A AQUISIÇÃO PRECOCE DE CODA FINAL E DE ENCONTROS CONSONANTAIS NO INGLÊS COMO LE



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Transcrição:

DE MARCO, Magliane. A aquisição precoce de coda final e de encontros consonantais no inglês como LE. Revista Virtual de Estudos da Linguagem ReVEL. V. 4, n. 7, agosto de 2006. ISSN 1678-8931 [www.revel.inf.br]. A AQUISIÇÃO PRECOCE DE CODA FINAL E DE ENCONTROS CONSONANTAIS NO INGLÊS COMO LE Magliane De Marco 1 maglianedemarco@gmail.com RESUMO: A literatura na área de aquisição da linguagem tem comprovado (Ingram, 1989; Fletcher e MacWhinney, 1997, por exemplo) que, em fase inicial do processo de desenvolvimento fonológico, a criança tem mais facilidade em produzir a estrutura silábica CV. A aquisição fonológica ocorre de forma gradual, do não-marcado para o marcado, o que significa que se adquire primeiro o mais simples para depois, então, adquirir-se o mais complexo. Sendo CV uma estrutura não-marcada, é normal que seja a primeira estrutura silábica a ser adquirida, tanto na língua materna (LM) quanto na língua estrangeira (LE). A estrutura silábica CCV, por apresentar encontro consonantal, é uma das últimas aquisições fonológicas da criança (Grunwell, 1985; Lamprecht, 1990); por isso seu uso por crianças ainda muito pequenas apresenta-se inexistente ou muito restrito. Com base no exposto, realizou-se um estudo de caso de uma criança em desenvolvimento fonológico normal, durante três meses, no período em que se encontrava com idade de 2:1 a 2:4 (anos/meses), a fim de testar-se se a transferência da LM para LE ocorre em menor freqüência nessa etapa aquisicional da linguagem, em se comparando com a aquisição de uma LE na idade adulta. A investigação centrou-se na análise de algumas estruturas silábicas marcadas produzidas no Português e no inglês (CCV, CVC), bem como nos segmentos produzidos em constituintes silábicos marcados, como a coda, detendo-se no estudo de consoantes licenciadas em cada um dos sistemas fonológicos em aquisição. PALAVRAS-CHAVE: Fonologia; aquisição de LE; estrutura silábica. INTRODUÇÃO A literatura na área de aquisição da linguagem tem comprovado (Ingram, 1989; Fletcher e MacWhinney, 1997, por exemplo) que, em fase inicial do processo de desenvolvimento fonológico, a criança tem mais facilidade em produzir a estrutura 1 Universidade Católica de Pelotas. 1

silábica CV. Essa estrutura se constitui em um universal lingüístico, ou seja, é comum a todas as línguas. Sendo essa uma estrutura não-marcada, é normal que seja a primeira estrutura silábica a ser adquirida, tanto na língua materna (LM) quanto na língua estrangeira (LE). Estudos sobre aquisição do Português Brasileiro (PB) (Matzenauer, 1999) e sobre o Português Europeu (PE) (Freitas, 1997) também evidenciam a precocidade de emergência da sílaba V em crianças brasileiras e portuguesas. A estrutura silábica CCV, por apresentar encontro consonantal, é uma das últimas aquisições fonológicas da criança (Grunwell, 1985; Lamprecht, 1990); por isso seu uso por crianças ainda muito pequenas apresenta-se inexistente ou muito restrito. 1. A ESTRUTURA SILÁBICA A sílaba, representada pela letra grega σ, apresenta uma estrutura interna: pode ser formada por um ataque ou onset e uma rima. A rima pode ser constituída por um núcleo e uma coda como em (1), conforme Selkirk (1982), baseando-se em propostas feitas anteriormente por Pike e Pike (1947) e Fudge (1969). (1) σ onset Rima Núcleo Coda No Português, somente o núcleo é obrigatório, pois a língua pode apresentar sílabas com onset e/ou coda zero. O onset da primeira sílaba da palavra não pode ser constituído pelos segmentos /r/, / /, / /. A estrutura do onset pode possuir até duas consoantes, sendo a primeira uma plosiva ou fricativa labial, e a segunda, sempre uma líquida. O núcleo silábico no Português só pode ser formado por vogais. A estrutura da coda somente aceita /N/, /S/, /l/, /r/, ou também pode apresentar duas consoantes, sendo que a segunda deve ser sempre um /S/. Em inglês, a estrutura CCV apresenta dois tipos: a sílaba começa com a fricativa /s/, seguida de consoantes plosivas surdas, fricativa labial surda, nasais anteriores, líquida lateral e glides, conforme se mostra nos exemplos em (2 a); ou a sílaba pode 2

iniciar por consoantes plosivas, fricativas, africadas, nasais anteriores e líquidas seguidas de líquidas e glides, como aparece nos exemplos em (2 b). Na estrutura CVC do inglês, a coda pode apresentar uma consoante soante ou uma obstruinte, conforme aparece exemplificado em (2 c). (2) (a) speak [ spi:k] sfumato [sfu matow] stool [ stu:l] smart [ smart] sleep [ sli:p] snow [ snow] (b) plum [ pl m] bread [ bred] flower [ flaw r] friend [ frend] (c) pen [ pen] gum [ g m] car [ car] stop [ stçp] paint [ peint] clock [ klçk] 2. A AQUISIÇÃO FONOLÓGICA Investigações sobre aquisição da fonologia mostram que a criança possui, inicialmente, a habilidade de produzir todos os sons da fala humana, porém, com o tempo, perde aqueles que não são produzidos em seu ambiente lingüístico (Ingram, 1989: 96). A aquisição fonológica ocorre de forma gradual, do não-marcado para o marcado, o que significa que se adquire primeiro o mais simples para depois, então, adquirir-se o mais complexo. Esse processo se dá conforme a criança domina os segmentos e as estruturas silábicas que constituem o sistema ao qual está exposta. Acredita-se que a criança tenha um papel ativo nesse processo de aquisição, procurando estabelecer hipóteses e adotando estratégias até alcançar o sistema 3

fonológico do adulto e da comunidade na qual está inserida (Matzenauer, 1990: 1). As primeiras palavras produzidas implicam já a existência de um sistema fonológico, o que não quer dizer que não haja um espaço de tempo entre o entendimento e a produção de palavras (Ingram, 1989: 140). Com o desenvolvimento lingüístico da criança, esse sistema vai sofrendo alterações até chegar ao sistema alvo, da comunidade em que a criança está inserida. Nesse processo gradual de desenvolvimento fonológico, um fato interessante a ser pesquisado é a aquisição de uma LE em período em que o sistema da língua materna ainda não está plenamente dominado pela criança. 3. A AQUISIÇÃO DE LE Os estudos sobre aquisição de língua estrangeira têm consistentemente apontado a influência da língua materna nesse processo. Em uma pesquisa com adolescentes e adultos, Fernandes (2001) mostra que, no processo de aquisição do inglês como língua estrangeira por falantes nativos de Português, a LE sofre interferência da estrutura silábica da língua materna, já que essas duas línguas apresentam algumas estruturas silábicas diferentes. Em se tratando de crianças, porém, essa interferência da LM na aquisição da LE parece ser menor. De acordo com Fletcher e MacWhinney (1997: 186), a criança que é exposta ainda cedo a uma segunda língua desenvolve mais precocemente uma consciência sobre a linguagem 2, o que pode diminuir essa influência da LM sobre uma LE em aquisição. Com base no exposto, realizou-se uma análise do desenvolvimento fonológico de dois sistemas, neste caso, Português como LM e inglês como LE, em dados de uma criança com idade entre 2:1 e 2:4 (anos/meses), a fim de testar-se se a transferência da 2 A consciência metalingüística é a habilidade de pensar sobre a linguagem como um objeto, desenvolvese gradualmente durante a infância, só estando totalmente estabelecida aos oito ou nove anos de idade. As crianças pequenas normalmente tendem a ver a linguagem como um meio de comunicação, com ênfase principal no conteúdo e no uso e não na forma de um enunciado (Fletcher e MacWhinney, 1997: 288). Segundo Morais (1989), a consciência fonológica é uma capacidade metalingüística que se refere à representação consciente das propriedades fonológicas e das unidades constituintes da fala. Ou seja, é a consciência dos sons que compõem as palavras que ouvimos e falamos (Cardoso-Martins, 1991). A capacidade metafonológica pressupõe o conhecimento não do que significa uma palavra, mas de que ela é um todo formado por sons individuais. A consciência fonológica requer que a criança ignore o significado e preste atenção à estrutura da palavra (Gough e Larson, 1996: 15). 4

LM para LE ocorre em menor freqüência nessa etapa aquisicional da linguagem, em se comparando com a aquisição de uma LE na idade adulta. O presente trabalho tem como objetivos, através de um estudo comparativo do processo de aquisição de estruturas silábicas marcadas do Português como LM e do inglês como LE em uma criança em etapa inicial do desenvolvimento fonológico, identificar as estruturas silábicas marcadas produzidas no Português e no inglês (CCV, CVC); identificar os segmentos produzidos em constituintes marcados, como a coda constituída por consoante em cada um dos sistemas fonológicos em aquisição e, finalmente, verificar a existência de transferência de estruturas silábicas da LM para a LE. Tais objetivos advêm da hipótese sobre a existência de transferência de estruturas silábicas da LM para a LE, mesmo em etapa inicial do processo de aquisição da fonologia de duas línguas, e também da hipótese de que as estruturas silábicas marcadas são adquiridas ao mesmo tempo nas duas línguas. Para a realização da pesquisa, determinou-se um corpus constituído de dados de um estudo de caso longitudinal de uma criança em desenvolvimento fonológico normal, durante três meses, no período em que se encontrava com idade de 2:1 a 2:4 (anos/meses). A criança freqüenta escola maternal no município de Pelotas, Rio Grande do Sul, e pertence ao nível sócio-econômico-cultural de classe média. Está adquirindo o português como língua materna e recebe da mãe, também nativa de Português, o input em inglês. Foram analisados dois corpora, um em Português e outro em inglês. Para a coleta de dados, foi utilizado o instrumento de avaliação fonológica proposto por Yavas, Matzenauer e Lamprecht (1991), aplicando-se a técnica da nomeação espontânea, através da qual, com auxílio de desenhos e/ou objetos, a criança é estimulada a dizer o nome de seres, suas ações e características, com o objetivo de se obter uma amostra lingüística significativa, sem imitação. Algumas vezes foi necessário o uso da técnica de imitação retardada, isto é, a produção de uma palavra em uma frase, sucedida de uma série de outras palavras, e, depois, solicitação de sua realização pela criança. Também foram coletados dados em contatos diários com a criança, estabelecendo-se um diário, a exemplo de outros casos registrados na literatura sobre aquisição da linguagem (Ingram, 1989: 10). Todos os dados coletados foram transcritos foneticamente. Após a transcrição fonética das fitas cassete, os dados foram analisados para obter-se o inventário fonético 5

da criança, que se constitui por meio do levantamento de todos os sons da língua produzidos por ela, e seu sistema fonológico, que se constitui na verificação dos sons já empregados com valor contrastivo e das estruturas silábicas realizadas. Passando-se, depois, à análise dos sistemas fonológicos da menina pesquisada nas duas línguas objeto de estudo neste trabalho, fez-se num primeiro momento, o levantamento das estruturas silábicas presentes no sistema das duas línguas em aquisição. 4. A AQUISIÇÃO SILÁBICA NOS CORPORA ESTUDADOS A menina, cujo corpus embasou este estudo, não apresentava qualquer encontro consonantal na primeira entrevista em LM, com a idade de 2:1, como mostram os dados em (3). Na segunda entrevista, com 2:3, já apresentava alguns encontros consonantais na produção de palavras em inglês, como aparece nos itens lexicais apresentados em (4). Observe-se que os primeiros encontros consonantais a emergirem são do tipo que aparece exemplificado em (2 b) particularmente plosiva + líquida, que também integram o sistema do Português. Na terceira entrevista em LM, com 2:4, já apresentava algumas estruturas silábicas com encontro consonantal no Português, como se pode ver nos exemplos em (5). (3) blusa [ buz ] grama [ g ) )) )m ] branco [ b ) )) )Nku] estrela [is tela] angry [ engi] blue [ bu] (4) angry [ engri] blue [ blu] (5) blusa [ bluz ] grande [ gr ) )) )ndzi] 6

O que os dados da presente pesquisa estão mostrando é que a aquisição da estrutura silábica marcada CCV foi adquirida primeiro na LE e, depois, na LM. Esse fato foi inesperado, uma vez que se sabe que a exposição à LE, por ser falada somente pela mãe, é muito menor do que a que a menina recebe na LM. Essa precoce aquisição da estrutura CCV na LE talvez possa ser atribuída à questão da consciência lingüística a exposição a duas línguas colabora para o desenvolvimento precoce de uma consciência lingüística, fazendo-a surgir mais cedo que em crianças expostas a somente uma língua; as crianças expostas a duas línguas prestam muita atenção ao input que recebem e logo notam que este input é diferente (Fletcher e MacWhinney, 1997). Outra ocorrência verificada, no corpus estudado, foi a epentetização de vogal no final de palavra na LE quando há a presença, em coda final, de consoante que não seja aceita como coda no Português, conforme se verifica nos exemplos em (6). Porém merece ser destacado que essa epentetização foi observada por um espaço de tempo muito curto, em se comparando a um adulto ao utilizar a língua estrangeira (Fernandes, 1997). (6) cat [ ketu] red [ uedu] frog [ fçgu] dog [ dçgu] A criança, cujos dados serviram de base para este estudo, não apresentava, na LM, sílaba com coda consonantal final que não fosse /l/ ou /S/ na primeira entrevista, com a idade de 2:1, como se vê nos casos em (7). Isso quer dizer que seu sistema fonológico não incluía, ainda, a coda com a liquida não-lateral /r/. Na segunda entrevista, com 2:3, já apresentava algumas sílabas com coda constituída por consoante plosiva na produção de palavras em inglês, como mostram os exemplos em (8). Esses dados revelam que, embora há apenas dois meses a menina ainda não mostrasse, em seu sistema, a coda mais marcada do Português /r/, com 2:3 já apresenta codas com consoantes obstruintes na LE, que são as codas universalmente mais marcadas. Esse rápido desenvolvimento fonológico de um constituinte silábico marcado continua, pois em dados obtidos do diário, faltando uma semana para completar 2:4, já apresentava plosivas em coda de palavras em inglês, sem o uso de epêntese, como mostram os dados em (9). (7) flor [ fol] lápis [ lapis] 7

mar [ mal] açúcar [a sukal] nariz [ nalis] dois [ dojs] (8) cat [ ketu] ~ [ ket] frog [ fçgu] ~ [ fçg] (9) red [ ued] pink [ pink] dog [ dçg] sheep [ Si:p] A partir do que referem Fletcher e MacWhinney (1997), pode-se concluir que a criança parece perceber mais rapidamente sons que não pertencem a sua língua materna. Assim, em se tratando da aquisição do inglês por criança brasileira, essa parece ser mais sensível do que o adulto à percepção da ausência dessa vogal final na língua estrangeira, eliminando-a em fase desenvolvimental precoce e passando, portanto, a produzir a plosiva em coda. Tanto o adulto como a criança fazem essa epêntese para facilitar sua comunicação, isto é, fazem uma ressilabação, ficando com a estrutura final da palavra igual à da sua língua materna, ou seja, uma estrutura silábica CV, que é um universal lingüístico por ser nãomarcado e, portanto, de mais fácil aquisição por parte da criança (Exemplos: [ dçg] ~ [ dç.gi], [ Si:p] ~ [ Si:.pi]). A criança pequena, pelos dados do presente estudo, parece poder dispensar essa estratégia simplificadora em etapa inicial da aquisição da LE. Pela pesquisa aqui realizada, vê-se que os dados parecem vir ao encontro da afirmação de Fletcher e MacWhinney (1997) no sentido de que crianças expostas a duas línguas desenvolvem mais rapidamente a consciência lingüística e mostram maior atenção ao input recebido e, conseqüentemente, apresentam produção adequada em período de tempo menor que o adulto. Os dados dessa informante estão evidenciando a aquisição de sílabas com encontro consonantal CCV já com a idade de 2:4. As pesquisas sobre a aquisição do inglês como LM (Ingram, 1989) e do Português como LM (Lamprecht, 1990) mostram a idade entre 3:5 e 4:0 como a fase mais freqüente de aquisição de sílaba com onset complexo. Pode-se verificar,

portanto, pelos dados da presente pesquisa, que a aquisição do inglês como LE, em fase precoce do desenvolvimento fonológico, parece estar facilitando a aquisição da estrutura silábica marcada CCV. 5. CONCLUSÃO Em se comparando os dados da menina estudada neste trabalho e os dados apresentados por Fernandes (1997) sobre a aquisição da coda silábica do inglês como LE constituída por obstruintes, pode-se verificar que, no período de três meses, entre 2:1 e 2:4, a criança começou a adquirir esse constituinte silábico marcado do inglês, sem mais usar a estratégia de epêntese. Pelos dados de Fernandes (1997), alunos adolescentes ou adultos brasileiros com mais de um ano de estudo de inglês como LE nível avançado ainda apresentam dificuldade na produção de obstruinte em coda silábica, mostrando a utilização freqüente do uso de epêntese, a fim de desfazer essa estrutura silábica marcada. Conclui-se, portanto, que a criança em fase inicial de aquisição da fonologia parece mostrar maior facilidade e rapidez no domínio de estruturas marcadas (aqui se trata especificamente de duas estruturas silábicas CCV e CVC) da LE do que adolescentes e adultos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. CARDOSO-MARTINS, C. A sensibilidade fonológica e a aprendizagem inicial da leitura e da escrita. Cadernos de pesquisa, v. 76, p. 41-49, fev. 1991. 2. FERNANDES P. R. C. A epêntese nas formas oral e escrita na interfonologia Português/Inglês. In: MATZENAUER, C. L. (Org). Aquisição de língua materna e de língua estrangeira. Aspectos fonético-fonológicos. Pelotas: EDUCAT, 2001. p. 235-259. 3. FERNANDES, P. R. C. A epêntese vocálica na interfonologia Português/Inglês. 1997. Dissertação (Mestrado em Letras) Escola de Educação, Universidade Católica de Pelotas, Pelotas. 9

4. FLETCHER, P. & MACWHINNEY, B. Compêndio da linguagem da criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. 5. FREITAS, M. J. Aquisição da estrutura silábica do Português Europeu. 1997.Tese de doutorado. Universidade de Lisboa, Lisboa. 6. FUDGE, E. Syllables. Journal of Linguistics, Cambridge, UK, n. 5, p. 254-287, 1969. 7. GOUGH, P., LARSON, K. A estrutura da consciência fonológica. In: CARDOSO- MARTINS, C. Consciência fonológica e alfabetização. Petrópolis: Vozes, 1996. 8. GRUNWELL, P. Phonological assessment of child speech (PACS). San Diego, Calif.: College-Hill Press, 1985. 9. INGRAM, D. First language acquisition: method, description and explanation. USA: Cambridge, 1989. 10. LAMPRECHT, R. R. Perfil de aquisição normal de fonologia do português Descrição longitudinal de 12 crianças: 2:9 a 5:5. 1990.Tese (Doutorado em Letras) ) Instituto de Letras e Artes, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 11. MATZENAUER, C. L. Aquisição da fonologia do português: estabelecimento de padrões com base em traços distintivos. 1990. Tese (Doutorado em Letras) Instituto de Letras e Artes, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 12. MATZENAUER, C. L. Aquisição da linguagem e otimidade: uma abordagem com base na sílaba. III Encontro do CelSul. Porto Alegre: PUCRS, 1999. 13. MORAIS, J. Phonological awareness: a bridge between language and literacy. In: SAWYER, D. J., FOX, B. phonological awareness in reading: the evolution of current perspective. Berlin: Springer, 1989. 14. PIKE, K., PIKE, E. Immediate constituents of Mazateco syllables. International Journal of Applied Linguistics, n. 13, p. 78-91, 1947. 15. SELKIRK, E. The syllable. HULST, H. V. D., SMITH. The structure of phonological representations (part. II). Foris, Dordrecht, p. 337-383, 1982. 16. YAVAS, M., MATZENAUER-HERNANDORENA, C. & LAMPRECHT, R. Avaliação fonológica da criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. RESUMO: A literatura na área de aquisição da linguagem tem comprovado (Ingram, 1989; Fletcher e MacWhinney, 1997, por exemplo) que, em fase inicial do processo de desenvolvimento fonológico, a criança tem mais facilidade em produzir a estrutura silábica CV. A aquisição fonológica ocorre de forma gradual, do não-marcado para o marcado, o que significa que se adquire primeiro o mais 10

simples para depois, então, adquirir-se o mais complexo. Sendo CV uma estrutura não-marcada, é normal que seja a primeira estrutura silábica a ser adquirida, tanto na língua materna (LM) quanto na língua estrangeira (LE). A estrutura silábica CCV, por apresentar encontro consonantal, é uma das últimas aquisições fonológicas da criança (Grunwell, 1985; Lamprecht, 1990); por isso seu uso por crianças ainda muito pequenas apresenta-se inexistente ou muito restrito. Com base no exposto, realizou-se um estudo de caso de uma criança em desenvolvimento fonológico normal, durante três meses, no período em que se encontrava com idade de 2:1 a 2:4 (anos/meses), a fim de testar-se se a transferência da LM para LE ocorre em menor freqüência nessa etapa aquisicional da linguagem, em se comparando com a aquisição de uma LE na idade adulta. A investigação centrou-se na análise de algumas estruturas silábicas marcadas produzidas no Português e no inglês (CCV, CVC), bem como nos segmentos produzidos em constituintes silábicos marcados, como a coda, detendo-se no estudo de consoantes licenciadas em cada um dos sistemas fonológicos em aquisição. PALAVRAS-CHAVE: Fonologia; aquisição de LE; estrutura silábica. ABSTRACT: Language acquisition studies have pointed (Ingram, 1989; Fletcher and MacWhinney, 1997, e. g.) that, in the beginning of the phonological development process, it is easier for a child to produce a CV syllable. The phonological acquisition is gradual, from the unmarked to the marked, it means that the easier structures are acquired first than the more difficult ones. CV is a unmarked structure, it is normal that this is the first syllable structure to be acquired, in the mother language (ML) and foreign language (FL). The CCV syllable structure, because it has a cluster, is one of the latest phonological structures to be acquired (Grunwell, 1985; Lamprecht, 1990). Based on that, the aim of this paper is to investigate the early acquisition process of a FL by a child in normal phonological development, when she was 2:1 until 2:4 (years/months), to verify if there is less transference from ML to FL in this age, if comparing to adult foreign language acquisition. KEYWORDS: Phonology; FL acquisition; syllable structure. 11