma, cria consciências de si e do outro, constituindo o próprio self rumo ao amadurecimento. Nesta perspectiva, não podemos deixar de incluir a compreensão de estados de não-integração que compõem a paradoxalidade desta experiência. Precisamos sempre lembrar que é entre o integrado e o não-integrado que vivemos a experiência de ilusão, do brincar ou de qualquer experiência artística e cultural. O não-integrado em nós é muito maior do que costumamos imaginar; existe uma infinitude que sempre nos acompanha, sempre temos algo para além de nós a alcançar, o além do constituído, que pode estar tanto dentro como fora, impondo ao ser vivo importantes aberturas. Ou seja, o ser humano é um ser de dupla abertura, uma para o interno e outra para o externo, ambas transcendendo à possibilidade de apreensão, ambas fazendo parte de toda experiência humana. Cada uma delas remete o ser humano a experiências sem fim. Entre um infinito e outro, o self vive momentos constitutivos. São momentos de passagem entre o saber e o não-saber, o constituído e o não-constituído, em constante oscilação, estabelecendo uma unidade temporária, que paradoxalmente mantém uma linha de continuidade de ser em cada um de nós, em um eterno processo de vir a ser. Momentos de saber e de ignorância, ignorância interna a nosso respeito e ignorância a respeito de facetas do mundo. E é exatamente neste lugar entre infinitos que acontece o brincar, uma experiência e lugar entre. Em decorrência, o self mantém e aloja um infinito dentro e fora de si. 2 É interessante observar que a grande questão para Winnicott (1971) não é tanto saber se um símbolo com determinado sentido foi criado. Ele constantemente ressalta a importância do uso da experiência no tempo, o trânsito, o progresso em direção ao experienciar, o poder se dirigir em direção a, o movimentar-se, o processo que mantém e enriquece a continuidade do existir.
O infinito interno é um núcleo isolado do self que jamais é de fato alcançado (Winnicott, 1963). Sem dúvida, por definição, o infinito não tem como ser abarcado, sendo compreendido como tudo o que ainda não encontrou presença e encontro humano. O infinito externo é tudo que está no mundo, mas ainda não alcançou o estatuto de realidade compartilhada; dois infinitos a serem explorados e experimentados em busca de integração, estabelecendo possibilidades de colocar experiências sob o domínio do eu. Do infinito, do vazio, do silêncio emerge um gesto, uma ação que busca encontrar o que cria, paradoxalidade a ser aceita e não questionada, ilusão que colore o mundo de maneira singular. Algo que é infinito também nos remete ao grandioso, ao sensível e ao pré-verbal. O infinito não tem como ser emoldurado, definido, determinado, vai sempre além, escapa, é invisível. E, sem possibilidades de constituir imagens, é também indizível. É preciso inventar, é preciso criar. Tudo que não invento é falso, diz Barros. Ou seja, existe uma dimensão da experiência humana que apenas tem como ser inventada, entre o é e o não-é. A ilusão para Winnicott trata exatamente desse aspecto. O bebê apenas sente como sendo real o que é por ele criado. Ele precisa encontrar o que cria. Como já foi dito, uma fralda deixa de ser fralda, passa a ser mãe, o próprio bebê e muito mais. Quando compreendemos a presença do infinito no brincar, como uma dimensão que o acompanha, podemos também compreendê-lo como um momento mágico. O brincar sempre mantém em si algo que escapa, é invenção/criação constante... Transcende, pois, qualquer possibilidade de interpretação. O brincar mantém um mistério que lhe é próprio, próprio do indizível, estimulando eterna investigação. Safra nos diz: Frente a alguém existe sempre um mistério que não tem como ser apreendido; por mais que possamos nos aproximar, há sempre uma área que o mistério encobre. O que vivemos na mais profunda intimidade jamais tem com ser colocado em palavras. Winnicott também chama a atenção para a sensibilidade inerente a experiências que carregam em si o indizível. Em Brincar e Realidade (1971), ressalta que todo ser humano vive momentos em que não tem como verbalizar determinadas experiências; sempre existem algumas que, por fazerem parte de fenômenos muito primitivos na vida de uma pessoa, dificilmente chegam a ser colocadas em palavras; e quando o são, só podem ser expressas através da poesia. Talvez esta seja a maneira que o ser humano encontrou para falar a respeito de experiências fundamentais, de um período de vida pré-verbal, um momento de
vida muito delicado, em que o bebê ainda é muito frágil. A poesia pode ser, então, como diz Winnicott, uma forma adulta de articulação e (re)apresentação de algo que precisa constituir-se e, para tal, precisa manter o cuidado necessário da fase inicial de vida. Nessa perspectiva, tanto o brincar quanto a poesia só podem ocorrer em um campo de confiança, no qual não há lugar para insultos ou ofensas à delicadeza do que é pré-verbal. Estes são aspectos que chamam atenção no menino que carregava água na peneira. Desde pequeno, ele gostava mais do vazio do que do cheio. Tornou-se poeta. Barros (1999) se interessa mais em explorar novas experiências, buscando imagens através das quais se expressa, do que pelo que já tem constituído em si, o que já compreende ou sabe. Para ele, mais importa o brincar com palavras do que pensar conceitos que elas apresentam. Brincando ele redescobre sentidos sobre fenômenos humanos, constitui novas facetas de si e do humano em todos nós. A partir de suas experiências com as coisas do mundo, vai apresentando suas fascinantes viagens nas grandezas do ínfimo. Em um de seus trabalhos (1998), explicita que se sente mais mudado por seus textos do que por seu existir. Brincar com palavras é para ele criar e a mais genuína experiência de seu viver. Quando uma criança de fato brinca, ela se encontra em um estado muito especial. Presentifica com delicadeza e força toda a sua alegria, vibração, vivacidade encontrando oportunidade de atualizar, expandir e aprofundar os mais variados sentidos de seu ser. Constitui-se a partir de silêncios, de longes que não podem ter muita transparência sem gerar importantes desilusões, encapsulamentos e empobrecimento. A partir dos longes, tem oportunidade de apresentar o que constitui como real, conquistando a novidade, transformando-a em destino e em algo familiar. Tendo a necessária sustentação, existe neste experienciar uma evolução que se processa natural e espontaneamente, em silêncio e aos poucos. Há muito mais que pode ser falado a respeito do brincar. Mas espero ter esclarecido de onde vem toda vibração, alegria, mistério e encanto dessa experiência. É do nada, infinito que reverbera em todo ser, que emergem forças de expressão da criatividade original de cada um de nós. Deixo então duas questões que há muito me inquietam: Que futuro e destino teremos se nos deixarmos ser pressionados, não tendo mais tempo e possibilidade de carregar água na peneira? O que será da humanidade se as crianças, jovens e adultos deixarem de ter espaço para brincar?
BIBLIOGRAFIA: BARROS, M. (1998). Retrato Do Artista Quando Coisa. Record. BARROS, M. (1999). O menino que carregava água na peneira. In Exercício de ser Criança. Salamandra. WINNICOTT, D. W. (1963). Comunicação e Falta de Comunicação Levando ao Estudo de Certos Opostos. In O Ambiente e os Processos de Maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. WINNICOTT, D.W. (1971). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. WINNICOTT, D.W. (1990). Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago, 1975.