VOTO Nº /2012 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL 2ª Câmara de Coordenação e Revisão PROCESSO MPF nº 1.00.000.003768/2012-21 (IPL N 0065/2011) ORIGEM: PRM IMPERATRIZ / MA PROCURADOR OFICIANTE: FLAUBERTH MARTINS ALVES RELATORA: ELIZETA MARIA DE PAIVA RAMOS INQUÉRITO POLICIAL. POSSÍVEL CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA (CP, ART. 273, 1º-B, I). COMERCIALIZAÇÃO DE PRODUTOS SANEANTES SEM REGISTRO NA ANVISA. REVISÃO DE DECLÍNIO (ENUNCIADO Nº 33). AUSÊNCIA DE LESÃO AOS SERVIÇOS PRESTADOS PELA ENTIDADE AUTÁRQUICA FEDERAL. OFENSA AO BEM JURÍDICO QUE É OBJETO DA ATIVIDADE DA AUTARQUIA NÃO SE CONFUNDE COM OFENSA À PRÓPRIA ATIVIDADE DA AUTARQUIA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. HOMOLOGAÇÃO DO DECLÍNIO PARA O MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. 1. Possível crime contra a saúde pública (CP, art. 273, 1º-B, I), consistente na comercialização sem regularização de produtos saneantes domissanitários. 2. O Procurador da República oficiante requereu o declínio de atribuições ao Ministério Público Estadual, por entender que, em síntese, a conduta investigada não acarreta lesão à ANVISA, tampouco à União ou qualquer de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, bem como não há indícios de internacionalidade da conduta. 3. O bem jurídico tutelado pela norma do artigo 273, e parágrafos, do Código Penal é a incolumidade pública, mais especificamente a saúde pública. A atividade da ANVISA, de registro e fiscalização de produtos terapêuticos não é atingida pelas práticas criminosas descritas no artigo 273 e parágrafos, do CP. Ausência, pois, de ofensa a bens, serviços e interesses federais, que poderiam caracterizar a competência federal e a atribuição do MPF. 4. A exclusividade da ANVISA no exercício da atividade de registro e fiscalização dos produtos terapêuticos, medicinais ou saneantes não é suficiente para atrair a competência federal. 5. Hipótese semelhante à da atuação da ANP e do IBAMA, em que não se reconhece interesse federal na ofensa aos bens jurídicos objeto de sua fiscalização (combustíveis e meio ambiente). 6. Competência e atribuição federais que só se reconhece quando há importação ou exportação do produto. Precedentes. 7. Ausência de atribuição do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL para investigar os fatos. 8. Homologação do declínio de atribuição ao Ministério Público Estadual. Trata-se de Inquérito Policial instaurado com vistas à apuração da prática do crime previsto no artigo 273, 1º-B, inciso I, do Código Penal, cometido, em tese, pela empresa POLIMAR M. CASTRO FERREIRA, pela fabricação,
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL 2 fracionamento e comercialização de produtos saneantes domissanitários sem registro no órgão de vigilância sanitária competente (ANVISA). O Procurador da República oficiante promoveu o declínio de atribuição ao Ministério Público Estadual, sob o fundamento de que não há indícios de internacionalidade da conduta, hipótese em que se caracterizaria a competência federal, bem como não houve lesão à ANVISA, à União ou qualquer de suas entidades autárquicas ou empresas públicas. Sustentou ser a competência para o julgamento do feito, nessas circunstâncias, da Justiça Estadual (fls. 02/07). Vieram os autos à 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, para exercício de funções revisionais. É o relatório. Com razão o membro do Parquet oficiante. De fato, não há atribuição do Ministério Público Federal para investigar a fabricação, o depósito e a distribuição de produto destinado a fins terapêuticos, medicinais ou saneantes sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária ANVISA, já que tais condutas não se amoldam àquelas descritas no art. 109, inc. IV, da Constituição Federal. Nos termos daquele dispositivo constitucional, são de competência da Justiça Federal e, por conseguinte ensejam atribuição do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, os feitos que cuidam de infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas. Ocorre que as práticas tipificadas no artigo 273 e parágrafos, do Código Penal não atingem, diretamente, bens, serviços ou interesses da União, suas autarquias ou empresas públicas, mas sim os bens ou interesses tutelados pela atividade fiscalizadora de uma dessas entidades autárquicas, a ANVISA.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL 3 Reza, de fato, mencionado dispositivo legal: Art. 273 - Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais: Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa. 1º - Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado. 1º-A - Incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico. 1º-B - Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições: I - sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente; II - em desacordo com a fórmula constante do registro previsto no inciso anterior; III - sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização; IV - com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade; V - de procedência ignorada; VI - adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente. Modalidade culposa 2º - Se o crime é culposo: Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. Como se vê, o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é a incolumidade pública, mais especificamente a saúde pública 1, que não se confunde com bens e interesses da União, suas autarquias ou empresas públicas. É certo que a ANVISA, autarquia federal, no exercício de sua atividade fiscalizatória, deve zelar pela tutela desse bem jurídico, que é a saúde pública. O ato atentatório à saúde pública, porém, não implica, necessariamente, atentado a essa atividade fiscalizatória, hipótese em que, aí sim, se caracterizaria a ofensa a que se refere o inciso IV, do artigo 109, da Constituição, determinante da competência federal. 1 Confira-se nesse sentido: Alberto Silva Franco e Rui Stocco (coord.), Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, RT, 8ª ed., p. 1309; Luiz Régis Prado, Comentários ao Código Penal, RT, 2ª ed., p. 961; Cezar Roberto Bittencourt, Código Penal Comentado, Saraiva, 5ª ed., p. 912; Rogério Greco, Código Penal Comentado, Ed. Impetus, 4ª ed., p. 739.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL 4 Em outras palavras, somente se verifica a competência federal quando o crime atinge a própria atividade da autarquia federal no caso, o registro de produtos saneantes, não bastando que o objeto dessa fiscalização os próprios produtos saneantes seja atingido. Esse o entendimento que prevalece nos casos de adulteração de combustíveis, que em tudo se assemelha àquela ora sob exame. Lá, como aqui, há dois bens jurídicos em jogo: a atividade da autarquia ou os serviços por ela prestados (ANVISA e ANP) e o próprio objeto dessa atividade (os produtos terapêuticos ou medicinais e os combustíveis). E, como vem sendo reiteradamente decidido, a adulteração de combustíveis, por não atingir diretamente os interesses da autarquia (ANP), não é de competência federal. Tribunal Federal: Confira-se, de fato, o entendimento consolidado no Supremo EMENTA: COMPETÊNCIA: JUSTIÇA ESTADUAL: PROCESSO POR CRIME CONTRA A ORDEM ECONÔMICA PREVISTO NO ART. 1º DA L. 8.176/91 (VENDA DE COMBUSTÍVEL ADULTERADO); INEXISTÊNCIA DE LESÃO À ATIVIDADE DE FISCALIZAÇÃO ATRIBUÍDA À AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÔ-LEO ANP E, PORTANTO, AUSENTE INTERESSE DIRETIO E ESPECÍFICO DA UNIÃO: NÃO INCIDÊNCIA DO ART. 109, IV, DA CF. ( ) 4. No caso, não há falar em lesão aos serviços da entidade autárquica responsável pela fiscalização: não se pode confundir o fato objeto da fiscalização a adulteração do combustível com o exercício das atividades fiscalizatórias da Agência Nacional de Petróleo ANP -, cujo embaraço ou impedimento, estes sim, poderiam em tese, configurar crimes da competência da Justiça Federal, porque lesivos a serviços prestados por entidade autárquica federal (CF, art. 109, IV) (RE nº 502.915, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 27.4.2007, g.n.). Ainda nesse sentido: EMENTA: COMPETÊNCIA. Criminal. Ação penal. Crime contra a ordem econômica. Comercialização de combustível fora dos padrões fixados pela Agência Nacional do Petróleo. Art. 1º, inciso I, da Lei nº 8.176/91. Interesse direto e específico da União. Lesão à atividade fiscalizadora da ANP. Inexistência. Feito da competência da Justiça estadual. Recurso improvido. Precedentes. Inteligência do art. 109, IV e VI, da CF. Para que se defina a competência da Justiça Federal, objeto do art. 109, IV, da Constituição da República, é preciso que tenha
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL 5 havido, em tese, lesão a interesse direto e específico da União, não bastando que esta, por si ou por autarquia, exerça atividade fiscalizadora sobre o bem objeto do delito. (RE nº 513.446-6/SP, rel. Min Cézar Peluso, DJ 27/02/2009, g.n.) A orientação supra referida, no sentido de que não basta que a autarquia federal exerça a atividade fiscalizadora sobre o bem objeto do delito para se configurar a competência federal é a que prevalece, também, nos casos de crimes contra o meio ambiente ocorridos em áreas não integrantes do patrimônio federal ou especialmente protegidas no âmbito federal. Ainda que tais áreas ou outros bens possam estar sob a fiscalização do IBAMA, que é autarquia federal, tal circunstância, por si só, não induz a competência federal, como vem sendo reiteradamente reconhecido no âmbito desta 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, na esteira da doutrina e jurisprudência dominantes. Nessa ordem de consideração, irrelevante se afigura se a autarquia tem competência exclusiva ou não para a fiscalização. Não parece ser essa exclusividade que define a competência. Exclusiva ou não, se a atividade fiscalizatória é atingida, a competência será federal; exclusiva ou não, se essa atividade não é atingida, como ocorre, in casu, a competêcia é estadual. Em suma, ao fabricar, distribuir e comercializar produtos com fins medicinais ou saneantes, sem registro na ANVISA, o infrator causa dano, em potencial, à saúde pública, sem, entretanto, atingir diretamente a própria atividade da ANVISA, que continua tendo o poder e o dever de promover o registro e a fiscalização respectivas. A competência para o processo e julgamento do crime do artigo 273, do Código Penal, por isso, é da Justiça Estadual, e a atribuição para a respectiva atuação é do Ministério Público Estadual. Há, porém, hipótese em que, tratando-se de conduta descrita no artigo 273, do Código Penal, a competência será federal. Ocorre ela quando a comercialização do produto caracteriza-se pela internacionalidade, vale dizer,
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL 6 quando o produto sem registro for adquirido no exterior e adentre o território nacional ou esteja sendo objeto de exportação. Nesse sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justiça, reiterando, de toda a sorte, a regra da competência estadual para o processo e julgamento do crime do artigo 273 e seus parágrafos, do CP: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA. IMPORTAÇÃO DE MEDICAMENTOS SEM REGISTRO NA ANVISA. PROCEDÊNCIA INTERNACIONAL COMPROVADA. INTERESSE DA UNIÃO. 1. A entrada no território nacional de medicamentos sem o devido registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária configura o crime previsto no art. 273, 1 -B, I. 2. In casu, ao ser surpreendido transportando grande quantidade de medicamentos cujo comércio é vedado no país (PRAMIL, EROXIL etc.), o agente confessou que os adquirira em território estrangeiro, caracterizando assim a lesão a bens e interesses da União, o que, segundo o art. 109, I, da Constituição Federal é suficiente para a afetar à Justiça Federal o processo e julgamento do feito. 3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal da 1ª Vara da Subseção Judiciária de Araçatuba/SP. (CC 95.721/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/09/2010, DJe 30/09/2010) Vale transcrever, do voto condutor: Dos autos constata-se que o suposto autor do delito comprou em Ciudad del Este, por meio de um mototaxista, aproximadamente US$ 1.000,00 dos medicamentos PRAMIL, EROXIL, FINGRASS, FIXODENT, DHEA, MELATONIN e GERIATRIC PHARMATON, cujo destino era a revenda para farmácias de Brasília/DF. Conforme consta do ofício n 2952007-GGMED/ANVISA/MS, os medicamentos apreendidos não possuem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o que implica na proibição de sua venda em território nacional, bem como na vedação de sua importação (fl. 91). Em tese, está caracterizada a infração ao art. 273, 1 -B, do Código Penal, cuja competência para processo e julgamento, conforme repetida jurisprudência desta Corte, é da justiça comum estadual, quando ausentes indícios de que os medicamentos foram adquiridos no estrangeiro. Veja-se por todos: "PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. IMPORTAÇÃO E VENDA DE PRODUTO MEDICINAL SEM O DEVIDO REGISTRO.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL 7 DIVERGÊNCIAS QUANTO À CAPITULAÇÃO LEGAL DO DELITO. OFENSA A BENS, DIREITOS OU SERVIÇOS DA UNIÃO. INEXISTÊNCIA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. I - Conduta inicialmente tipificada no art. 334 do Código Penal. II - Hipótese em que a denúncia explicitou conduta relativa à eventual importação e venda de produto sem registro no órgão competente, que constitui o crime previsto no art. 273, 1º-B, I, do Código Penal, mesma tipificação efetuada pela autoridade policial. II - Descartada a hipótese de internacionalidade da conduta a justificar a atração da competência da Justiça Federal, se o réu adquiriu o medicamento de comercialização proibida, em território nacional. III - Inexistindo ofensa a bens, direitos ou serviços da União, evidencia-se a competência da Justiça Estadual para o processamento e julgamento do feito. IV - Conflito conhecido para declarar competente para apreciar e julgar a causa o Juízo de Direito da 3.ª Vara Criminal de Campo Grande." (CC 40.639/MS Rel. Min. GILSON DIPP, TERCEIRA SEÇÃO, DJ 24/05/2004, grifou-se) No entanto, o próprio indiciado, quando ouvido perante a autoridade policial, afirmou que os produtos foram adquiridos no Paraguai (fl. 4). Assim, há precedentes desta Terceira Seção, em situação exatamente idêntica à presente, no sentido de que, havendo elementos que comprovem a procedência internacional do medicamento, resta caracterizada a lesão a bens e interesses da União, implicando no deslocamento da competência para a Justiça Federal: "CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL. INQUÉRITO. IMPORTAÇÃO E VENDA DE PRODUTO MEDICINAL SEM O DEVIDO REGISTRO E TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTE. EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DA INTERNACIONALIDADE DOS DELITOS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. Apurado que o investigado importou e trazia consigo os medicamentos proibidos, confessando que o sabia adquiridos no Paraguai, revela-se a existência de lesão a bens, interesses ou serviços da União, porquanto presente indícios de que o acusado é o responsável pelo ingresso do produto em território nacional, o que configura a internacionalidade da conduta. 2. Com relação ao delito de tráfico ilícito de entorpecentes, havendo, de igual modo, indícios da origem estrangeira da droga, é aplicável a regra contida no art. 70 da Lei 11.343/06, que prevê a competência da Justiça Federal. 3. Conflito conhecido para determinar competente o suscitante, Juízo da 2ª Vara de Araçatuba/SP."
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL 8 (CC 85.634/SP, Rel. Min. OG FERNANDES, TERCEIRA SEÇÃO, DJe de 18/12/2008).CC 95.721/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/09/2010, DJe 30/09/2010) Como se vê, também no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, somente se reconhece a competência federal caso haja a importação ou exportação do produto, sendo, nas demais hipóteses, de competência da justiça estadual o processo e julgamento do crime tipificado no artigo 273 e seus parágrafos, do Código Penal. Com essas considerações, voto pela homologação do declínio de atribuições ao Ministério Público Estadual. Remetam-se os autos diretamente ao Ministério Público Estadual. Brasília, 16 de abril de 2012. Elizeta Maria de Paiva Ramos Subprocuradora-Geral da República Titular 2ª CCR/MPF RLF