Capa fusão União de gigantes Cade aprova compra da Sadia pela Perdigão, mas impõe restrições que prejudicam o abastecimento e tiram mercadorias das gôndolas dos supermercados [ Por Natalie Catuogno revista@supervarejo.com.br ] 34 SuperVarejo janeiro/fevereiro 2013
janeiro/fevereiro 2013 SuperVarejo 35 thinkstock / fusão: paulo garcia
Capa fusão De todas as centenas de fusões e aquisições de companhias negociadas anualmente no Brasil só em 2012 foram 814, um recorde para o país, segundo dados da consultoria inglesa Dealogic, que monitora diariamente esse tipo de negócio ao redor do mundo, uma em especial tirou o sono dos varejistas. Finalmente aprovada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça e responsável por aplicar as leis antitruste no País, a união da Sadia com a Perdigão (juntas sob o nome de BRF) se concretizou. As empresas passaram a ter o mesmo CNPJ, com operações unificadas, em dezembro do ano passado. A fusão em si não seria um grande problema para o varejo, não fossem as consequências das condições impostas pelo Cade para aprovar o negócio. O órgão considerou excessiva a concentração que a BRF alcançaria (algo entre 70 e 90% do mercado) em 14 categorias de produtos e condicionou seu aval indispensável a algumas medidas que, no entender do órgão, diminuiriam a concentração nesse grupo de produtos e dariam condições de competição a outra companhia. Para ter o sinal verde do Cade, a BRF teve de se desfazer de 13 marcas, 8 centros de distribuição e 19 fábricas, ativos que, juntos, rendiam R$ 2 bilhões por ano, segundo cálculos do banco HSBC. Além disso, alguns produtos da marca Perdigão foram suspensos por períodos que vão de três a cinco anos, e a Batavo outra marca da BRF foi obrigada a sair do mercado de carnes processadas por quatro anos. O cumprimento dessas exigências, para o varejista, redundou em falta de produtos em algumas das categorias afetadas pela decisão do Cade, dificuldades em ter seus pedidos entregues e aumento da ruptura que, em alguns casos relatados à Super- Varejo, chegou a 30% em determinadas categorias. Categorias como salsicha e presunto foram as mais afetadas. Com a saída do presunto Perdigão do mercado, aumentou muito a demanda pela Sadia. Outras marcas menores também não conseguiram suprir essa lacuna. Faltou presunto e perdemos vendas, conta o diretor comercial da rede Serve Todos Supermercados, Erlon Godoy Ortega, com seis lojas no interior de São Paulo. Alguns tipos de salsicha Sadia sumiram das gôndolas no final de 2012, e o varejista também não encontrou uma concorrência preparada para ampliar a oferta de marcas rivais. Empresas pequenas, com pouca participação de mercado, não têm condições e nem capacidade instalada de ampliarem muito a produção de uma hora para outra, mesmo com demanda. Ninguém trabalha com tanta ociosidade, explica o sócio da consultoria Booz & Co., Fernando Fernandes. Pizza, lasanha, frios saudáveis e salame também estão na lista dos problemáticos. Na rede Zaffari, por exemplo, uma das maiores do Rio Grande do Sul, que opera mais de 30 lojas no Estado e uma em São Paulo, a ruptura bateu os 30% em alguns itens, segundo o comprador da empresa, Paulo Ricardo da Luz. Ficamos até 18, 20 dias sem receber. E como nossa compra é semanal, não há muitas concorrentes com estrutura para essa frequência de abastecimento. Nossa ruptura só não foi maior em presunto, por exemplo, porque já trabalhávamos com estoque para 30 dias. Em outras categorias, em que o estoque bancava 15 dias, faltou produto, diz ele. A resposta das indústrias frequentemente era que não havia o que entregar. Em vez de metas de vendas, os vendedores tinham cota máxima, afirma Renato Gaspar, do Santa Cruz Supermercados (quatro lojas em Votuporanga, interior de São Paulo). Boa parte dos supermercadistas ouvidos pela SuperVarejo recorreram a distribuidores de frios e atacadistas para diminuir a ruptura nas lojas, mesmo tendo feito estoques maiores, uma vez que estavam acompanhando atentos o desenrolar da fusão e da troca de ativos entre BRF e Marfrig companhia concorrente que assumiu unidades fabris, CDs, e marcas da gigante. Algumas marcas já alienadas à Marfrig, como a Excelsior, por exemplo, (especialmente no segmento de presuntos) também não estavam com distribuição normal, segundo os supermercadistas. cabral, da BRF: após suspensão da Perdigão, empresa tem de prever comportamento do consumidor fiel à marca divulgação 36 SuperVarejo janeiro/fevereiro 2013
eliane cunha O caso BRF O Cade esteve muito perto de não autorizar a fusão entre Sadia e Perdigão, que resultou na criação da BRF. Um de seus conselheiros, então relator do processo da BRF e hoje superintendente do órgão, Carlos Rampazzo, chegou a votar pelo indeferimento da união das duas companhias. Preocupava a grande concentração de mercado que a firma alcançaria em categorias como presunto, linguiça, lasanha, pizza congelada, salame e frios saudáveis, algo em torno de 70 a 90% do share. Para dar o aval à compra da Sadia pela BRF, o Cade obrigou a gigante nacional a vender marcas, fábricas e centros de distribuição. Também suspendeu a venda de produtos da marca Perdigão, em 14 categorias, por períodos que variam de três a cinco anos e determinou que a marca Batavo deixasse de atuar no segmento de carnes processadas por quatro anos. Entre junho e julho de 2011, BRF e Cade negociaram um acordo que, segundo o Cade, poderia reduzir os possíveis efeitos danosos da concentração considerada exagerada e tornar os mercados preocupantes mais competitivos. Foram 12 reuniões até que se chegasse a um pacote de medidas que, se aceitas pela companhia, possibilitariam que o conselho desse sinal verde à fusão, anunciada dois anos antes. A BRF teria de agir em três frentes: 1) vender ativos em bloco para criar um rival com escala ; 2) suspender marcas para, literalmente, abrir espaço na gôndola para concorrentes; e 3) seguir regras como: não criar novas marcas, não comprar novas fábricas, entregar os ativos com certa participação de mercado, entre outras. O objetivo era dar musculatura e oportunidade a uma empresa concorrente a possível compradora dos ativos de modo que, depois da compra, a participação da desafiante no mercado correspondesse a algo em torno de 20%. As fábricas, marcas e centros de distribuição separados para serem alienados, a partir das exigências do Cade, foram encampados pela Marfrig, dona da Seara Foods, entre junho e agosto do ano passado, numa operação de troca de ativos. A BRF assumiu toda a participação acionária (mais de 90%) que a Marfrig detinha na Quickfood S.A., empresa sediada na Argentina, e ainda vai receber R$ 350 milhões da concorrente. Em contrapartida, cedeu à Marfrig oito centros de distribuição, 19 plantas fabris e 13 marcas, entre elas: Texas, Tekitos, Patitas, Rezende, Confiança, Wilson, Doriana, Delicata, Fiesta e Freski. Com as novas marcas e ativos, a participação da Marfrig no segmento de alimentos processados saltou de 8 para 17%, com potencial de atingir 23% em alguns meses, segundo dados da companhia. janeiro/fevereiro 2013 SuperVarejo 37
Capa fusão Gargalos no abastecimento Dois foram os principais gargalos que emperraram o abastecimento: 1) a suspensão da marca Perdigão gerou aumento de demanda, notadamente sobre os produtos da marca Sadia, líder em boa parte das categorias mais afetadas. Para a BRF, foi difícil prever qual seria o comportamento do consumidor fiel à Perdigão e, assim, avaliar a variação da demanda. Colocar linguiça no feijão é um hábito brasileiro. A Perdigão detinha 34% de participação no mercado desse tipo de produto. Se não tem mais [essa marca], o que o consumidor vai fazer? Comprar a da Sadia? Comprar a do concorrente? Trocar por bacon?, ilustra José Eduardo Cabral Mauro, vice-presidente de Mercado Interno da BRF. 2) Os ativos que tiveram de ser alienados fizeram falta na capacidade tanto de produção quanto de distribuição da BRF. O Cade determinou que a gigante vendesse, em bloco e para uma mesmo concorrente, não um número qualquer de unidades fabris, mas uma determinada capacidade de produção. A empresa rival que viesse a adquirir os ativos deveria ter condições de processar, com as plantas da BRF, no mínimo 540 mil toneladas de alimentos por ano, com capacidade ociosa de 700 mil toneladas, segundo informações da própria BRF. Para cumprir esse acordo, a BRF teve de selecionar ativos aleatórios que, juntos, entregassem essa capacidade produtiva. Na prática, isso significou transferir produção de uma fábrica a outra e alienar plantas de determinados produtos e marcas que seriam mantidos sob a BRF. Como também está proibida de comprar unidades fabris de outras companhias o Cade exigiu que a BRF, nessas categorias, crescesse apenas organicamente, a empresa não teve ainda como retomar a capacidade produtiva de antes. O sumiço da salsicha Sadia é o melhor exemplo das consequências dessa situação: deveu-se à alienação de uma das principais fábricas de salsichas da marca a de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, conforme explicou o vice-presidente de Assuntos Corporativos da BRF, Wilson Newton de Mello Neto. Situação similar ocorreu com os CDs da companhia. A capacidade de distribuição e de entrega encolheu diante da perda dos oito centros de distribuição, entre eles o de Campinas e o de Curitiba. Essa decisão [do Cade] era complicação anunciada, avalia Erlon Godoy Ortega, do Serve Todos Supermercados. Alguns 38 SuperVarejo janeiro/fevereiro 2013
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Capa fusão especialistas ouvidos por SuperVarejo, críticos da decisão do órgão, explicam que, a despeito das boas intenções com a medida, seria muito difícil repassar a um concorrente o know-how da BRF em distribuição, por exemplo, que é uma das principais vantagens competitivas da gigante e, em boa medida, o que lhe garantia tão superior participação de mercado. Sadia e Perdigão cobriam, cada uma delas, de 115 a 120 mil pontos de distribuição por semana. É uma capacidade enorme! Adquirir uma marca não significa adquirir a capacidade de distribuir; isso não se constrói em 24 horas, analisa o consultor com 35 anos de experiência no mercado de carnes (e também ex-sadia e ex-perdigão), Osler Dezouzart, da OD Consulting. O que significa dizer que, além de a BRF ter de investir em recuperar sua capacidade, também a Marfrig precisará melhorar sua distribuição para dar conta das marcas adquiridas que, antes, eram beneficiadas pela ampla rede de abastecimento da BRF. Foi a primeira vez na história do Cade (criado em 1994) que se exigiu de uma empresa medidas tão sofisticadas e duras. O impacto para nós foi muito grande: 700 mil toneladas, total da capacidade ociosa que tivemos de desinvestir, é muito próximo ao que a Perdigão produzia por ano, avalia Wilson Mello Neto, vice-presidente da BRF. Em casos anteriores, como o da compra da Kolynos pela americana Colgate, em 1996, e da fusão da Brahma com a Antarctica, que criou a AmBev em 1999, as medidas exigidas foram bem mais simples e limitadas e não tiveram, nem de longe, o impacto que estão tendo agora as exigências do Cade no mercado e na cadeia produtiva do segmento de carnes. A Colgate foi obrigada a retirar das gôndolas a marca Kolynos, líder de mercado em pasta de dente na época. Não houve, no entanto, como há agora no caso BRF, restrição à criação de novas marcas. Esperta, Colgate lançou o creme dental Sorriso, com slogan parecido ao da antecessora e, poucos anos depois, já detinha participação igual à da Kolynos, sem dar chance a nenhum desafiante no mercado. Na união das produtoras de bebidas que deu origem à AmBev, o Cade foi ainda mais inexpressivo e por isso mesmo duramente criticado à época: obrigou a companhia recém-criada a abrir mão da cerveja Bavária, que detinha pífios 3% de participação, contra 75% no caso de todas as marcas das duas companhias somadas. Mesmo com todos os ajustes que envolvem a venda de uma operação à outra companhia, especialistas explicam que é muito mais simples vender uma única marca e todos os ativos ligados a ela do que alienar ativos sem conexão alguma entre si, como a BRF precisou fazer em 2012. Assim, em nenhum dos casos do passado considerados de Wilson melo, DA BRF: alienação da fábrica de Duque de Caxias (RJ) causou sumiço da salsicha Sadia grande porte houve impactos na cadeia produtiva de abastecimento como houve nesse. Essa foi, sem dúvidas, a mais complexa fusão que chegou ao Cade. Não apenas pelo porte das companhias, mas pela importância desse mercado [de carnes] na economia brasileira e pela alta concentração do segmento, avalia o ex-presidente do Cade, ex-secretário de Direito Econômico e conselheiro do escritório O.C. Arruda Sampaio, Ruy Coutinho do Nascimento. Normalização à vista Para restabelecer a capacidade produtiva e de distribuição, a BRF está construindo novas fábricas e centros de distribuição. Os investimentos começaram logo após o anúncio do Cade, em 2011, e o cronograma de ações e entregas de obras vai até 2015. A previsão da companhia é normalizar o atendimento ao varejo até a metade de 2013. Depois de dedicar o ano passado praticamente todo à fusão, a companhia traça metas mais ambiciosas para este ano: 1) retomar o atendimento aos níveis pré-troca de ativos; 2) ampliar a base de varejistas atendidos diretamente pela BRF; 3) ampliar mercados; 4) investir em inovação e lançamentos. No final do ano passado, por exemplo, a gigante colocou nas gôndolas a maionese Perdigão. O mesmo acontece com a Sadia, que lançou em São Paulo, em 2011, mussarela e queijo prato. No final de 2012, anunciou a ampliação da distribuição de ambos os produtos para o mercado nacional. divulgação 40 SuperVarejo janeiro/fevereiro 2013
Outros casos A BRF não foi a primeira gigante a obter participação de mercado considerada preocupante ao unir-se ou comprar uma concorrente. Os casos mais emblemáticos na indústria brasileira que chegaram ao Cade são: O quê Kolynos-Colgate AmBev Nestlé-Garoto A americana Colgate adquiriu a marca Kolynos, líder em vendas de creme dental. Juntas, elas detinham 78% do mercado da categoria Brahma e Antarctica, as duas principais fábricas de bebida brasileiras, anunciaram a fusão A suíça Nestlé comprou a capixaba Garoto Quando A compra se deu em 1996 em 1999 em 2002 Decisão do Cade Suspendeu a marca Kolynos por quatro anos, sem restringir, no entanto, a criação de outras marcas Mesmo com concentrações elevadas no mercado de cervejas, o Cade determinou que a AmBev, empresa resultante da fusão, vendesse a cerveja Bavária (incluindo também fábricas e toda a operação), que detinha apenas 3% do mercado O Cade negou totalmente a fusão, em 2004, ao identificar que as duas companhias juntas deteriam quase 60% do mercado de chocolates e que teriam apenas uma rival à altura, a Kraft Resultado Colgate logo criou uma nova marca a Sorriso para substituir a Kolynos. Com nome parecido e mesmo slogan, a novata foi vista como herdeira natural da suspensa e, em poucos anos, tornou-se líder de vendas com participação similar à da Kolynos, que sequer voltou às gôndolas ao fim do embargo A empresa mantém até hoje participações próximas dos 70% A Nestlé contestou o órgão na Justiça, mas ainda não há decisão definitiva. Caso a fusão siga vetada, não se sabe o que a multinacional fará com a Garoto; funcionários da companhia brasileira temem demissão em massa Já a Marfrig está investindo em ampliar sua equipe de atendimento ao varejista. Em julho passado, contratou mais de 650 novos vendedores para a linha de produtos oriunda da troca de ativos com a BRF. Também ampliou em 30% a quantidade de promotores de vendas no ponto de venda da Seara Foods, divisão da companhia para alimentos. Os pontos de venda e os consumidores merecem toda a atenção da Seara Foods. Ampliamos nossa equipe justamente para atender às suas expectativas de fornecimento e portfolio de produtos, diz o diretor de Marketing, Antonio Zambelli. Reposicionar a marca Doriana e ampliar sua distribuição também está nos planos da companhia para os ativos que recebeu da BRF. Osler Desouzart, da OD Consulting, avalia que, daqui para frente, a BRF deve se tornar ainda mais competitiva e ampliar significativamente sua atuação internacional, inclusive produzindo fora do País. A Marfrig, segundo ele, tem condições e liderança capazes de construir uma boa rede de distribuição e ampliar significativamente sua capacidade de abastecimento. Segundo dados da própria companhia, a empresa deve ter fechado 2012 com uma capacidade de abastecimento próxima dos 80 mil pontos de vendas. No início do ano, cobria apenas 28 mil. O problema continua sendo um terceiro competidor. Temos eficientes nicheiros, mas não uma indústria capaz de assumir essa posição na maioria das categorias em que atuam BRF e Marfrig ou, como elas, em nível nacional, analisa Desouzart. Para o coordenador do Laboratório de Finanças da FIA, Rogério Alexandre Gonçalves de Souza, o congelamento de produtos a que a BRF foi submetida pode abrir espaço para o avanço de concorrentes já estabelecidos ou chamar a atenção de empresários do Brasil e do exterior que queiram entrar no segmento. A SuperVarejo consultou concorrentes como JBS, Aurora e Ceratti para saber sobre planos de expansão em relação à lacuna deixada pela suspensão da Perdigão. Nenhuma delas atendeu aos pedidos de entrevista da reportagem. FONTES DESTA MATÉRIA Arthur Barrionuevo: eaesp.fgvsp.br Booz & Co: (11) 5501-6200 BRF: (11) 2322-5000 Dealogic: (11) 3443-6303 FIA: (11) 3732-3535 Marfrig Group: (11) 3728-8600 OD Consulting: www.odconsulting.com.br Ruy Coutinho do Nascimento: arruda-sampaio.com Santa Cruz Supermercados: www.santacruzsupermercados.com.br Serve Todos Supermercados: www.servetodos.com.br Trigueiro Fontes Advogados: www.trigueirofontes.com.br Zaffari Supermercados: www2.zaffari.com.br janeiro/fevereiro 2013 SuperVarejo 41