1 Interface de pesquisa entre música e psicologia: diálogos possíveis acerca da constituição do sujeito e dos processos de criação no fazer musical Patrícia Wazlawick UFSC patriciawazla@gmail.com Kátia Maheirie UFSC maheirie@gmail.com Resumo: Apresentamos brevemente aspectos de uma pesquisa de doutorado realizada na área da psicologia histórico-cultural, que tece uma interface de discussão e produção de conhecimento entre esta área e área da música. O objetivo foi investigar os processos de criação no fazer musical como atividade mediadora na constituição do sujeito. A fundamentação teórica baseia-se nos aportes teóricos do psicólogo russo Vygotski e seus interlocutores, sobre processo de criação, atividade criadora e relação estética, utilizando também os estudos do filósofo russo Mikhail Bakhtin a respeito da criação/produção estética, e relação entre ética & estética. A música é entendida como sendo uma linguagem afetivo-reflexiva, como trabalho acústico e como atividade humana situada em contextos. Os sujeitos de pesquisa foram dois músicos compositores, integrantes de um duo de violões. O método utilizado foi história de vida por meio de entrevistas com roteiro norteador, observação e diário de campo; foi realizada análise do discurso. Palavras-chave: interface de pesquisa música e psicologia, constituição do sujeito, processos de criação no fazer musical, relação estética. 1. Introdução Este texto apresenta de modo breve alguns aspectos teóricos produzidos como conhecimento na pesquisa de doutorado em psicologia intitulada Música e vida em criação: dialogia e est(ética) na música de um duo de violões. A pesquisa integra o Programa de Pós- Graduação em Psicologia (mestrado e doutorado) da Universidade Federal de Santa Catarina, Área de Concentração 2 Práticas sociais e constituição do sujeito, na Linha de Pesquisa 1 Relações Éticas, Estéticas e Processos de Criação. A fundamentação teórica baseia-se principalmente nos aportes teóricos do psicólogo russo Lev S. Vygotski, de acordo com o materialismo histórico e dialético, e seus interlocutores, sobre os processos de criação, atividade criadora e relação estética, utilizando, também, os estudos do filósofo russo Mikhail M. Bakhtin a respeito da criação/produção estética, e da relação entre ética & estética. A música é entendida, neste trabalho, como sendo uma linguagem afetivo-reflexiva (MAHEIRIE, 2001, 2003), como trabalho acústico (ARAÚJO, 1994), e como atividade humana situada em contextos (STIGE, 2002). Portanto, é um trabalho que faz uma interface teórica entre conhecimentos da área da psicologia, na abordagem sócio-histórica e histórico-cultural, junto a conhecimentos da área da música, e que contribui para a produção de diálogos entre os diversos conhecimentos das áreas de psicologia, música e educação musical, com reflexões teórico-medotológicas acerca da música/atividade musical e seus processos de criação na constituição do sujeito.
2 O objetivo principal da pesquisa foi investigar os processos de criação no fazer musical como atividade mediadora na constituição do sujeito. Dessa forma, a tônica principal da pesquisa são as relações possíveis entre a constituição do sujeito e a atividade criadora, mais especificamente sujeitos músicos compositores. Os sujeitos de pesquisa foram dois músicos, integrantes do duo de violões Comtrasteduo, que trabalham com composição musical, são instrumentistas e educadores musicais. Um deles é natural do Rio Grande do Sul e o outro do estado de São Paulo, respectivamente com 33 e 36 anos de idade. Trabalham com aulas de música em escolas particulares e/ou públicas, ensinando a prática de instrumentos tais como violão, guitarra e baixo, além de aulas de teoria musical, e formação de bandas. O método, de orientação qualitativa, esteve pautado na configuração de histórias de vida (QUEIROZ, 1988) / histórias de relação com a música (WAZLAWICK, 2004), sendo utilizado o emprego de entrevistas abertas com roteiro norteador para a apreensão das informações. Também foram realizadas observações de ensaios e momentos de criação musical dos músicos registradas por meio de diário de campo, bem como registro audiovisual de quatro concertos dos músicos. Trabalhou-se com análise do discurso, a partir das contribuições de Bakhtin e seus interlocutores. 2. Interfaces de pesquisa: para compreender a constituição do sujeito e a criação musical Em relação à psicologia, como sabido, muitas são as abordagens e correntes de pensamento que orientam e fundamentam epistemológica e teoricamente os saberes deste campo de atuação e de conhecimento. Nosso olhar nesta interface de pesquisa entre psicologia e música está pautado pela psicologia sócio-histórica e histórico-cultural, tal como destacado anteriormente. E com este background buscamos diálogos junto às áreas da composição, da educação musical, e também da musicoterapia, no que diz respeito ao interlocutor música. Nesta pesquisa de doutorado discutimos a constituição do sujeito músico em base aos processos de criação no fazer musical que o mesmo implementa. Segundo Zanella (2010), os processos de criação, seja nas múltiplas linguagens artísticas, ou nos mais diversos âmbitos de vida, (re)criam seus artífices e seus modos de vida. Assim como o sujeito está em constante constituição um processo contínuo, inacabado, em constante movimento o criar se faz, pelas próprias ações dos sujeitos, como uma atividade constante e ininterrupta. Estudar a criação humana e seu(s) processo(s) é o interesse da pesquisa. Este tema se viabiliza, se concretiza na música, ou seja, estudar o processo de criação musical, que
3 lógicas existem e são possíveis ali. Ao contemplar o estudo sobre o tema da criação musical, estamos falando das possibilidades da criação humana, mediada/ou traduzida, é óbvio, pela música, o que pode aproximar-se e assemelhar-se de tantas outras formas de criação humana, seja nas mais diversas linguagens artísticas, seja no cotidiano, seja nas áreas científicas e técnicas. Assim, ao estudar o(s) processo(s) de criação musical estudamos como o sujeito agente deste processo não apenas produz música, mas produz a si mesmo. A dialética fundamental: o sujeito que enquanto trabalha, age, faz, produz e constrói a si mesmo; o sujeito produto e produtor do contexto e de suas atividades, de seu trabalho. E qual é (será) o sujeito possível após a objetivação de toda esta atividade. Portanto, estudamos o sujeito músico e seu métier os processos de criação no fazer musical situado em seus contextos de vida e de trabalho, ou seja, as atividades e os fazeres musicais-em-contexto (STIGE, 2002). Constituição do sujeito, conforme Zanella, é um conceito:...que dá visibilidade ao movimento incessante de vir-a-ser que caracteriza qualquer pessoa (...). Ao mesmo tempo, falar do sujeito significa conceber a dupla dimensão do ser humano, por um lado subordinado às determinações da sociedade, circunscrito a um tempo e um lugar específicos, e, por outro lado, fundador de novas possibilidades, tanto para si como para o coletivo. Pessoa submetida e que resiste, que reproduz e que inventa modos de ser (ZANELLA, 2007a, p. 486). O sujeito, na compreensão de Bakhtin (2003) e também na de Vygotski (1929/2000), é um sujeito que está em contínua relação e se constitui na/pela linguagem e os discursos, em permanente relação/interação entre o eu e o outro discursivos. É um sujeito que dialoga com as diferentes vozes sociais de seus pares, de seus outros. É um sujeito concreto, contextualizado em espaços-tempos sociais-históricos-culturais. É, fundamentalmente, um sujeito constituído pelas palavras do outro; é visto através dos olhos do outro; realiza-se no outro (...). Trata-se do permanente diálogo entre um eu que, por sua vez não é solitário, mas solidário com todos os outros que com ele interage; e com todos os demais que ainda estão por vir... (KESKE, 2004, p. 12-13). Para compreender as tramas que se configuram entre sujeitos músicos, processos de criação no fazer musical, atividade criadora e relação estética, percebemos a necessidade de olhar e escutar as relações e as histórias compostas nos mais diversos momentos e contextos de vida destes próprios sujeitos. Junto disto, os significados e sentidos arranjados, construídos, desconstruídos, ressignificados, narrados, que dão vida e movimento aos processos de criação em música, que são construídos nas vivências das histórias de relação com a música, nos mais diversos momentos ao longo da vida, cursos, formação, estudos,
4 parcerias nas práticas em bandas musicais com outros músicos, enfim, as mais diversas mediações aos saberes e fazeres teórico-práticos musicais. De acordo com um dos princípios da psicologia sócio-histórica/histórico-cultural, é na atividade que o homem se constrói. Nesta pesquisa, toda vez que nos remetemos ao termo atividade, estamos entendendo-o da seguinte maneira: a atividade desempenha a função de situar o homem na realidade objetiva e de transformar esta em uma forma de subjetividade (LEONTIEV, 1978, p. 74, apud CAMARGO e BULGACOV, 2007). Toda atividade humana, qualquer que seja a estrutura que tome, é sempre uma atividade inserida no sistema de relações sociais. Ela se realiza por meio de instrumentos que são sociais e se desenvolve mediante a cooperação e a comunicação dos homens. É, portanto, por meio da atividade que o homem se apropria da prática histórico-social, da experiência da humanidade (CAMARGO e BULGACOV, 2007, p. 193). A música, em nosso olhar, é compreendida como uma linguagem reflexivo-afetiva (MAHEIRIE, 2001, 2003), portanto,...um modo de sentir e pensar (HINKEL, 2010, p. 157), fruto de um processo criador em que o sujeito articula percepção, imaginação, reflexão, sentimentos e emoções. Enquanto produz esta objetividade, produz a si mesmo, em um movimento de (re)criar a si como sujeito, a partir do já existente, transformando-os. De acordo com Maheirie (2001) a música é vista como um processo, uma forma de sentir e pensar, criando emoções e inventando linguagens (p. 38). Nesse sentido, a música é uma subjetividade objetivada, traçada por sujeito(s) que inscreve(m) nela sua(s) marca(s), sua presença, articulada no plano da afetividade, situada historicamente e compreendida como sendo também um trabalho acústico (ARAÚJO, 1994; MAHEIRIE, 2003). A música é atividade humana, trabalho, produto artístico-estético e processo prenhe de relações estéticas. Ela é uma forma artística de expressão, que sempre se constitui no diálogo e nas trocas com a cultura e a sociedade, das quais historicamente ela emerge, é engendrada e construída pela ação de sujeitos. O sujeito no encontro e confronto com diferentes vozes se apropria da cultura ao passo em que é constituinte dela, portanto, na trama dessa relação existem inúmeras relações sonoro-musicais, estéticas e cognitivas entre tantas vozes (de sujeitos e de músicas), que ao se articularem fazem com que a música seja constituída por uma polifonia de vozes. 3. Considerações Finais Estudamos nesta pesquisa os processos de criação como atividade mediadora na constituição do sujeito, estudo este pautado na existência e no acontecer de um duo de violões
5 formado por dois jovens músicos. A tese construída nesta pesquisa foi de que podemos pensar e conceber a música e seu processo de criação como uma construção dialógica entre as várias vozes musicais presentes na história de um sujeito, entremeadas ao processo de criação da própria vida, culminando em uma est(ética) de si (WAZLAWICK, 2010). Como resultados tecemos algumas categorias que por sua vez são produções de conhecimento da pesquisa, e que permitiram a objetivação da tese anunciada no parágrafo acima. Estas categorias são: 1) Vozes dos próprios músicos sobre seu processo de criação no fazer musical: os sentidos do(s) processo(s) de criação musical; 2) Vozes dos músicos que dialogam entre si para compor música: musicalidades em diálogo & a dialogia entre musicalidades; 3) Acontecências sonoras entre muitas vozes: percursos musicais nas histórias de vida dos músicos; 4) Uma voz que se produz de uma síntese dialógica de duas e muitas outras vozes: a(s) música(s) do duo; 5) Existência em devir: projetos atuais, projetos de futuro e o reviver dos sentidos. O(s) processo(s) de criação estudados e que se apresentaram a nós, no contínuo fazer desta pesquisa junto aos músicos investigados, são contemporaneamente processos de criação da(s) música(s) e das vidas desses sujeitos, onde um não existe sem o outro. O criar e fazer música é o objetivo de vida desses jovens músicos, ações estas que são pautadas pela análise da música-em-contexto, envolvendo tantos empreendimentos e atividades criadoras que o fazer musical requer. Estes músicos, como se fez ver nesta investigação são artífices, são sujeitos criadores de novas realidades objetivadas em música e em si mesmos que produzem, fazem, objetivam novas estéticas impulsionados por uma ética, na qual é possível identificar que em movimentos dialógicos/dialéticos est(éticos) junto a atividades criadoras o sujeito (re)cria a realidade, suas relações e a si mesmo (WAZLAWICK, 2010). Daí se faz a (re)invenção da vida. Este é o maior demarcador ético/estético a orientar a ação humana: a invenção da existência, no qual o sujeito se constrói e se modifica profundamente neste processo, sempre por meio do seu fazer, da sua atividade criadora junto a tantas alteridades. A música do Comtrasteduo não só na relação dialógica entre os dois violões, mas em sua própria objetivação e trama sonoro-musical produz uma singularidade que é composta de uma pluralidade, de uma diversidade sonora, já sintetizada em cada um dos músicos (mas em constante re-criação), que imediatamente remete a tantos gêneros, vozes, sons de tantos músicos e épocas musicais, presentes no agora, ou seja, em sua música, transformando esta multiplicidade. A música do Comtrasteduo é uma música feita de músicas. Uma música do mundo e para o mundo repleta de pesquisa sobre técnica, ritmos e possibilidades de
6 execução no instrumento. Moda de viola, fandango, baião, pagode sertanejo, celta, galega, erudita, salsa, samba, samba de partido-alto, flamenco, bossa-nova, jazz, folia, carimbó, milonga, capoeira, xaxado, são apenas vozes sonoro-rítmico-musicais iniciais com as quais estão compondo, pois para o devir ainda muita coisa será possível, e dependerá de suas ações, suas escolhas e decisões no decorrer da vida, assim como de todos os acontecimentos sóciohistórico-culturais de seus contextos. Referências ARAÚJO, Samuel. Brega, samba, trabalho acústico: uma contribuição à etnomusicologia urbana. Trabalho apresentado ao Seminário As culturas urbanas ao final do século XX, p. 1-14, Lisboa, 1994. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CAMARGO, Denise de; BULGACOV, Yara L. M. Por uma perspectiva estética e expressiva no cotidiano da escola. In: ZANELLA, Andréa V.; MAHEIRIE, Kátia; COSTA, Fabíola C. B.; SANDER, Lucilene; DA ROS, Sílvia Z. (Orgs.). Educação estética e constituição do sujeito: reflexões em curso. Florianópolis: NUP/CED/UFC, 2007. p. 183-198. HINKEL, Jaison. Brown e sua relação com a música: à procura do protesto bonito e inteligente. In: ZANELLA, Andréa V., MAHEIRIE, Kátia. (Orgs.). Diálogos em psicologia social e arte. Curitiba: Editora CRV, 2010. p. 157-169. KESKE, Humberto Ivan. Dos sujeitos enunciadores e seus contextos dialógicos: Bakhtin e seu outro. Trabalho apresentado no IV Encontro de Pesquisa da Intercom XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Porto Alegre, 2004. Disponível na internet. MAHEIRIE, Kátia. A música como foco nas pesquisas: alguns acordes na partitura da psicologia social. In: ZANELLA, Andréa V., MAHEIRIE, Kátia. (Orgs.). Diálogos em psicologia social e arte. Curitiba: Editora CRV, 2010. p. 39-49. MAHEIRIE, Kátia. Processo de criação no fazer musical: uma objetivação da subjetividade, a partir dos trabalhos de Sartre e Vygotsky. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 8, n. 02, p. 147-153. 2003. MAHEIRIE, Kátia. Sete mares numa ilha: a mediação do trabalho acústico na construção da identidade coletiva. 2001. Tese (Doutorado em Psicologia Social) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Relatos orais: do indizível ao dizível. In: VON SIMSON, Olga (Org.). Experimentos com histórias de vida: Itália-Brasil. São Paulo: Vértice, 1988. p. 14-43. STIGE, Brynjulf. Cultured-centered Music Therapy. Gislum: Barcelona Publishers, 2002. VYGOTSKI, Lev S. Manuscrito de 1929. Revista Educação & Sociedade. Trad. brasileira do russo. Campinas: Cedes, 71, p. 21-45, 2000. (Originalmente publicado em 1929). WAZLAWICK, Patrícia. Música e vida em criação: dialogia e est(ética) na música de um duo de violões. 2010. Tese (Doutorado em Psicologia) Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. WAZLAWICK, Patrícia. Quando a música entra em ressonância com as emoções: significados e sentidos na narrativa de jovens estudantes de Musicoterapia. 2004. Dissertação (Mestrado em Psicologia) Universidade Federal do Paraná, Curitiba. ZANELLA, Andréa V. Educación estética y actividad creativa: herramientas para el desarrollo humano. Universidade Psychology Bogotá (Colômbia), 6 (3), p. 483-492. 2007a. ZANELLA, Andréa V. Psicologia social... arte... relações estéticas... processos de criação...: fios de uma trajetória de pesquisa e alguns de seus movimentos. In: ZANELLA, Andréa V., MAHEIRIE, Kátia. (Orgs.). Diálogos em psicologia social e arte. Curitiba: Editora CRV, 2010. p. 29-38. ZANELLA, Andréa V., MAHEIRIE, Kátia; STRAPPAZZON, André L.; GROFF, Apoliana R.; MAXIMO, Carlos E.; SCHWEDE, Gisele. Breve retrato de algumas das muitas voltas do coração: as pesquisas do NUPRA. In: ZANELLA, Andréa V., MAHEIRIE, Kátia. (Orgs.). Diálogos em psicologia social e arte. Curitiba: Editora CRV, 2010. p. 11-27.